“Devemos trabalhar com o que é nosso porque só as coisas da
nossa terra é que estão dentro da nossa compreensão.”
João Paulo Borges Coelho
As duas sombras do rio
Que lindo. E que bom. Que sensação tão agradável, esta, de termos orgulho nos nossos dirigentes. Acabámos de saber que o Presidente da República vai visitar a Ucrânia em 2023[1]. Enfim, claro, eu sei. Eu sei que este é um daqueles gestos relativamente fáceis de executar, e muito provavelmente também fáceis de programar para serem vistosos[2]. Mas que se lixe. A malta precisa. Pão e circo. A crise vai dura. Para todos os efeitos, estes gestos são tão bonitos, e vamos lá, por muito que possam ser demagógicos,[3] na verdade, na verdade temos de admitir que são também, antes de tudo o mais, tão indiscutivelmente corajosos que não é qualquer um que tem envergadura para eles[4]. É perante gestos destes que esperamos um eclipse momentâneo diante da vitória da Argentina no Campeonato do Mundo[5], e até um novo pico para a moral do esfalfadérrimo dirigente das Nações Unidas[6]. Mas, se o nosso PR quer visitar a médio prazo resistentes e heróis – não vai visitar já as nossas Urgências Hospitalares porquê? Eu sei que já falei nisso antes, mas entretanto o pesadelo não desapareceu. E há hospitais que nem Urgências têm. Sempre gostava de saber para onde é que os Bombeiros da região levam aquelas macas que estão sempre, sempre, sempre, sempre a chegar[7]. Enquanto houver Bombeiros, não é[8]? Senhor Presidente?…
… Falei-vos de formas de acudir aos pacientes que não foram, como é evidente, nem da escolha nem da responsabilidade do pessoal hospitalar que as executa. Percebia-se muito bem pelo tom das dezenas de mensagens e perguntas que os leitores me mandaram que quase ninguém acreditou em mim. Ou estava a gozar, ou estava a inventar, ou pronto, para efeitos de encorajar à leitura estava a recorrer indecentemente a tudo quanto era figura de estilo excessiva. E claro, estava a falar de mim. Aquilo foi um fait-divers. Não aconteceu a mais ninguém.
Mas sabem uma coisa?, a minha vida é minha e eu não sinto nenhuma espécie de interesse em andar para aqui a partilhá-la com centenas de pessoas que não conheço. E, se não gosto de falar da minha vida, ainda gosto menos de falar das minhas doenças. Só me faltava agora começar a despedir-me de toda a gente com o fatídico “então boas melhoras”. Não, eu só falo destas experiências quando percebo que elas estão a estender-se aos portugueses em geral. E ali, nas Urgências de Évora, onde ficávamos semanas a fio nas nossas macas à falta de camas nas enfermarias, os portugueses não eram só os que estavam doentes, como nós. Eram também os nossos cuidadores.
Os médicos, enfermeiros e auxiliares faziam o seu trabalho com muito carinho. Mas debatiam-se com uma tal falta de meios, aquilo ali era tudo tão extremo, que todos os dias tinham de recorrer a uma corda feita de lençóis cortados em tiras para amarrar as mãos de uma senhora à maca. Era para a protegerem de si própria. Senão, ela arrancava a algália, tirava a fralda, coçava-se até fazer sangue, desaparecia – e não podia estar sempre alguém ali ao seu lado.
Portanto, eles mantinham a máquina a funcionar com o que tinham à mão e sabiam usar.
Pelo menos com uma senhora.
Chegava a ser com duas ou três.
No fim disto tudo, os turnos eram muito lentos. E ficavam muitas pessoas a dormir em hotéis. Quando se passam dez dias numa Urgência, ouvir os telefonemas dos outros transforma-se muito depressa numa rotina. E admirar a sua dedicação também. Desculpem, mas eu vim de lá a admirá-los, mesmo.
E a considerar que mereciam ser condecorados pelo PR, seriamente.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Reparem que eu escrevi “vai visitar”, e nunca na vida “tenciona visitar”. Já ninguém duvida da seriedade do PR quando ele nos transmite as suas intenções.
[2] Reparem que, mesmo assim, nunca escrevi “demagógicos”. É evidente que o nosso PR já há muito que conquistou o nosso respeito.
[3] Pronto, lá saiu o palavrão. Para esta frase fazer sentido, tinha mesmo que sair.
[4] E pronto, está reposta a justiça.
[5] Vamos lá ver, eu gosto imenso de bola, e o Campeonato do Mundo é pura adrenalina. Mas sobrelotar as notícias com a vitória da Argentina – porquê? Temos alguma ligação especial com a Argentina que eu não esteja a ver, na minha imensa ignorância? Esta vitória é bastante mais simpática do que a alternativa de ter ganho a França, mas, insista-se: a Argentina é um país com o qual não temos nenhuma relação de proximidade que justifique tanta berraria portuguesa. E está bem que todos os directores de informação têm necessidade de encher os chouriços dos seus canais, mas neste momento o Mundo está cheio de notícias grosseiras que se vêem muito bem, e reparem que ainda nem o Eduardo Cabrita nem a mãe da pequena Jessica, dependendo do gosto de quem está a ler-me, começaram sequer a ser adequadamente fustigados na praça pública.
[6] António, vá lá. Então? É preciso repetir-lhe que não está sozinho? Não está, mesmo. Nenhum de nós gosta do Putin. É uma praga do Egipto ainda pior do que o Trump, nenhum deles há de ir embora tão cedo, e na realidade ninguém sabe o que é que aconteceu às Pussy Riot. Vamos lá, homem. Lidere-nos. Peitaça para fora.
[7] Estão mesmo. É um sufoco. Vamos concentrar-nos em resolver este dilema, ou quê? Somos ou não somos uma Nação?
[8] Foram os Bombeiros que arrombaram a minha porta e me levaram já inconsciente para o Hospital de Évora. Se o Governo, na sua total frieza de maioria absoluta, escolher mesmo começar a deixar de financiá-los, quem é que vai acudir às pessoas como eu?