“Os seus olhos, que tiveram já muitas visões, viram
quase tudo o que há para ver neste mundo e no outro.”
João Paulo Borges Coelho
As duas sombras do rio
Em 1982 as redacções dos jornais eram sítios aguerridos, barulhentos, de secretárias e máquinas de escrever muito velhas encavalitadas onde quer que houvesse espaço, pilhas de papel normativo a que toda a gente chamava com todas as letras linguados e nunca laudas, telefones fixos atirados para cima de qualquer espaço livre, e neste cenário estava sempre alguém aos berros, e a toda a volta estava toda a gente a fumar, toda a gente a engatar, e sobretudo toda a gente a mandar vir, a mandar vir, a mandar vir perdidamente num grande festival de liberdade. No nosso caso, levantávamos ainda mais a voz quando saíamos a terreiro em defesa do que queríamos escrever a seguir, durante as nossas longas reuniões de redacção de sexta feira, depois de já termos apanhado os comboios e posto o semanário O JORNAL[1] à venda em todas as bancas portuguesas. Eu era uma miúda que ainda estava a estudar Biologia e ainda nem sequer fumava nem bebia copos, mas defendia as minhas convicções com tanta energia como qualquer outro daqueles colegas que eu aliás considerava autênticos fósseis vivos[2]; e nesse tempo podia ter opiniões tanto ou melhor do que qualquer outra pessoa, desde que o meu trabalho fosse bom. Nunca disse isto a ninguém porque estava demasiado ocupada a defender-me ao palavrão de todos aqueles engatatões de terceira[3], mas tinha orgulho em nós. Éramos uma grande equipa. O António Mega Ferreira veio jogar connosco nessa altura, numa posição algo confusa mas que se subentendia visar com avidez o avançado-centro. Como era nosso costume, descartámos o António e começámos logo a tratá-lo por Mega Ferreira. Isto simplificou-se rapidamente para Mega. Foi assim que o tratei durante o nosso primeiro ano e meio de convívio digamos que laboral, cada vez mais divertido, e rapidamente carregado de insinuações cada vez menos veladas.
A questão dos nomes que nos habituamos a chamar àqueles que nos são mais queridos é para ser levada muito a sério, porque é aí que instalamos, quase sem darmos por isso, as nossas mais profundas e mais seguras zonas de conforto. De maneira que, quando começámos a namorar, pareceu-me perfeitamente pífio, e subsequentemente por demais desconfortável, trocar-lhe o nome de Mega para António, como seria de esperar se isto fosse uma história normal. Muito pelo contrário, o que realmente se passou comigo, logo a seguir à enorme ventosa escaldante do nosso primeiro beijo[4], foi um desenvolvimento lógico que me aconteceu a quente, de uma forma nunca antes minimamente premeditada, mas que nessa altura acabou por fazer História.
Em menos de uma semana de amor, os meus melhores instintos já lhe tinham atenuado o Mega de carácter laboral para o Meguinha de carácter afectivo. Até a minha sogra delirou com este desenvolvimento, e então o nome dele ficou Meguinha de vez, e era Meguinha em tudo, mesmo nas nossas piores discussões[5]. As pessoas que nos rodeavam apropriaram-se num instante desse Meguinha, de tal forma que a minha família nem chegou a conhecer-lhe outro nome: a única diferença, para os meus pais, para as minhas irmãs, e para os meus sobrinhos, foi sempre entre Meguinha ou Tio Meguinha. E toda a gente se riu muito quando eu, outra vez de instinto, comecei a abreviar este Meguinha para Guinha, às vezes até mesmo para Gui. Ele gostava de me tratar por Pretinha, um dos meus mais antigos e mais queridinhos nomezinhos de infância. Isto fez com que as pessoas nos chamassem Pretinha e Guinha. As nossas variações desse tempo foram um fantástico mundo de aventuras.
Finalmente, depois de um ano maravilhoso de vida em absoluto e perdido estado de pecado na porta giratória da Rua de São Mamede[6], só nós os dois e o Zé Matos e o meu boxer Sebastião aos pés da nossa cama, e as noites dos jardins de Lisboa onde íamos passear com ele, apanhámos toda a gente de surpresa com o cheque-mate mais colorido deste mundo. Sem dizer nada a ninguém, voltei a vestir, com muito orgulho e algumas lágrimas, o vestido cor de pérola da minha Mãe, da minha tia, e da minha irmã mais velha antes de mim; e foi assim que fomos casar-nos à igrejinha tranquila da aldeia dos meus avós. Foi tudo escolhido em cumprimento de uma promessa muito séria que eu fizera vários anos antes aos caseiros do meu avô, durante as vindimas, no intervalo do almoço de um dia quente e abafado de fins de Setembro.
O Senhor Zé Serrão estava para ali a praguejar que trabalhar com eles nos campos aos quinze anos era uma coisa[7], mas que mais tarde eu havia de ser uma grande doutora muito rica, havia de casar-me com algum outro doutor da mesma laia, e nunca mais iria querer saber daqueles dois pobres velhos para ali votados ao esquecimento sem fim.
E então eu jurei, perante todas as testemunhas do nosso rancho, que, quando chegasse a hora, ele e a Senhora Amélia seriam os meus padrinhos, fosse onde fosse que entretanto eu tivesse ido parar, na arbitrariedade total dos acasos deste mundo.
Mantivémos o evento limitado às dimensões da casa do Avô Jacob e da Avó Pinta, só mesmo com as famílias imediatas e os amigos mais próximos. O nosso casamento pertencia ao foro da alma. Penetra não entra.
Isto, para mim, era uma questão de honra, e com igual intensidade uma profunda questão de fé. Pelo seu lado, o Meguinha, que nem sequer era católico, adorou aquela linda canção de embalar com a promessa feita pela doutorinha às pessoas do povo durante as vindimas, apropriou-se logo dela, retocou-a e puxou-lhe o lustro, repetiu-a à sua Mãe e aos seus amigos que sabiam do grande segredo[8], e viajou lá dentro enquanto autêntico passageiro feliz, de medidas cumuladas por tanto pitoresco.
Nas três semanas de preparação para o domingo do enlace ele andou ocupadíssimo a esmiuçar as inúmeras impossibilidades do catolicismo com os padres inteligentes que se divertiram à grande com a tarefa insana de irem lá a casa para debaterem e rirem com gosto enquanto se sentavam connosco à mesa que eu punha com todos os cuidados[9], bebiam ali uns bons copos de um Vinho Verde soberbo e petiscavam uns belos de uns petisquinhos que eu lhes trazia da cozinha como quem não quer a coisa, e de caminho nos ajudavam a tornar toda aquela anarquia viável[10]. Por isso eu tive que tratar das alianças sozinha[11]. A minha dizia CLARA, como seria de esperar. E a dele dizia mesmo, assumidamente, MEGUINHA. Entre nós, já ninguém se lembrava de que ele antes tivera outras vidas, onde porventura fora outra pessoa e recebera outros cognomes.
Cinco anos depois, o nosso telefone tocou no escuro, pouco passava das seis da manhã e sabe-se logo que um som destes não é um bom sinal. Fui atender assustadíssima, mas o meu cunhado recusou-se a falar comigo. Quando finalmente o Meguinha lhe atendeu, ainda tonto de sono e a protestar que eu era louca, cheguei a ouvir a voz do outro lado da linha a dizer “o nosso sogro está muito doente”. A seguir sentei-me na cama num silêncio de absoluta consternação. Murmurei, apenas, “pronto, acabou.”
A velocidade destas coisas é cruel ao ponto de nos deixar mudos.
Pouco depois estava o meu Pai a morrer de cancro aos 56 anos, quando acabava de revolucionar completamente a sua vida e se tinha, por fim, transformado num homem tão feliz que nos emocionava e contagiava a todos na inspiração única da sua figura carismática que agora era maior do que a vida.
Só foi feliz durante um ano, e o cancro reclamou-o em sete meses.
Logo a seguir ao funeral, finalmente desfeita que ficou com ele a historinha exemplar Pretinha e Guinha, parti eu também para as neves eternas de Buffalo. Foi a minha vez de revolucionar de alto a baixo o meu pequeno mundo na grande gesta de concluir o doutoramento. Foi ali que vivi, por fim, a emoção de arrancar histórias ainda completamente desconhecidas ao grande silêncio das bancadas dos laboratórios, sempre em imenso esforço, e sempre, sempre debaixo de tanto gelo e tanto frio que nunca consegui olhar para trás. Durante muitos anos, nunca mais voltei a ver a Rua de São Mamede. Aliás, nunca mais soube da data precisa da floração simultânea dos jacarandás em todas as ruas que vão lá ter, a grande explosão psicadélica do mais vibrante púrpura que marca infalivelmente o início de cada Verão[12]. Quando, por fim, defendi as minhas provas no Instituto Abel Salazar, já o primeiro ministro era o Cavaco Silva, que já nos tinha ordenado, numa sobranceria que a gente dantes não usava, “deixem-nos trabalhar”. Havia boçalidade. Notava-se por todo o lado a presença indecorosa de um dinheiro que no entanto ninguém tinha, só me falavam de arrancar oliveiras e de destruir barquinhos da frota de pesca artesanal, aquilo não pressagiava nada de bom e o meu País, crivado de IPs e de portagens, estava por demais irreconhecível.
O conto de fadas, no entanto, nunca deixou de existir, tal como ficou gravado para sempre, com toda a nitidez, nos anais da memória afectiva de São Mamede.
É que, sabem, contei-vos esta história toda pelo que vale enquanto documento. Tenho presente, sem qualquer margem para dúvidas, que os anos de São Mamede, quando o Meguinha era o Padrinho e eu era a Mãe e absolutamente tudo era possível, não se limitam ao conto de fadas.
Na realidade, são o testemunho bem sucedido de uma época dourada em que ainda não existia a Europa, e nós ainda estávamos a testar a nossa liberdade[13]. Nos anos de São Mamede tinha eu começado a publicar os meus primeiros romances sob a vigilância atenta e delirante do Meguinha, existiam ainda verdadeiros críticos literários que defendiam as suas opiniões com verdadeiro brilhantismo, e Portugal era orgulhosamente o País que muito bem quisesse ser. Sabíamos que podíamos fazer tudo, desde que déssemos mesmo o litro e oferecêssemos mesmo o nosso melhor aos outros. E então a embalagem do nosso delírio criativo fazia nascer em São Mamede, de volta dos meus jantares lendários e sob a égide regalada do Meguinha, livros, ilustrações, fotografias a preto e branco pintadas por cima a cores, canções, espectáculos inteiros testados e rodados em palco para grande exuberância das audiências e felicidade sumamente grata do Meguinha[14], quadros a óleo, aguarelas, programas de rádio, tudo feito de raíz e tudo experimentado pela primeira vez. Perante os nossos resultados finais vi por vezes o Meguinha chorar de alegria[15] em público e sem reservas, num pranto de comoção assumida e puramente estética. Na altura era o melhor dos seus agradecimentos, e tudo fazia perfeito sentido. Íamos para a sala beber digestivos e fumar charros, a deixar correr a noite numa grande alvorada de ideias. Era um País ainda sem autoestradas que era muito bonito e estava feito mesmo à nossa medida, um País feliz e independente, cheio de leveza e de possibilidades.
Portugal era então um País que já não há.
Nunca mais volta a haver[16].
Vive sempre em nós, no entanto, a imagem grata do Meguinha a pôr as cuecas na cabeça em sinal de protesto[17].
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Mais tarde, O JORNAL daria origem à presente assépsia da VISÃO, mas são obras representativas de galáxias completamente diferentes, cada vez mais distantes na expansão imparável do nosso Universo.
[2] Pouquíssimos anos antes, no final do liceu e ainda em pleno PREC, fui uma militante toda vivaça das temíveis BEFS. As Brigadas de Extermínio aos Fósseis especializavam-se em telefonar para casa dos fascistas, aterrorizando as mães deles com contundentes “Brigadas de Extermínio aos Fósseis! O seu filho que não saia de casa hoje! Não voltamos a avisar!”, e outros avisos assim. Muito fascista chumbou por faltas devido à nossa obra.
[3] Numa noite de fecho, completamente grosso, o Joaquim Lobo chegou a saltar para cima da minha secretária – e depois ficou lá perdido, em pé, desamparado e infeliz, sem enxergar sequer uma sequência lógica para a parvoíve inútil daquele gesto ébrio. Eu nem disse nada, e limitei-me a ir continuar a trabalhar para outra secretária. Aquilo era bom. Éramos verdadeiramente um filme.
[4] E então? Há azar?
[5] Tínhamos os dois imensas convicções, e para benefício do seu próprio personagem o Meguinha imaginava a meu respeito cenários insultuosos que me enchiam de revolta. Portanto discutíamos imenso, e sempre com imensa paixão. Eram fogos-fátuos, no entanto. Eu fartava-me depressa, calava-me – e depois ficava ali de espectadora, assaz fascinada, a espiar minuciosamente todos os incríveis teatros do Meguinha. Irresistível, louquíssimo, deveras arrebatador. Estava ali, decerto, um homem capaz de dar com o Maquiavel em doido. Não há assim para aí muita gente que possa gabar-se de possuir os mesmos dons.
[6] Entrava e saía muita gente à procura de abrigo, e, sobretudo, de carinho e de calor. Uma das melhores especialidades da casa, que ainda tinha aposentos de criada e para onde eu ainda tinha contratado uma daquelas mulheres-a-dias mesmo de todos os dias que nós tínhamos na altura, foi a de albergar amigos em estado de terrível crise. Entravam perdidamente desfeitos, descansavam, começavam a rir connosco, vinham à praia na minha carrinha 4L novinha em folha, de caminho apreciavam devidamente o teatro bestial em que o Meguinha, sempre sentado no lugar do morto com o Sebastião ao colo porque não sabia guiar, via o cartaz enorme a dizer “SEIXAL SAÚDA-O” e bradava em tom perfeito de oratória parlamentar “Mas eu não quero ser saudado pelo Seixal!”, atordoavam-se com as nossas colecções discográficas que não eram iguais às de mais ninguém, nem queriam acreditar nas pessoas que apareciam por ali à hora de jantar todas como quem não quer a coisa, e acabavam por sair absolutamente refeitos, gratos para sempre.
[7] O Senhor Zé Serrão estava sempre a praguejar. Nem sabia falar de outra maneira. Só não praguejava com a Senhora Amélia, que ainda era linda e ele ainda amava com todo o coração. E também nunca praguejava com a mula, que vivia em casa com eles e entendia tudo o que o dono lhe dizia.
[8] Depois de já estarmos casados repetiu-a com gosto a toda a gente educada e culta que o quis ouvir. Era uma história cada vez mais bonita e acrescida do poder metafórico de verdadeiros jogos luminotécnicos como os que são usados nas óperas, porque o Meguinha sempre se preocupou cuidadamente com a construção e colocação em perspectiva de todos os seus cenários.
[9] Toda a gente se lambia com os meus peixinhos da horta de alho francês mornos e crocantes, que eram, em segredo, mais uma variação sobre a tempura do que um sinal de respeito por qualquer tradição portuguesa. E claro, bastava engrossar a massa e picar bem o alho para oferecer também aos convivas umas verdadeiras pataniscas de luxo. Eu chamava-lhes mesmo assim, para proteger o seu segredo: “experimentem as minhas pataniscas de luxo”. É um legume integrante das bancadas de alquimia, o misterioso alho francês. Cura gripes, restaura forças, e assume sabores inesperados conforme as ligações que se lhe oferecem. Trata-se bem, e com devida paciência. Não há cá segredos descobertos de um dia para o outro, e aliás as minhas primeiras experiências saldaram-se em desastres de monta.
[10] Inicialmente, o Meguinha parecia nem sequer ter certificado de baptismo, de tão anticlerical que fora a sua família. Isto obviamente inviabilizaria qualquer casamento católico, pelo que ainda chegámos a considerar a hipótese hilariante de o baptizarmos antes de o casarmos. Finalmente, com a ajuda da minha sogra, lá consegui descobrir o documento numa junta de freguesia perdida pelas ruas paralelas da Baixa, e acabou-se logo ali a galderice.
[11] Também as paguei sozinha. Nem pensei no caso, porque estas situações eram a regra daquela altura. O Meguinha dedicava-se voluptuosamente a projectos fascinantes que lhe apareciam pela frente com grande frequência como cantos de sereia, entregava-se-lhes de corpo e alma, sonhava acordado, subia todos os degraus até aos píncaros, e depois não era pago. Na revolta justiceira desencadeada por estes desfechos de mau gosto, verificava num olhar automático se eu estava bem vestida e bem penteada, agarrava-me pelo braço, e arrastava-me para jantar na esplanada amena de um dos restaurantes mais caros das redondezas. Pedia entradas e sobremesas, no fim bebia ritualmente mais do que um balão do seu tradicional Cutty Sark com duas pedras de gelo, e o vinho era sempre muito bom e muito caro. Este período de anarquia esconde a primeira e única vez em que eu fui ter com o meu Pai ao consultório, morta de vergonha, para lhe pedir dinheiro emprestado porque nos últimos dias já tinha esgotado de vez as várias potencialidades secretas da minha lata de Atum Tenório, não me restava absolutamente mais nada lá em casa, e se o Meguinha soubesse disto íamos logo outra vez para um restaurante de luxo esbanjar com grandes faustos imenso dinheiro que não tínhamos. Pedi uma daquelas pequeninas notinhas de vinte escudos, nunca mais me esqueço. O Pai ficou tão aflito que insistiu em dar-me antes vinte contos. Depois ofereceu-se para falar ele com o Meguinha. Foi assim que a estabilidade começou por fim a penetrar nas nossas vidas, e também isto pertence aos toques colaterais mais comoventes da história.
[12] Por acaso, a floração dos jacarandás é um bom exemplo de pequena história científica que, desde que muito bem contada, fazia o Meguinha lacrimejar de alegria.
[13] Por exemplo, aos 25 anos conquistei à custa de muito berro e muito insulto o direito a celebrar o Dia Mundial da Mulher com uma grande reportagem sobre a vida das lésbicas. Já estávamos a quase nove anos do 25 de Abril, mas a homosexualidade ainda era um segredo, e ainda nenhum jornalista lhe tinha oferecido nenhuma reportagem. E muito menos às mulheres. Na altura, ainda valiam muitíssimo menos que os homens. Estávamos longe de já termos conquistado tudo. Ilustrativamente, o Meguinha, quando soube desta reportagem, ficou furioso porque estava atento a tudo. Detestava aqueles meus “comportamentos marginais”, porque a minha imagem de “miúda malcriada” se reflectia negativamente nele.
[14] Este era um cenário bizarro e raríssimo, cheio de sabores e texturas experimentais, delicados e inebriantes, daqueles que acompanhavam maravilhosamente o seu percurso.
[15] O que é que foi, pá? Outra vez?
[16] Nesse País perdido o Meguinha era o nosso único Cappo, e só ele é que podia ditar regras. Podia repreender-nos à vontade quando nos considerava imaturos, ou descontrolados – ou, muito pior do que todas as outras falsas partidas deste mundo, medíocres mesmo. Quer isto dizer que, ao serviço da arbitragem cultural, nos punha os pés à parede com grande frequência. Depois enfatizava esses gestos com um olhar indignado da mais pura revista à portuguesa no seu melhor, que lhes dava um toquezinho Beatriz Costa e os rematava na perfeição. Aquilo, connosco a ver, era do melhor que havia. Dava-nos logo vontade de fazer melhor.
Ah sim, pois foi. Pois foi. Criou algumas assinaturas únicas, o Meguinha.
[17] Eram mesmo cuecas, porque na altura ainda nem sequer existiam os boxers. E todas as cuecas eram brancas, como mandavam as leis do mais elementar decoro no trajar da roupa interior. Pessoal, vamos lá a atinar, quando nós nos casámos ainda nem sequer existiam as lojas dos chineses, então – e, no princípio deste conto de fadas, ainda nem sequer existia a Feira de Carcavelos! Onde é que vocês queriam que eu lhe comprasse cuecas coloridas?
Aliás, e que comprasse. O Meguinha nunca as usaria. Não as consideraria de bom-tom.