Dia 4 de Dezembro. Mais um ano de Camarate. Já lá vão 42.
E as memórias começam a ficar mais turvas, como a neblina desta manhã. As notícias são escritas por jornalistas sem memória, com pouca capacidade para descobrir a mentira nos detalhes.
Carrego comigo uma herança: desde que há três anos faleceu Augusto Cid, devo ser o jornalista que mais sabe sobre Camarate – pelo menos aquele que ainda fala disso em público e escreve sobre o assunto. Por isso, tenho esta estúpida e inglória obrigação de estar constantemente a chamar a atenção dos outros jornalistas para os factos errados.
Friso que não são factos que possam ser discutidos de forma subjectiva, com testemunhos contraditórios ou conclusões científicas de leituras dúbias. Não. São os factos reais e históricos que nunca poderão ser alterados. Não podem? É pena verificar que podem. Pequenos detalhes que alteram toda a história, como este que vi ao ler uma notícia nesta manhã. Está no Diário de Notícias, e intitula-se “PSD e CDS lembram Sá Carneiro e Amaro da Costa“.
Acredito que quem a escreveu não o fez por mal, mas está a mudar a história e a esconder as verdadeiras circunstâncias da morte de Sá Carneiro e demais ocupantes do avião. Diz o texto jornalístico, não assinado:
“Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa dirigiam-se à cidade do Porto para apoiar o general António Soares Carneiro, candidato da Aliança Democrática (AD) às eleições presidenciais, no que seria o comício de encerramento da campanha“.
Não. Não era “o comício de encerramento da campanha”.
Dirão alguns que é um detalhe sem importância e que não muda em nada a opinião que têm sobre o que aconteceu. Mas muda. E muda muito.
Muda porque, tal como num livro policial, este é o detalhe que revela o assassino. Está ali, na verdade que o DN revela neste engano – porque não acredito na inteligência de uma cobertura propositada, mas sim no equívoco de memória de quem elabora o texto sem saber a gravidade do que informa – que se encontra a chave para entender o atentado: como se organizou a morte de Sá Carneiro.
Vamos então aos tais factos históricos que ninguém pode negar, nem o DN.
Os factos dizem que, no dia 3 de Dezembro, uma quarta-feira, houve um comício no Porto com a presença do candidato Soares Carneiro. E com a presença de Adelino Amaro da Costa. Regressaram todos no Cessna fatídico, após esse comício. E, no dia em questão, dia 4, estava marcado um comício EXTRA na cidade do Porto. A cidade natal do então primeiro-ministro Sá Carneiro.
Só que o comício com Soares Carneiro, há muito marcado para esse mesmo dia na cidade de Setúbal, também previa a presença de Sá Carneiro. Faça-se notar ainda que o primeiro-ministro decidira que não iria a comícios fora da área de Lisboa em dias da semana, pois isso seria descurar a sua responsabilidade principal como governante a favor de um papel de líder político numa campanha presidencial. Assim, só iria ao Porto e outros locais fora de Lisboa aos fins-de-semana ou dias feriados.
Por isso, esteve ele em Évora no feriado do 1 de Dezembro. Por isso, nunca ele deveria ir ao Porto na quarta-feira dia 3. Mas foi no dia 4. A um comício EXTRA e especialmente preparado para ele. Onde era inevitável ter de ir de avião. Naquele avião.
E é aqui que o plano se torna mais detalhado e onde, ainda hoje, é perigoso fazer estas perguntas. E entendo que ninguém as queira fazer. Por isso é que eu não me importo de ser o único a ter de as fazer: está na minha natureza de homem liberto.
O avião que deveria levar Sá Carneiro ao comício EXTRA, combinado especialmente para ele, era o único aparelho disponível no normal mercado de aluguer dos aviões-táxi. E porquê? Porque os outros aparelhos tinham sido apreendidos uma semana antes no aeródromo de Tires pela Guarda Fiscal a pretexto de irregularidades burocráticas com licenças de utilização.
Quem mandou a Guarda Fiscal (ou a autorizou) a levar a cabo aquela operação num momento em que o país estava a ter uma campanha eleitoral e correndo o risco de ser acusada de instrumentalização política? Essa questão nunca se colocou na altura, apesar do candidato mais prejudicado ser aquele apoiado pelo Governo.
O único avião que não foi apreendido era o que estava em piores condições. E foi aquele que estava ao serviço do rival, Ramalho Eanes. Seria esse que viria, precisamente, a cair em Camarate quando seguia para o comício EXTRA no Porto. Esse avião fora sub-alugado pelos donos dos aviões apreendidos em Tires e que precisavam de cumprir o contrato de aluguer com a campanha de Soares Carneiro.
Todos estes factos demonstram como Sá Carneiro foi conduzido para aquele avião em específico, com o pretexto de ir a um comício EXTRA no Porto. Um comício que não era de “encerramento de campanha”, mas sim especialmente preparado para a sua presença, aproveitando-se o facto de ser natural do Porto, pelo que ele dificilmente poderia dizer não à sua presença. Sobretudo havendo um avião para o levar ao fim do dia de trabalho de Lisboa ao Porto e trazê-lo de volta, logo após o comício, de modo a estar de manhã a trabalhar em Lisboa. E tudo isto foi organizado dentro do círculo interior da campanha eleitoral.
Os nomes, do director de campanha que marcou o comício EXTRA e do ministro das Finanças que tinha a tutela da Guarda Fiscal que mandou apreender os aviões em Tires são públicos. O nome da pessoa que, no dia 3, esteve no Porto e pediu ao empresário João Macedo e Silva, dono da RAR, que emprestasse um outro avião Cessna – idêntico ao de Camarate, mas mais seguro, para transportar Sá Carneiro de Lisboa ao Porto e, após o comício, de volta para Lisboa, mas que nunca chegou a ser usado – também há muito que é conhecido.
Sabe-se tudo sobre Camarate. Não há hoje qualquer segredo. Mas os jornalistas insistem no nevoeiro da falta de memória e, com isso, sem o saberem, estão a condenar toda uma sociedade às trevas, à exploração, à mentira, miséria, fome, subjugação e tragédia.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Frederico Duarte Carvalho participou, na qualidade de autor do livro Camarate: Sá Carneiro e as armas para o Irão, na X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate em 2013. O seu depoimento está AQUI na íntegra. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.