Recensão: Feras e Homens - A fauna no Portugal Medieval

Tudo se extingue, menos a estupidez

por Paulo Moreiras // Novembro 16, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Feras e homens: a fauna no Portugal Medieval

Autores

MIGUEL BRANDÃO PIMENTA e PAULO CAETANO

Editora

Bizâncio

Cotação

16/20

Recensão

Cinco anos depois de Urso-pardo em Portugal Crónica de uma Extinção (2017), livro que narrava a história de como o urso-pardo viveu, sobreviveu e se extinguiu em território português, os mesmos autores, Miguel Brandão Pimenta (1950) e Paulo Caetano (1966), regressam aos seres vivos que existiram no Portugal Medieval, “desde os grandes quadrúpedes, como o zebro, aos mamíferos marinhos como o golfinho, passando pela cabra-montês, o açor, o caimão ou o sável”.

Ao longo de 320 páginas, e através de oito capítulos, desde A Caça na Idade Média até A Falcoaria ao Serviço da Nobreza, de A Fauna na Alimentação Medieval a uma Viagem pelas Fontes Históricas, os autores traçam um retrato notável da fauna existente no Portugal da Baixa Idade Média, num período compreendido entre o ano 1000 e 1500. Destaque também para os Anexos, com curiosidades como A fauna na heráldica autárquica, o Índice de animais e plantas ou um Glossário que muito elucidam o leitor.

Para consubstanciarem melhor esta descrição, os autores percorreram “alguns dos arquivos e bibliotecas públicas de Portugal”, folhearam “milhares de páginas de velhos livros e de documentos manuscritos”, consultaram “forais, cartas de couto, inquirições, livros de viagens e crónicas medievais”, assim como documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, entre muitas outras fontes, além de visitas a diferentes museus e mosteiros de Portugal.

Contudo, não se pense que esta é uma obra científica, assente numa linguagem académica, antes se apresenta como um livro de divulgação, acessível a todas as pessoas e que se lê com muito prazer, numa escrita fluida, com diversas histórias e apontamentos curiosos, “enriquecido com diversos mapas de distribuição, fotografias e ilustrações”.

O livro conta-nos as histórias relacionadas com a caça ao urso-pardo, ao javali ou ao veado, bem como as perseguições realizadas por todas as terras de Portugal aos lobos, incentivando-se fortemente a sua captura: “Desde tempos medievais até ao primeiro quartel do século XX, eram conhecidas as figuras dos lobeiros e bicheiros – caçadores que se dedicavam à perseguição ao lobo, colocando armadilhas e venenos ou saqueando os covis”.

De acordo com os autores, terá sido apenas em 1978 que se realizou oficialmente a última batida ao lobo em Portugal, na serra do Soajo: ”Sob pressão da população, as autoridades do Parque Nacional da Peneda Gerês vacilaram. Depois, contrariadas, cederam sob o pretexto de corresponder aos anseios de uma população que teimava em manter viva a tradição popular: mesmo que fosse à custa da sobrevivência da espécie.”

Outro tipo de caça era aquela realizada com a ajuda de falcões ou gaviões, a cetraria, também conhecida como volateria, altanaria ou caça de alto voo. Caçavam-se assim diversas aves silvestres, como a abetarda, a garça-real, a perdiz, o galeirão ou o maçarico.

Devido ao crescimento demográfico exponencial verificado na Baixa Idade Média, a partir do século XII, o consumo de peixe em Portugal atingiu níveis elevados: “Até ao século XII, a sociedade medieval consumia sobretudo o peixe de água doce que migrava ao longo dos rios, como o salmão, a enguia ou o esturjão”. Do mar, entre outras espécies, consumiam-se sobretudo a sardinha, o cherne, a solha ou as azevias.

Um dos capítulos mais pertinentes é o dedicado à “Fauna na alimentação medieval”, que nos dá uma visão bastante alargada sobre os hábitos alimentares em Portugal na Idade Média, onde pontificavam algumas excentricidades, como as mãos de urso (foi a 2 de Dezembro de 1843 que se abateu o último urso em Portugal, “durante uma batida realizada junto do ribeiro do rio Mau, em Montalegre”). Não só existem referências históricas acerca do consumo de carne de urso como a sua carne se encontrava tabelada em vários mercados, como por exemplo, “no açougue real da freguesia de Terena, no actual concelho do Alandroal”.

Este é um livro com muitas histórias, curiosidades e pistas de leitura interessantes para o leitor explorar, numa abordagem multidisciplinar e transversal da História de Portugal, mas também da sua gastronomia, e, principalmente, das suas tradições, felizmente, em boa hora, caídas em desuso ou proibidas.

Após a sua leitura, é assustador pensar em toda a biodiversidade que existiu neste humilde rectângulo e que, pela estupidez dos homens, várias espécies foram levadas à extinção. Possa este livro servir não só para conhecermos o passado mas também nos ajudar a reflectir acerca da construção de um futuro melhor.

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