Duas verdades inquestionáveis: a História é escrita pelos vencedores, e os políticos, todos, sem excepção, aproveitam-se dessa vantagem.
Lembro-me, amiúde, disso quando falo da Guerra Colonial.
Salazar e Marcelo Caetano obrigaram todos os jovens portugueses, que não fossem seus familiares, ou descendentes das famílias donas do país, ao serviço militar e à guerra nas colónias.
Para eles, províncias ultramarinas.
Os que se recusavam tinham de emigrar e passavam a ser considerados desertores e impossibilitados de regressar à Pátria, sob pena de prisão imediata, por terem optado pela deserção em vez de “lutarem pela manutenção da integridade nacional”.
Com o 25 de Abril, e derrota daquele regime, os tais “criminosos desertores” não só regressaram ao seu país como foram recebidos como heróis, “por se terem recusado a participar numa guerra injusta, que pretendia manter, na sua posse, algumas colónias usurpadas aos seus legítimos proprietários”.
Passando a carga negativa para os antigos combatentes, muitos dos quais escondem, hoje, as medalhas que lhes tinham sido atribuídas, em pomposas cerimónias oficiais, e que antes ostentavam com orgulho.
O grande problema das guerras foi brilhantemente sintetizado por Erich Hartmann – considerado o melhor piloto alemão que, durante a Segunda Guerra Mundial, voou em 1.404 missões e participou em 825 combates aéreos – numa única frase: “A guerra é um lugar onde jovens, que não se conhecem e não se odeiam, se matam, por decisões de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam.”
Salazar e Marcelo Caetano eram dois desses velhos e que recolhiam ensinamentos de outros velhos, seus antepassados, que admiravam.
Um afilhado do velho Marcelo Caetano, o actual Presidente da República Portuguesa, lembrou, no dia da Restauração, um outro episódio reescrito pelos historiadores e que teve como principal figura o velho D. João IV.
O Rei português, sabendo que os ciganos portugueses, já em 1640, tinham grandes ligações, incluindo familiares, à comunidade cigana espanhola, não quis correr o risco de não só deixar de poder contar com o seu apoio na luta que teria de travar como, bem pelo contrário, os ver tomar partido pelo inimigo.
E obrigou-os a alistarem-se no exército nacional.
As opções eram simples: os que recusassem a incorporação seriam presos, os que a “aceitassem” passavam a ter – e os seus – a possibilidade de poderem viver livremente, depois, em todo o território nacional.
Colocados entre a espada e a parede, os ciganos acederam.
Muitos deles, como se sabe, acabaram por ser mortos nas batalhas que se seguiram.
Os 250 ciganos, agora elogiados por Marcelo Rebelo de Sousa, não pelos seus actos de heroísmo – e alguns deles até podem ter sido heróis, que isto de ver a morte de frente tanto pode dar uma grande velocidade na fuga como uma força enorme para combater quem se lhe oponha –, mas por serem verdadeiros patriotas, o que, repete-se, não eram de todo, deviam ter uma convicção tão forte na necessidade do seu empenho em prol da Pátria como os combatentes de Viseu, Pinhel, Beja e Chaves na Guiné, Angola ou Moçambique.
Saberiam tanto da casa dos Habsburgo e dos problemas causados pela morte de D. Sebastião, último herdeiro da Dinastia de Avis, como os soldados portugueses das décadas de 60 e 70 do século passado sabiam das lutas de libertação dos povos das colónias.
Não faziam, quer uns quer outros, a mais pequena ideia do que os levara à guerra e só sonhavam em regressar, com vida, às suas casas.
No fim, os que sobreviveram, tiveram agradecimentos idênticos da Monarquia e da República.
D. João IV, por alvará de 1649, determinou que “as ordens de prisão e degredo aplicáveis em geral aos portugueses ciganos não deveriam ser aplicadas aos mais de 250 ciganos alistados que estavam servindo nas fronteiras, procedendo na forma de traje e lugar dos naturais e, por isso, receberam licença dos governadores das armas para morar em lugares e vilas do Reino naturalizados com cartas de vizinhança”.
Puderam, portanto, a partir daí, passar a ser “quase” iguais aos restantes portugueses.
Incluindo um que se destacou pelo seu heroísmo, Jerónimo da Costa, de quem Tomé Pinheiro da Veiga, político, escritor e procurador da Coroa, durante o reinado de D. João IV, que o tratava por “aquelle pobre cigano”, dizia que serviu a sua pátria “três anos contínuos com suas armas e cavallo à sua custa, sem soldo”.
Os militares da Guerra Colonial, mesmo os condecorados pelo Poder, não tiveram melhor reconhecimento.
Falta de apoio psiquiátrico, pensões de miséria, total desdém de quem manda.
Comparar, por exemplo, o tratamento dado aos ex-militares norte-americanos – e nem falo de recompensas mas, tão só, de respeito – com o que se passa no nosso país, provoca depressão a qualquer um.
Não sei se o discurso do velho Marcelo Rebelo de Sousa teve como intenção elogiar aqueles 250 portugueses.
O que fica é, uma vez mais, percebermos que os separou dos restantes milhares de homens que, como eles, lutaram pela Restauração.
Alguns destes a merecer elogios políticos, porque o fizeram convictamente.
Os 250 que citou, e muitos outros não-ciganos, mereciam somente um pedido de desculpas por terem sido forçados a uma guerra que não queriam.
Não creio que haja motivo para orgulho em ser “herói à força”.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.