A mais recente vaga de casos positivos de covid-19, muito superior às anteriores, está a causar constrangimentos económicos e de logística nunca vistos. Se a vacina mostra fortes sinais de reduzir significativamente o risco de hospitalização e de morte, sobretudo nos mais idosos, o SARS-CoV-2 está, paradoxalmente, a “entrar” mais facilmente na comunidade vacinada, mesmo usando valores padronizados. Existem várias explicações para este aparente paradoxo, segundo um relatório da Agência de Saúde Sanitária do Reino Unido. Uma delas é tema tabu em Portugal, e a Direcção-Geral da Saúde recusa dar informações ao PÁGINA UM: a imunidade natural dos recuperados – que integram muitos dos não-vacinados – poderá ser afinal muito superior à imunidade vacinal.
É um dos paradoxos do momento: com 71% da população vacinada e mais de 54% com dose de reforço, o Reino Unido está a enfrentar uma vaga avassaladora de casos positivos de covid-19 – e essa variável está a contribuir para uma significativa queda da mortalidade –, mas a “culpa” parece ser afinal dos vacinados que apresentam incidências muito superiores aos dos não-vacinados. A situação deverá ser idêntica em outros países. Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde nunca divulga dados sobre estas matérias, embora constem do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE).
Apesar desta situação não beliscar os benefícios da vacinação na população mais idosa – cuja taxa de mortalidade nos maiores de 80 anos vacinados é de apenas 20% face à dos não-vacinados do mesmo grupo etário –, em causa estará um dos benefícios da vacina prometidos pelas farmacêuticas: uma maior protecção contra a infecção, mesmo em recuperados.
Recorde-se que a recente vaga de infecções, sobretudo no Hemisfério Norte, tem colocado uma pressão suplementar na gestão logística e económica da pandemia, com cada vez mais pessoas a serem obrigadas a confinamento por causa de testes positivos, mesmo os assintomáticos. Por exemplo, o Reino Unido conta, neste momento, com cerca de 3,6 milhões de casos activos, representando 5,5% do total da população. Este valor é cerca do dobro do pico registado em Janeiro do ano passado. Em Portugal, há um ano, cerca de 1,4% da população estava como “caso activo”; agora são 3,5% (356.477 pessoas).
A última actualização do relatório periódico da Agência de Saúde Sanitária (ASS) do Reino Unido – um dos mais completos e transparentes sistemas mundiais de gestão da pandemia – revela que o grupo populacional que mais tem contribuído para esta vaga explosiva de casos é, afinal, o dos vacinados.
A entidade estatal do Reino Unido apresenta, no seu relatório de vigilância epidemiológica, vários indicadores relacionados com o número de casos, hospitalizações e mortes por covid-19, tanto estratificados por idades como também por estado vacinal. E mostra agora que, no caso da incidência, os vacinados estão em larga maioria, tanto em número – compreensível porque são mais –, mas também em termos relativos ou padronizados – isto é, em casos no grupo em relação à totalidade de pessoas do grupo. A situação evidencia-se especialmente na população adulta activa.
De facto, nos menores de 18 anos, a incidência dos não-vacinados ainda é superior à dos vacinados (3.376 por 100.000 pessoas vs. 2.357), mas inverte-se, de forma evidente, nos grupos etários mais velhos. Nos jovens adultos (18-29 anos), a incidência nos vacinados chega a ser praticamente o dobro face à nos não-vacinados. Nos grupos etários seguintes (30-39 anos, 40-49 anos, 50-59 anos e 60-69 anos), as incidências nos vacinados são ainda superiores: mais 133%, mais 145%, mais 127% e mais 110%, respectivamente.
Este crescimento em grupos etários até aos 70 anos – que representaram mais de 75% da população do Reino Unido – justifica, só por si, o aumento galopante dos casos activos, embora sem reflexo em termos de mortalidade. Isto porque a vulnerabilidade à doença na população adulta em idade activa sempre foi bastante baixa mesmo antes da criação das vacinas.
No caso dos maiores de 70 anos, a incidência nos vacinados continua a ser superior à dos não-vacinados, mas em dimensão menor: mais 82% no grupo dos 70 aos 79 anos, e mais 31% nos maiores de 80 anos.
A ASS do Reino Unido salienta que, na base desta surpreendente discrepância, estará o facto de “as pessoas totalmente vacinadas estarem mais preocupadas com a saúde e, portanto, estando mais propensas a realizar o teste para a covid-19, acabarem por ser mais identificadas” quando estão infectadas. Esta justificação não deixa de ser curiosa, porque significaria então que a comunidade vacinada aparenta não confiar demasiado na eficácia das vacinas na sua protecção.
A mesma entidade defende que a diferença da incidência se possa dever, para além de condicionalismos de idade e ocupação, também à sua maior exposição, ou seja, “as pessoas vacinadas e não-vacinadas podem comportar-se de maneira diferente, especialmente no que respeita às interacções sociais”.
Por fim, last but not the least, o organismo britânico considera que, entre os não-vacinados, estarão pessoas recuperadas que não se vacinaram, mas que apresentam “imunidade natural ao vírus”. Ou seja, esta entidade acaba por admitir implicitamente que a imunidade natural, pelo menos no que diz respeito à (re)infecção, será superior à vacinal.
Apesar desta vaga de casos, a mortalidade total atribuída à covid-19 tem estado, quase na generalidade da Europa, em nível relativamente baixo para um Inverno anterior à pandemia. No Reino Unido, o registo de óbitos diário (em média móvel de 7 dias) situava-se nos 273 em 17 de Janeiro, correspondente a cerca de 40 óbitos em Portugal. Este valor é um quarto (24%) do valor homólogo em 2021.
Segundo o último relatório da ASS do Reino Unido, actualizado ontem, a mortalidade mostra-se bastante mais baixa nos vacinados em relação aos não-vacinados, embora de forma bastante diferenciada em função da idade. No período entre 13 de Dezembro de 2021 e 3 de Janeiro deste ano, de acordo com este relatório, a taxa de mortalidade por covid-19 (ao fim de 60 dias) era de 54,3 óbitos por 100.000 pessoas vacinadas, enquanto a dos não-vacinados do mesmo grupo etário se situava em 262,2, ou seja, quase cinco vezes mais.
A proporção nos grupos etários inferiores é sensivelmente idêntica, mas pouco relevante se se usar, em vez da unidade “por 100.000 habitantes”, a mais usual percentagem (por 100 habitantes). Nesse caso, o risco de morte de pessoas na faixa etária dos 30 aos 39 anos foi, no período em análise, de apenas 0,0005% se vacinada, e de 0,0017% para os não-vacinados do mesmo grupo etário.
No caso dos jovens adultos dos 18 aos 29 anos, as percentagens são, respectivamente, de 0.0001% e 0,0006%. Ou seja, o risco sobe seis vezes, mas mantém-se muitíssimo baixo. No caso dos menores de idade, nenhum jovem vacinado morreu (0,0%) no período em análise, enquanto a taxa de mortalidade para os não-vacinados foi de 0,0001%.
Em relação às hospitalizações, o relatório da ASS mostra também uma menor necessidade nos vacinados, mas, mais uma vez, essa diferença só é relevante nos mais idosos – e também mais vulneráveis à doença. Para as pessoas com mais de 80 anos, o rácio de internamentos dos vacinados foi de 88,7 por 100.000, enquanto o dos não-vacinados se situou em quase 263.
Esta diferença também se apresenta significativa nos grupos etários entre os 50 e 79 anos, com o risco de internamento a ser cerca de cinco vezes superior nos não-vacinados face aos vacinados.
Essa proporção mantém-se até nos menores de idade, mas com um aspecto relevante: nestas idades o risco de internamento é incomensuravelmente inferior ao dos mais idosos. O risco de hospitalização por covid-19 num vacinado com mais de 80 anos é oito vezes superior ao de um menor não-vacinado, o que confirma, mais uma vez, que a covid-19 não constitui um problema com relevância em idades pediátricas.