Numa recente entrevista à agência Lusa, a Senhora Provedora de Justiça deu algumas novidades que apanharam de surpresa todos quantos trabalham no Sistema Prisional.
Desde logo a informação de que, desde 2014, “o sistema prisional tem sido acompanhado “de muito perto”, através do Mecanismo Nacional de Prevenção” (MNP).
Segundo a Dra. Maria Lúcia Amaral, o MNP é uma entidade independente confiada ao Provedor de Justiça, “que realiza visitas sem aviso prévio a locais de detenção com o objetivo de prevenir situações de tortura, maus-tratos ou outros abusos, inspecionando as condições em que se encontram quaisquer pessoas privadas de liberdade”.
Confesso que só depois de ter lido que a Senhora Provedora se referia ao sistema prisional português é que despertei para o texto.
Com toda a sinceridade estava em crer que a Provedoria tinha aberto uma Delegação, num qualquer outro país, e que a Senhora Provedora estava a fazer o balanço dessa iniciativa.
Na realidade, tanto quanto é conhecido, a Provedoria de Justiça, em Portugal, e no que respeita às cadeias, não passa de um ornamento que enfeita o edifício da Justiça para dar um ar de modernidade e defesa dos Direitos Humanos.
Sem qualquer outra função que não seja essa.
Recebe a Provedoria de Justiça algumas queixas do interior das cadeias, graças à possibilidade que os reclusos têm de lhes ligar directamente a partir das cabines?
Sim!
Cada vez menos, obviamente, dada a total inutilidade dessas queixas que têm, como resposta, na imensa maioria das vezes, uma fotocópia com a informação de que a Provedoria está impedida de os apoiar.
E é verdade.
A única possibilidade que teria (e que não é despicienda) seria a de usar o seu poder de influência para tentar resolver alguns dos casos mais graves.
O que não faz “para não se imiscuir nas tarefas doutros organismos”.
Sendo assim…
Há sempre excepções, e seria uma tremenda injustiça não elogiar o trabalho do Dr. João Portugal, que é, na Provedoria de Justiça, um verdadeiro lutador pelos Direitos dos reclusos e seus familiares.
A Provedoria, no entanto, enquanto organismo, pouco ou nada faz para garantir esses Direitos.
Conhecem a realidade das cadeias, mas o que fazem para combater a miséria que ali se vive e as ilegalidades que ali se cometem diariamente?
Não sabem que os presos têm uma alimentação miserável (o Estado paga 0,80 euros por cada refeição)?
Não sabem da falta de apoio médico?
Da impossibilidade de os reclusos estudarem ou trabalharem?
Da qualidade das instalações, com dois e três presos em celas “individuais” onde a água escorre pelas paredes, sem vidros nas janelas, com fios eléctricos descarnados, com pulgas e percevejos, com a necessidade de meterem uma garrafa de água na sanita, à noite, para as ratazanas não saírem por aí?
Do tratamento desumano dado às visitas?
Da ilegalidade de, durante as greves dos guardas prisionais, os reclusos não poderem receber ou enviar correspondência, estudar, trabalhar, terem algumas consultas médicas, irem a algumas sessões em tribunais ou aos funerais dos entes queridos, etc., etc.?
E o que fazem quanto a tudo isto?
Por alguma razão as Associações de apoio aos reclusos, com a APAR à cabeça, passaram a ser os verdadeiros interlocutores dos reclusos, e famílias, junto do Estado e Tribunais.
Uma centena de chamadas por dia, a que se juntam cartas e emails, com pedidos de todo o género, chegam à Associação diariamente.
Muitas vezes se deu conhecimento desses problemas à Provedoria pedindo apoio na tentativa da sua resolução.
Há mais de um ano que se desistiu de qualquer diálogo.
Aos pedidos de apoio recebiam as mesmas circulares enviadas aos reclusos com a informação da impossibilidade de agirem.
O papel da Provedoria é, fundamentalmente, fazer passar, de preferência para o estrangeiro, a ideia de que somos um país moderno, preocupado com os Direitos Humanos e com Entidades preparadas para garantir o cumprimento das Leis.
Daí que se tenha atribuído, em tempo mais do que recorde, uma indemnização milionária à família de um ucraniano que morreu no aeroporto, antes mesmo de se saber em que condições aconteceu essa morte e sem que tenha havido julgamento, quanto mais condenados.
Mas que fizemos um figurão no estrangeiro, pagando quase um milhão de euros, lá isso…
Entretanto, e para não ser exaustivo, há reclusos a serem agredidos e torturados diariamente nas nossas cadeias, abuso no incumprimento das leis impedindo visitas com os horários e as condições estipuladas pela Lei, trabalho a ser pago a dois euros por dia, todo o tipo de dificuldades para se poder estudar e exploração de agiotagem nos preços dos produtos das cantinas.
As visitas deste “Ornamento Luxuoso”, pomposamente baptizado de Provedoria de Justiça, às cadeias resultaram em quê?
Segundo a Senhora Provedora, o “acompanhamento do sistema prisional português adquiriu uma outra densidade e uma outra dimensão por causa desta nova realidade que é a existência de um mecanismo nacional de prevenção que tem por mandato imperativo o acompanhar de muito perto, de muito perto, tudo o que acontece em lugares onde haja pessoas privadas de liberdade e o exemplo por excelência é o estabelecimento prisional“.
Estará a falar de quê?
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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