Luvasgate: os estranhos ajustes directos da pandemia

Caves da Montanha: dos zero euros de espumante até aos 340 mil euros em testes e máscaras

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Nem só de uvas se faz vinho, já diz o dichote. E durante a pandemia, nem só de bebidas viveu uma conhecida empresa vinícola da Bairrada. Localizada na Anadia, a Caves da Montanha nunca conseguira vender uma garrafa a qualquer entidade pública, mas soube aproveitar a “onda” e fartou-se de vender máscaras e autotestes, incluindo ao Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, que gere o hospital de Santa Maria. No total foram seis contratos públicos, cinco dos quais por ajuste directo, num total de 340 mil euros. Ninguém explica como empresas sem experiência no sector conseguiram, de repente, convites directos para contratos. Esta é a terceira parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE (que não inclui apenas luvas de nitrilo).


“Mais do que bebidas, produzimos momentos de prazer. Esperemos que gostem!” – esta é a divisa da Caves da Montanha, empresa familiar da Anadia fundada em 1943, que já vai na quarta geração. No site da empresa diz-se que está “focada na produção, comercialização e distribuição de bebidas”, sendo “líder da produção de espumantes Bairrada”.

E assim, a acreditar nas palavras da empresa, pela “dedicação e paixão” que metem naquilo que fazem, mostra-se “fácil de entender o motivo pelos qual as pessoas se deixam seduzir tão facilmente pelos nossos espumantes”. Imaginar-se-ia, por isso, que o próprio Estado e entidades públicas tivessem andado a comprar paletes de bebidas comercializadas pela Caves da Montanha, nem que fosse pela Passagem do Ano ou para acompanhar um repasto de leitão à Bairrada.

Mas não. Nada disso.

Depois dos tempos da actriz Soraia Chaves a promover os seus espumantes…

Nunca a Caves da Montanha vendeu ao Estado, ou às autarquias, à Administração Pública, ou outro qualquer ente público uma garrafa que fosse das 14 marcas que comercializa de espumante; nem uma só garrafa das sete marcas de champagne; nem uma só garrafa das 24 marcas de vinho tinto, branco e rosé; nem uma só garrafa das 10 marcas de licores (incluindo groselha); nem uma só garrafa das quatro marcas de aguardente (incluindo bagaceira); nem uma só garrafa de 11 marcas de spirit (incluindo absinto e rum); nem uma só garrafa de água da marca Voss (originária da Noruega a 3,5 euros meio litro). Nem uma para amostra.

Porém, a pandemia teve o condão de fazer com que até os empresários do ramo vinícola pudessem experimentar voos nunca conseguidos antes, e sobretudo em negócios que nunca se imaginariam possíveis.

Por isso, só por uma rebuscada associação, sabendo-se que muitos crimes são cometidos sob efeito do álcool, se poderia imaginar ver em 26 de Novembro de 2020 a Caves da Montanha a vender à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais “material de protecção individual no âmbito do plano de contingência para o novo coronavírus-covid 19 do hospital prisional”. Valor do contrato: 25.500 euros, por ajuste directo.

… a Caves da Montanha passou a usar narinas e zaragatoas para promover a sua nova linha de negócio.

Como o contrato não foi reduzido a escrito, ignora-se as quantidades e produtos, sabendo-se apenas que o valor em causa daria para comprar cerca de 1.400 garrafas de Espumante Montanha Real Grande Reserva 2010 Branco Bruto, que no mercado se encontra a 17,9 euros.

A este primeiro contrato, de material não especificado, seguiu-se outro em Fevereiro do ano passado, desta vez uma venda de 43.500 euros de máscaras FFP2 para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Foi também um contrato sem redução a escrito, pelo que se ignora igualmente a quantidade e o preço unitário, assim tendo sido realizado por “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade”. Isto apesar da pandemia já então durar há quase um ano.

Quem vende máscaras – ficou a saber-se durante esta pandemia –, também consegue comercializar todo o “pacote” associado. E assim o terceiro contrato público da Caves da Montanha foi de “testes profissionais nasofaríngeos”, comprados pelo município de Leiria. Valor do contrato: 25.000 euros, que se concretizou em Maio. Não se sabe a quantidade de testes, embora o Portal Base indique que o contrato foi cumprido integralmente um dia após ser assumido pelas partes.

No quarto contrato, a Caves da Montanha chegou finalmente a um hospital – e dos grandes. O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que integra os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente – lançou um raro concurso público, tendo a empresa vinícola da Bairrada apresentado o melhor valor face às outras 15 propostas, grande parte das quais apresentada por empresas do sector de produtos hospitalares e de saúde. Por cada um dos 80.000 testes, a Caves da Montanha cobrou 1,885 euros, mesmo assim um valor cerca de 60% acima do actual preço de mercado.

Se teve ou não pouco lucro neste negócio, ignora-se, mas, em todo o caso, a Caves da Montanha conseguiu que as portas em Lisboa se reabrissem pouco mais tarde. O mesmo centro hospitalar adquiriu à empresa vínicola da Bairrada mais autotestes, por duas vezes já este ano: em 20 de Janeiro, por 57.681 euros, e em 28 de Junho, por 37.700 euros. Em ambos os contratos a compra por ajuste directo foi justificada, mais uma vez, “por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade”.

Sobre estes contratos, com o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, o PÁGINA UM solicitou esclarecimentos à sua administração, presidida por Daniel Ferro, mas não obteve qualquer resposta.

Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte não explica as razões da selecção de uma empresa vinícola para a compra de testes de detecção do SARS-CoV-2.

Não explicando como estabeleceu parcerias com estas entidades públicas para vendas por ajuste directo, a Caves da Montanha diz apenas que a empresa, “fruto da sua experiência e contactos comerciais, garantiu a representação para Portugal de uma das principais marcas internacionais neste sector [materiais como autotestes e máscaras], conseguindo apresentar ao mercado preços mais competitivos, face aos valores apresentados por outras entidades e prazos de entrega mais reduzidos.”

E também não esclarece se o negócio deste tipo de produtos veio para ficar, sendo certo que o PÁGINA UM teve conhecimento de várias vendas feitas a supermercados ainda ao longo deste ano, quer de máscaras cirúrgicas quer de autotestes.

A empresa mantém ainda operacional uma loja virtual, disponibilizando álcool gel, autotestes e máscaras. Neste último caso, já bem baratinhas: passe a publicidade, uma caixa de 50 unidades fica agora a 1,99 euros, ou seja, quatro cêntimos cada… Nas farmácias ainda estão ainda a 7,5 euros a caixa de meia centena.


Leia a primeira parte desta investigação PÁGINA UM – Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos

Leia a segunda parte desta investigação PÁGINA UM – Escape Forte: a extraordinária história dos milionários ajustes directos de uma oficina automóvel

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