Duas vezes doutorado – em Estudos Americanos, pela Faculdade de Letras de Coimbra, e em Política Comparada no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa –, Carlos Martins debruça-se, com o seu ensaio Fascismos, no surgimento desta ideologia no princípio do século XX. Em conversa com o PÁGNA UM, este investigador social, radicado em Cantanhede, fala também das motivações para a escrita deste livro e aborda questões de geopolítica contemporânea.
Quais os propósitos e motivações para este seu ensaio académico passar para um público mais vasto e de interesses gerais?
Acima de tudo, foi a ideia de que aquilo que se passa dentro do mundo académico não pode estar totalmente alheado do conhecimento geral e do interesse por parte do público. Muito aquilo que escrevo no meu livro, exceptuando algumas interpretações pessoais, encontra-se já em muitas outras obras, mas fora do mercado português. No nosso mercado existe uma falta enorme de livros sobre, por exemplo, a História do fascismo romeno. É muito difícil encontrar obras sobre este tema e, portanto, a minha motivação foi essa: achar que se deve partilhar as investigações académicas com o grande público.
Ao longo do capítulo sobre o fascismo italiano, nomeadamente na figura de Mussolini percebe-se que a construção ideológica tem mais de oportunismo do que de fieldade a princípios dogmáticos. Esta ideia é transversal ao Fascismo como um todo ou aplica-se apenas ao caso italiano?
É interessante falar nisso, porque são muitos os académicos que vêem de facto o fascismo italiano como uma ideologia oportunista por excelência. O próprio Mussolini parecia preocupar-se mais com o pragmatismo e a acção directa do que com conteúdos ideológicos, aos quais ele fosse fiel. Mas, de certa forma, é possível dizer que o fascismo italiano tem um conteúdo ideológico, para além de, por exemplo, o nacionalismo e o próprio pragmatismo, que é incorporado no seu conteúdo ideológico. Este mesmo pragmatismo é visto como uma justificação para as decisões que Mussolini diz tomar. Perante as diferentes realidades, que têm, dizem eles, tomam decisões diferentes, desde apoiar uma monarquia ou uma república. Mas em última análise, eu defendo que há sempre ali uma base que remete para algum conteúdo ideológico por mais pequeno que seja.
E no caso alemão, existe alguma verdade na ideia de que os judeus estavam imiscuídos na democracia parlamentar, que de algum modo justificasse o repúdio que sofreram, e que levou ao Holocausto?
Eu repudio que houvesse qualquer fundo de verdade nisso, dentro do ódio que os nazis nutriam aos judeus. Mas a pergunta sobre a origem desse ódio é a questão mais complexa, uma vez que não foram os nazis que inventaram o antissemitismo. A ideia de que os judeus são ricos e controlam o Mundo já é muito antiga. No caso do nazismo, as origens desse antissemitismo remontam ao século XIX, na ideia de que os judeus estavam por detrás do capitalismo materialista ou até do comunismo materialista. Uma certa direita reacionária, em diversos países, começou a utilizar essa ideia de que o judeu era o símbolo de tudo o que eles odiavam. Eram ideias como a destruição da pureza da raça, no contexto nazi, da raça ariana. Com a Primeira Guerra Mundial, esse antissemitismo exacerbou-se. A extrema-direita propagou muito a ideia que a derrota da Alemanha tinha sido uma conspiração dos judeus, e que mesmo o regime soviético era governado por judeus. Se é verdade que o antissemitismo não começa no nazismo, eu penso que ali foi levado a um extremo nunca visto.
No capítulo do fascismo português, mostra que ele não começa no Estado Novo, mas sim centrado à volta da figura de Rolão Preto. Ele tem um arco histórico que é descrito como sendo muito sui generis: começa num anticomunismo e acaba a lutar ao lado destes contra o Salazarismo. Mais uma vez fica aqui a ideia de um certo pragmatismo e oportunismo. Pensa que esta oposição era sede de poder ou discórdia ideológica?
Houve várias razões para que Rolão Preto fosse passando por várias fases ao longo da sua vida, sendo que uma foi o resultado da Segunda Guerra Mundial e a forma como muitos repensaram o que tinham andado a fazer em anos anteriores e a que ideologias tinham aderido. Esse anti-salazarismo de Rolão Preto, em diferentes contextos, levou-o a reformular a sua ideologia. A tentativa de golpe em [10 de] Setembro de 1935 para derrubar Salazar foi o ponto de partida para que o seu fascismo puro perdesse grande parte da força que tinha. Para fazer esse golpe, ele aliou-se a forças de esquerda e isso esvaziou um pouco a retórica de fascismo puro ou anti-esquerda. Aliás, na sua fase de líder do movimento fascista, Rolão Preto sempre incluiu, nos seus programas políticos, a defesa de medidas que seriam a favor da classe operária, e que quase poderiam ser vistas como medidas de esquerda para uma pessoa dos nossos dias.
Em relação ao Salazarismo, concorda com a ideia de ser mais um regime de conservadorismo fascizante do que propriamente fascismo?
Sim, concordo. Essa expressão de conservadorismo fascizante é, para mim, muito interessante, porque remete para a ideia de uma aproximação do Conservadorismo ao Fascismo que, nessa época, existiu, uma vez que foram adoptados princípios e ideias fascistas, enquanto continuava a haver uma linha de demarcação por mais ténue que fosse. Esta linha, mesmo para investigadores, parece um bocado irrelevante, mas no caso do Salazarismo faz sentido marcar-se uma diferença entre um regime conservador, que se baseia nas classes tradicionais, de um regime como o fascismo italiano, que tem por base o movimento de massas, as milícias, “camisas negras”, e o culto da acção directa; e que partilhou o poder com as instituições tradicionais, o que não aconteceu em Portugal.
Tivemos a Mocidade Portuguesa…
Sim. Houve uma fase em que se aproximou do fascismo, nomeadamente com a criação da Mocidade Portuguesa, o que a olho nu parecia quase a mesma coisa. Compreendo até que não se faça essa distinção, mas se formos estudar mais detalhadamente, há alguma necessidade de subtileza. Quero ainda adicionar que esta aproximação do Conservadorismo ao Fascismo não remete necessariamente, ao contrário do que muitas pessoas pensam, que este regime era mais soft ou suave. Um regime conservador pode ser igualmente repressivo e, portanto, não remete para a ideia de que era menos mau. Devido à carga que a palavra Fascismo tem na linguagem coloquial, dizer que algo não é fascista parece que está a dar a ideia de suavizar. Ironicamente, houve regimes conservadores na época que conseguiram ser mais sanguinários do que o de Mussolini.
Porque é que o Fascismo falhou no Reino Unido?
Uma das razões é que os partidos tradicionais de direita não precisaram de fazer uma aliança com o Wiliam Mosley. Não houve uma crise de ideologia política, nem uma crise económica que tenha tido um impacto tão grande como na Alemanha, pelo que não houve aquela multidão de pessoas de classe média que aderiram ao fascismo, em desespero ou raiva.
Mas não será também pelo facto de o Reino Unido ser ainda um império e possuir recursos que a Alemanha, por exemplo, então não tinha?
Há quem faça esse argumento, que o Fascismo chegou ao poder em países com ambições expansionistas e que o movimento fascista desempenhou esse papel. No caso inglês, essa ambição não existia, porque ainda tinha o seu império. Mesmo Mosley ambicionava a conservação do império a todo o custo.
Mas este império também se serviu dos seus recursos para, de algum modo, suavizar o impacto da crise económica, e assim evitar a ascensão das ideias mais extremas ou mesmo da violência, certo?
A Grande Depressão [nos Estados Unidos] também atingiu o Reino Unido, e até mesmo o programa económico do Mosley era voltado para resolver as crises através do corporativismo. Não se pode dizer que teve um impacto tão grande como noutros países, e isso pode ter condicionado a população na forma como olhavam para um eventual movimento fascista. A violência foi vista com maus olhos, quer pela direita tradicional quer pelas classes médias, e houve diversos confrontos entre fascistas e antifascistas britânicos, como a conhecida batalha de Cable Street, que deu um mau nome ao Fascismo.
Mudando um pouco o tema, agora sobre política contemporânea. A Europa e, porque não o Mundo, está em perigo de um reaparecimento destes movimentos, uma vez que se observa uma ascensão de ideologias de extrema-direita?
Sim, está a acontecer. Eu diria que o regresso do Fascismo é possível; há, nestes novos partidos de direita, alguns que podem ser classificados como fascistas. No entanto, a direita é sempre heterogénea. Tal como nos anos 20 e 30 do século passado havia partidos conservadores fascizantes, também hoje é assim – ou seja, nem todos serão fascistas, e aqueles mais próximos do poder também não o são. Isso não quer dizer que não sejam perigosos, e que não possam de forma diferente, prejudicar a nossa democracia, e que dentro de si não tenham alas fascistas. No caso do Chega, não duvido que haja imensas pessoas que possam ser classificadas como fazendo parte do fascismo puro, embora como partido político, eu não considero o Chega um partido fascista.
Entretanto, no Brasil, a direita radical perdeu as eleições…
Eu não tenho uma opinião muito formada sobre a derrota de Bolsonaro, mas diria que a população brasileira não reagiu bem aos grandes problemas do regime, incluindo a forma como a pandemia foi gerida. Ainda assim, é preciso lembrar que Bolsonaro teve um grande resultado com quase 50% dos votos. Acrescento ainda uma ideia: o “Bolsonarismo” veio para ficar, e mesmo que não seja o Bolsonaro, haverá alguém a representar esse espaço político.
E no caso de Trump? Como se explica a ascensão de alguém como ele?
Desde já, a reacção à identity politics da esquerda, a ideia da “nossa” América já não é o que era, a tomada do poder por parte de movimentos antirracistas e a criação de uma identity politics de direita para a raça branca. Depois, há as insatisfações económicas, a revolta contra as elites que a direita tão bem sabe aproveitar, que estão separadas do povo. Trump dizia muito isso, que Washington não conhecia o verdadeiro povo americano do interior, e no fundo ele também não conhece. Mas há também a identificação com Trump, porque ele cria muito aquela imagem do homem de sucesso que faz e não perde tempo a falar, e tornou-se rico por mérito próprio, vendendo a ideia de que nós podemos ser como ele, e que ele tem os nossos valores.
Acha que ele pode ganhar outra vez?
É melhor não fazer previsões, mas sim, acho que há essa possibilidade, até porque, tal como Bolsonaro, Trump não teve um mau resultado em termos de números de votos.
Relativamente à guerra na Ucrânia, na sua opinião qual é a origem deste conflito uma vez que há muitas narrativas?
Respondendo de uma forma simples: são as ambições imperialistas da Rússia numa guerra tipicamente colonialista. No nacionalismo russo sempre existiu essa ideia de que a Ucrânia era uma parte subalterna da Rússia. São vistos como os pequenos irmãos dos russos, e a partir do momento em que se querem afastar do seu grande irmão, não pode correr bem. Estarão a ser, digamos, corrompidos pelo Ocidente.
Há também a questão do perder o comboio com a China e os Estados Unidos…
Sim. Aliás, eu acho que a lógica das ameaças nucleares, assim o espero, sejam nesse sentido: de não darem a Rússia como um poder geopolítico perdido, e ser ainda considerada uma potência mundial. Não penso que o Putin seja propriamente um comunista, mas tenta, sim, recuperar a grandeza de outrora. Talvez a época dos Czares seja a maior fonte de inspiração para ele.
Regressando a Portugal. É notória uma fragmentação política, com o aparecimento de pequenos partidos, tanto à direita como à esquerda. Pensa que irá continuar, que estes partidos ainda estão em crescimento?
Esse crescimento é mais notório na direita, concretamente no caso do Chega. No entanto, o Livre tem algumas posições europeístas, em alguns assuntos até mais do que o próprio PS. Devido ao desastre que foram as últimas eleições tanto para o BE e o PCP, e embora não goste de fazer previsões, é bem possível que o Livre possa crescer, e ir ainda tirar votos de pessoas que votaram no PS e estão descontentes com esta maioria absoluta. E, além disso, os mais radicais dentro do BE podem ir para um partido que começa agora a aparecer, o MAS. Porém, penso que o crescimento de novos partidos é mais notório à direita, e que estamos a assistir a uma reconfiguração da direita portuguesa. O Chega é aquele que tem mais possibilidades de crescimento. Acho que ainda não esgotou o seu potencial para crescer, dependendo um pouco dos eleitores do PSD, que é daí que eu diria que estão a vir os votos no Chega, até porque grande parte do eleitorado do CDS foi para a Iniciativa Liberal, e este pode até substituir o BE como o partido “jovem”.
Faço-lhe agora uma pergunta um pouco idealista: qual é, para si, o regime político mais eficaz?
Como cidadão, penso que, em termos de sistema político propriamente dito, é uma democracia parlamentar, como a que temos em muitos países na Europa. Eu diria que uma democracia puramente parlamentarista é melhor do que uma semiparlamentar, como ainda é o caso da portuguesa, embora se aproxime mais do parlamentarismo do que, por exemplo a França. Ou então as democracias nórdicas, embora estas sejam monarquias constitucionais, e eu não admiro muito a monarquia, mesmo que constitucional. Em termos de sistema económico subjacente seria um misto, que não exclui a Economia de Mercado, mas com uma forte componente de Estado Social. Um pouco como o sistema económico depois da Segunda Guerra Mundial.
Para terminar. Dedica este livro à sua mãe. Alguma razão especial?
Eu nunca teria feito esta investigação sem o apoio dela, eu não sei é se ela ficará muito contente de ter uma dedicatória num livro chamado Fascismos com o Hitler na capa [riso].