Cânone P1

Eça de Queirós

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A ideia fundamental que, à partida, nos norteia aqui é a de que a produção de Eça, enquanto escritor de romances, não pode ser desligada da outra actividade, por ele também exercida, que normalmente se designa, com algum simplismo, por jornalística.

Mais amplamente, pensamos que toda a sua prática de escrita não romanesca, por vezes entendida como ancilar relativamente àquela que se reconhece tradicionalmente como a que é verdadeiramente literária, é um ponto importante, não apenas por ser preparatória, ou mesmo propiciatória, da que o afirmou como grande autor, mas também por constituir uma prática com a sua dimensão própria, por si só válida como trabalho criativo.

Contudo, é o referido aspecto preparatório que nos vai interessar essencialmente aqui. Assim, assumimos que é na aprendizagem feita nos jornais que se desenvolvem muitas das suas capacidades de representação, alguns dos mais importantes mecanismos formais de escrita criativa que lhe darão capacidade para, nos seus romances, gerar, desenvolver e manter a densidade expressiva, a capacidade de estruturar os mecanismos de domínio do texto que o tornam num dos autores mais importantes do seu tempo. É a partir dessa formação que a sua obra de maior duração, mais desligada da efemeridade do escrito consumível diariamente, se constitui como um filão inesgotável de registos dos discursos, os quais recolhem toda uma tradição da sabedoria retórica e poética para originarem uma novidade revolucionária enquanto obra artística.

O aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em Eça, é o da segunda voz. Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade – a entidade Eça, neste caso, o cidadão que intervém como jornalista nos debates do seu tempo –, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca – ou daimon – que também assaltava Sócrates.

Tal voz, por cortar uma autenticidade monológica ao discurso do autor, actua, enquanto discurso, de um modo muito semelhante ao mecanismo que Anabela Rita apresenta como processo de visualização nas crónicas de Eça, no Distrito de Évora. Esse mecanismo, segundo a autora referida, funciona do seguinte modo: “Quando a distância entre observador e observado aumenta, torna-se espectacular (…) e pode favorecer o desenvolvimento de uma atitude que o cronista insinua como caracterizada por um certo «diabolismo» (1998: 79)”.

Ora, embora nos mantenhamos inteiramente de acordo com a autora citada quanto à distância e ao espectáculo gerado por essa distância, o que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o próprio Eça o constrói, numa crónica. Revela ele, aí, em simultâneo, como está consciente desse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da descrição do processo mais um elemento constituinte do espectáculo verbal.

O texto em questão é uma das suas Cartas de Inglaterra, que ele intitula “Uma partida feita ao «Times»”. Nessa peça jornalística (datada de finais dos anos setenta ou princípios dos oitenta do séc. XIX), Eça, depois de revelar a seriedade e o profissionalismo com que o «Times» praticava a recolha dos discursos dos grandes políticos e oradores ingleses da época, levando o seu escrúpulo a tal ponto que os autores preferiam recolher nele o material para a publicação das obras em livro do que recorrer às suas próprias notas ou redacções originais, apresenta, como acontecimento extraordinário e singular, um caso de falha à norma do sistema.

A singularidade, porém, não nasce apenas da perturbação, do acontecimento imprevisto, como Eça explica claramente; resulta, também, como cautelosamente regista, do facto de, em certo dia, o «Times» ter publicado o discurso do mais previsível dos oradores: o mais “austero”, “doutrinário” e “rígido espírito” (s/d: 185) do ministério britânico de então. Sendo o “contrapeso conservador desse ministério”, representante da “tradição” e da “fórmula whig”, esperava-se, da sua crónica, a “majestade oficial” que se “honra em guardar as coisas supremas – a Coroa, a Igreja, a aristocracia territorial, os privilégios, a integridade do império” – coadunando-se com o modo “grave, ríspido” com que sempre fala, “vestido de negro” (p.185).

Ora, o que torna o caso ainda mais perturbante é que as expectativas são quase completamente satisfeitas, excepto a tal partida que, segundo Eça, comentando previamente o relato, se torna, no interior de tanta previsibilidade, uma “atroz e deliciosa facécia” (p. 185). Note-se a contradição do oximoro, porque ela vai suster toda a apreciação de Eça. Não dizemos argumentação, mas apreciação, porque, aqui, o jornalista tira lições quase fantásticas da paródia que se deleita a anotar no impulso de um encantamento, ou sob o efeito de uma fascinação. De acordo com Eça, que, de agora em diante, tentaremos seguir num resumo feito de palavras suas, “alguém, um monstro, um celerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substituiu-as por outras (…) E que linhas!”.

De acordo com o cronista, o texto intruso era de bradar aos céus, sendo-lhe quase impossível a ele, comentador, “conservar-(se) casto” e “explicar essas linhas aos leitores da «Gazeta de Notícias»” (p.186).

Tais “linhas, intercaladas no severo discurso do severo ministro, eram (…) linhas eróticas!

Era o grito convulsivo de desordenada lubricidade; era o ruído de uma besta agitada por todas as fúrias de Vénus; era como esse rouco e seco bramar dos veados, nos bosques, sob a calma do Estio; era a balbuciação ébria dos faunos da fábula, do deus Príapo, dos sátiros caprinos que vagueavam pelos pendores sagrados do monte Olimpo, ululando, trincando a brancura dos lírios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras ninfas das águas… Era tudo isto e era ainda mais” (p. 186).

Para lá desta sugestão eufemística, extremamente precisa atendendo a que os termos usados pelo “intruso” são de evitar, por pudor, o que é impressionante notar no relato de Eça é o apelo fabulatório que as irreverências dessa voz intrometida, desse discurso invasor, lhe provocam.

Assim, não são os termos, os nomes nimbados de obscenidades impronunciáveis, tanto mais apelativas quanto ficam obscurecidas pela luz perversa da sugestão, que nos parecem o mais interessante da crónica. É, sim, a panóplia de hipóteses fabulatórias que desencadeia em Eça a tropelia. É isso que nos parece mais significativo para a compreensão de quanto a actividade jornalística foi importante para o fortalecimento de um certo tipo de criação poética que marcou a sua obra e que, habitualmente, designamos pelo termo demasiado generalizador de ironia.

De facto, os seus comentários à crónica revelam algo desse mecanismo. Até pelo recurso à forma do imperativo do verbo “imaginar”, percebe-se quanto o facto, a ocorrência, ao desencadear, pela sua singularidade, a fantasia do observador, lhe espicaça os processos de fabulação, quando escreve: “Imaginem o efeito ao outro dia, quando milhares de números do «Times», contendo essa abominação, penetram nesses recatados interiores ingleses, onde (segundo aqui dizem) habita o tipo superior da família cristã” (p.187).

Tudo se passa como se o efeito de intromissão do discurso invasor, a emergência da terceira pessoa, o ele, monstruoso quase pela sua radical clandestinidade, se propagasse como mecanismo, e fizesse apelo a outros monstrinhos, outros clandestinos discursos invasores que assomassem o da razão sob a tutela do “imaginem”. O episódio é infeliz, a atitude do misterioso usurpador da palavra é atroz, condenável, mancha o irrepreensível profissionalismo dos repórteres, taquígrafos e redactores do grande jornal britânico, mas a imaginação fica estimulada. E, imaginar, no universo da facécia cronística, é uma expansão desenfreada do discurso narrativo. Como um rizoma, o facto sugere outros factos que se encadeiam e desenvolvem pelo simples apelo que é o parodiar da ordem previsível, do sistema organizado das normas e das leis.

O cronista, de facto, não se contém, já não imagina o genérico, imagina as cenas, como sequências emparelhadas de grotescas convulsões no interior dos lares exemplarmente cristãos. E é ele quem as apresente em fieira:

“Imaginem-se então as cenas! Aqui é uma velha e devota duquesa cheia de entusiasmo pelas questões sociais, que se aconchega na sua rica poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratória de Sir William – e que de repente estaca, encara o «Times», limpa as lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o período, passa a mão trémula pela face, procura ansiosamente o seu frasco de sais, volta ainda a verificar se a não enleia uma alucinação, e, arremessando enfim, para longe, a gazeta imunda, sai da sala a passos ofendidos […].  Além é um casal de noivos, que, anichados no mesmo sofá ao pé do fogão, com os braços entrelaçados, percorrem o «Times» […] para ler o compte-rendu de outros casamentos elegantes […] quando de repente lhes salta de entre as linhas o jorro imundo das apóstrofes eróticas! Noutra casa é uma fresca e loura criaturinha de dezoito primaveras, puro lírio doméstico, que faz a leitura do «Times» a um velho tio general, tolhido de gota, relíquia venerando das guerras peninsulares; o velho escuta, pouco atento à política do dia, que detesta, mas muito ao encanto daquela voz de ouro ao seu lado; de repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se cor de uma rosa, treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lágrimas dos olhos, e foge, deixando o imundo «Times» do general assombrado: – ou então, caso pior, a doce rapariga, na sua candura de flor de estufa, não compreende, imagina que aquilo é política, continua a ler com a sua voz de ouro – e o venerável tio ouve de repente sair dos lábios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que há de mais casto na música de Weber, um enxurro torpe de babuges lúbricas” (p. 188-189).

     Já não é só o encadear dos casos, notável fenómeno de imaginação fabulatória desencadeada, que nos interessa mais aqui. O que nos parece de destacar, de agora em diante, no texto desta crónica, é que, depois de desenrolada a fieira destes casos hipotéticos – ilustrações de um imaginário espanto desencadeado pela emergência do intruso erótico, terceira pessoa obscena, diabolicamente brincalhona –, o autor comente o caso como se no seu próprio arrazoado interviesse, também, a segunda voz intrometida. De facto, escreve Eça:

“O autor da facécia ainda não se descobriu. É sem dúvida um monstro, e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunais ingleses o demoliriam. Mas, por outro lado, considerando […] que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada pruderie a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros artistas – eu não posso deixar de pensar, com laivos de regozijo, que a Providência tem armas oblíquas e terríveis[…]. É, digam o que disserem, divertido. E, terminando, peço às almas caritativas e justas uma boa risada à custa do «Times» (p.189-190).

Consideramos de toda a justiça encarar este texto como um exemplo privilegiado do modo de trabalho segundo o qual o processo de criação depende de uma perspectiva que, fazendo funcionar o acontecimento bruto como uma motivação, encadeia os dados do relato construído com as réplicas e as sugestões hipotéticas que entram num diálogo de absorção e transformação desse mesmo relato. O horizonte de uma tal transformação é, parece-nos, a afirmação dos direitos plenos do riso e da facécia face ao discurso monológico e, sobretudo, o enunciado autoritário.

Não é por acaso que a grotesca transformação relatada nesta crónica recai sobre o texto do mais austero de todos os conservadores de um governo em que eles abundam. Do nosso ponto de vista, é neste modelo de fabulação parcial do “imaginemos”, presente de modo insistente nas crónicas de Eça, que se afina o processo de polémica oculta, o qual, na nossa opinião, é um dos fundamentos mais fortes da ironia de Eça. O percurso discursivo poderia ser estabelecido, num primeiro momento, segundo as palavras de Bakhtine:

“O objecto sobre o qual se orienta a polémica aberta é o discurso do outro – ao passo que, na polémica oculta, o discurso é dirigido a um objecto habitual, denotando-o, representando-o, exprimindo-o, e atingindo o discurso do outro de modo indirecto, mas atingindo-o, ainda assim, no próprio objecto. Por essa razão, o discurso do outro começa a exercer do interior uma influência sobre o discurso do autor. Assim, na polémica oculta a palavra é bivocal, embora as relações entre as duas vozes sejam algo especiais” (Bakhtine, 1970: 255).

Contudo, para examinarmos os processos queirosianos, devemos ter em conta um quadro mais matizado da questão. Em primeiro lugar, na crónica, o que se afina é a relação entre a voz de grupo restrito, eco da ideologia dominante, omnipresente nos discursos escritos, escolarizados, bem-educados, e a voz, também ela colectiva, do todo social mais amplo, que se relaciona, enquanto grupo dominado, com os discursos previsíveis, monológicos e autoritários, do poder.

A voz assumidamente autoral faz eco, aparentemente em harmonia, do senso comum que decorre de uma submissão às premissas da autoridade. Essa voz é, assim, a de um amplo colectivo que não se questiona, que não desmonta o discurso autoritário. No entanto, por intervenção de uma entidade anónima, a malícia, o riso, a emergência do vocabulário e da fraseologia “indecente” manifestam-se como imprecação, insulto, liberdade brincalhona e desrespeito carnavalesco. O que a generaliza e a torna consentida é o riso, a alegria espontânea, o espírito insurrecto da paródia.

Nesse sentido, o demónio socrático, que poderia ser entendido como o emergir de uma má consciência inconformista perante o triunfo arregimentador do discurso do poder, torna-se, face à ideologia conservadora e eclesiástica, o símbolo do próprio malefício satânico. E o riso, porque lhe é associado, é condenado ou só é periódica e controladamente consentido.

Ora, Eça, enquanto jornalista, porque tem de assumir autoralmente a voz do bom senso instituído, multiplica os pontos de emergência da outra voz. Não assume a da insurreição porque é um instruído, faz parte do grupo para o qual a obscenidade ou a facécia é de mau gosto ou loucura. É por essa razão que ele cria, a partir de uma brincadeira real, uma entidade de dimensão carnavalesca: o monstro que perversamente transformou o discurso da autoridade austera num chorrilho indecente. É essa voz que ele fixa como entidade fictícia (dado que clandestina e anónima – que nunca veio a ser descoberta) para poder fazer emergir, através dela, a sentença crítica sobre o discurso conformista, conservador – e mesmo reaccionário, como entenderíamos hoje o que se lê nas entrelinhas.

Tal mecanismo de bivocalidade, contendo polémica oculta, emerge em muitas das suas outras crónicas ou escritos para periódicos. Um caso exemplar é o da encenação que ele pratica, segundo os tiques de Pinheiro Chagas, numa polémica que mantém com este, datada de 1880, que foi recolhida no volume Notas contemporâneas (s/d). Aí, resumindo, para rebater, o discurso do adversário que, insinuada e denegativamente, o acusava de se vender para dizer mal da pátria, Eça argumenta e, para consolidar o seu ponto de vista, fabula segundo os processos do outro:

“Quando você fala de somas recebidas da «Gazeta de Notícias», do alto preço por que me vendi para injuriar o país, etc., [não me parece prudente]. Eu bem sei que você usou notáveis precauções oratórias: mencionou o boato, e demoliu logo o boato; depois tornou a pôr de pé o boato, para volver a derrubá-lo com furor. Isto é amável; mas enfim, você traiu a confidência que eu lhe fiz. Lembra-se, Chagas? Foi naquela noite de tormenta, na encruzilhada, a poucos passos da capela solitária onde estava dobrando a finados. Eu cheguei rebuçado num manto cor de treva, e punhal à ilharga, deixando pela sombra um tinir de esporas. Um relâmpago fuzilou, e houve um tremolo na orquestra. Até eu lhe disse, lembro-me bem:/- meu Chagas, esta situação patética parece mesmo inventada por você, amigo!/ Você respondeu com engenho:/- Parece. Eu teria colocado alguma luz eléctrica, batendo as roupagens de uma virgem, cuja alma o mundo não compreende…/ Então eu arrastei-o para o pé do cruzeiro, onde bruxuleava uma lâmpada; e, sentados sobre os degraus de pedra fria, eu comecei a contar-lhe o meu segredo: que a «Gazeta de Notícias» me dava um milhão (um milhão em ouro) para eu injuriar semanalmente Portugal, deitar peçonha nas nascentes do Alviela e fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões!/ Você tremeu, amigo! E murmurou-me ao ouvido estas palavras: – Prudência, prudência./ Eu repliquei com furor:/ Hei-de beber o sangue de Portugal. Hei-de beber-lho!/ Um trovão retumbou. Sobre um dos braços da cruz piou um mocho. E separámo-nos, na estrada negra, quando dava meia-noite na torre da catedral./ Você tinha-me jurado segredo. E vem agora publicar tudo no «Atlântico»! Hei-de assassiná-lo no quinto acto” (pp. 59-60)

Não é possível deslindar aqui todas as consequências pragmático-discursivas deste processo. Dado que o nosso objectivo central é o de tentarmos reconhecer o valor do mecanismo retorico-poético e não analisarmos as questões que estão por detrás dos termos da polémica, limitemo-nos a observar aqueles resultados que nos ajudam a compreender a oficina discursiva e fabulatória de Eça. Para fazer valer os seus argumentos, Chagas recorre ao boato. O mecanismo que utiliza é da preterição, através da qual, ostentando a rejeição da calúnia que afirma correr como boato, enuncia as acusações. A voz que as sustenta, no entanto, não é a sua. O autor do discurso, assim, cria uma voz tornada anónima pela generalização do “diz-se que” do boato e, afirmando a sua rejeição do dito, não deixa de o dizer.

O efeito não é só o de enunciar a acusação que, embora rejeitada pelo eu da enunciação, fica a pairar como dúvida – o mais importante do efeito é que o boato, sendo colectivo e anónimo, partilha dos valores do saber comum, da vox populi, fonte, como se sabe, de um saber quase divino. Tal afirmação negada institui uma entidade enunciativa extremamente poderosa porque não só é difusa e de insidiosa autoridade, como é irrebatível, dado não ter personificação que possa ser questionada: no fundo é o dizer dessa monstruosa terceira pessoa que é todo o mundo e ninguém.

É pelo facto de perceber e analisar com exactidão o processo do outro, acusando-o de espalhar e rebater retoricamente o boato, que Eça se revela o poderoso mestre no uso dos mecanismos da ironia e da paródia. De facto, a sua réplica não se limita a ser uma construção intuitiva, atenta aos processos já elaborados do debate retórico, que os retoma segundo as práticas dos mestres. Revelando o reconhecimento dos mecanismos da insídia construídos pela preterição, Eça sublinha o irreal e inverosímil do boato, reconstruindo-o como plena fantasia do “dramalhão” à maneira dos que o seu antagonista costumava fazer.

Assim, parodiando o conteúdo da acusação pela encenação burlesca de uma cena teatral em que todos os mecanismos poéticos se revelam, Eça desmonta o dito através da espectacularidade melodramática evidente do dizer. O ente anónimo da acusação transforma-se na carnavalização do dizer, em que a origem do dito é atribuída ao próprio vilão – mascarado como tal — confessando o seu crime, em segredo, àquele que ostenta o saber da pérfida traição à Pátria.

Neste caso, o efeito da réplica não se limita ao rebate. A resposta procura atingir criticamente o próprio interesse político e ideológico de um tal debate. De facto, se Chagas recorre ao artifício retórico da preterição, Eça lança o descrédito sobre tal artifício transformando-o num melodrama. Assim, irrealiza-o poeticamente. Mas não se limita a essa operação. Sublinhando os tiques sentimentalões do melodrama romântico em que insere a fonte verbal do dito, Eça gera o efeito de paródia, lançando a dúvida sobre o valor e a autenticidade do drama, e o interesse do investimento afectivo que o dramatismo convoca.

Sede da Fundação Eça de Queirós

O quadro cénico resultante, o drama montado pela simultaneidade das vozes que ora se rebatem ora se repetem até à caricatura, resulta no apagamento ou, pelo menos, na minimização da importância da fonte de fidedignidade. Sendo todos os dizeres passíveis de suspeita, nenhum está, indiscutivelmente, acima de qualquer suspeita. Se todos são submetidos ao efeito de caricatura, o riso atinge-os a todos, pondo em causa a existência de um lugar ou de uma posição de onde a verdade jorre fora de qualquer suspeita.

Ora, esse mecanismo, que, na literatura, se fará um verdadeiro sistema de indagação epistemológico, dando ao verosímil literário a força de um questionar implacável de problemáticas e pontos de vista, emerge, no jornalismo, como processo de indagação dos valores éticos e ideológicos que se debatiam na época. Antes de o ter desenvolvido como procedimento poético, nas cenas de satirização e de paródia que tão bem constrói na sua ficção ao questionar a condição humana e a hipocrisia que toda a formação social constitui, Eça aprende a domar o desdobrar das vozes, o formular da equidistância dos pontos de vista e a matizar os confrontos ideológicos desde as primeiras crónicas.

Curioso é que esse processo da intromissão de um ponto de vista insurrecto tenha aparecido, por uma associação do trabalho do redactor à atmosfera de Carnaval, nas crónicas do Distrito de Évora. Sirva-nos de exemplo dessa associação, a própria relação que Eça estabelece numa das suas primeiras crónicas de 1867, na qual ele teoriza a própria crónica. Escreve o então jovem jornalista:

“Esta época do entrudo é realmente feliz para a crónica. A crónica encontra sempre contra si as ocupações políticas, os incómodos individuais, a preocupação das negociações financeiras, a instabilidade dos partidos: ela é sempre jovial, mas não pode respirar, viver, porque encontra em volta de si uma época séria. Senão veriam./ Mas, quando chega o carnaval, há harmonia entre a crónica e a época, se a crónica diz folguemos, a época diz desvairemos. E aí está porque, assim que chegam estas épocas, ela se veste de cores alegres, vem palreira e folgazã dar as boas-festas aos que têm a honra de a ler, de a ouvir, de lhe escutar as anedotas” (in, Anabela Rita, 1998: 39-40).

Quase poderíamos utilizar este texto do escritor debutante como prefácio à sua metodologia poética futura. Apercebemo-nos, nela, das motivações que o arrastam para essa posição de implicação demoníaca. A crónica, na sua capacidade inventiva, gera-se como acto de diabrura, de incompatibilidade ou pelo menos de adversidade, relativamente ao espírito sério. É quando a conceptualiza que Eça vislumbra os mecanismos da sátira em sentido generalizado. Não o confronto ou a polémica entre razões que se querem apagar mutuamente, mas o voltear brejeiro, atitude palradora e alegre de encarar as contradições do mundo, irmã, enfim, do Carnaval.

Parafraseando Bakhtine, estudioso que, fundamentalmente orienta o ponto de vista que aqui estabelecemos, poderíamos dizer que “a realidade da época, tão ampla e plenamente reflectida na obra de” Eça “fica iluminada pelas imagens da festa popular” e, assim, “à luz particularmente lúcida (luminosa e luciferina, simultaneamente, diríamos nós) das imagens da festa popular, todos os acontecimentos e coisas da realidade adquirem um relevo, uma plenitude, uma materialidade e uma individualidade muito particulares. Libertaram-se de todos os liames dos sentidos estreitos e dogmáticos. Mostraram-se numa atmosfera de perfeita liberdade” (Bakhtine, 1970a: 450).

Não nos afastaríamos muito do estudioso russo citado se afirmássemos que, dessa posição retórica de profundas implicações poéticas na sua obra futura, Eça soube extrair os dados fundamentais segundo os quais, nos seus romances, representa e suscita a diversidade excepcional dos factos e episódios nela englobados. O momento do riso, da festa livre da rua, é o momento do olhar liberto, da palavra solta, que a todos nomeia (autor incluído – pois que, também ele, é objecto da paródia, ao fornecer facécias e enunciados menos vinculados à verdade) e a tudo indicia para soltar o palreio folgazão.

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia :

Bakhtine, Mikhail, 1970, La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

Bakhtine, Mikhail, 1970a , L´oeuvre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris

Queirós, Eça de, s/d, Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa

Queirós, Eça de, s/d, Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, Livros do Brasil, Lisboa

Rita, Anabela, 1998, Eça de Queirós cronista, Cosmos, Lisboa

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