Freedom Convoy - Canadá

Governo Trudeau vê “insulto à memória e à verdade” em manifestação pacífica que já angariou 10 milhões de dólares

red and white truck on black asphalt road

por Maria Afonso Peixoto // Fevereiro 1, 2022


Categoria: Exame

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Enquanto nas ruas de Ottawa, os protestos pacíficos contra as restrições para não-vacinados se mantêm, nos bastidores os políticos canadianos acusam os manifestantes de um sem número de tropelias para evitar uma maior adesão popular ao movimento. George Russ, um escritor canadiano, fala já em manipulação política da realidade e de uma “orgia irracional da histeria” em torno do Freedom Convoy.


O primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, insistiu esta segunda-feira que os manifestantes do Comboio da Liberdade (Freedom Convoy), que ocupam desde sábado o centro de Ottawa, erguem “bandeiras racistas”, numa clara tentativa de incutir a ideia de os protestos na capital terem motivações políticas ou violentas.

O Freedom Convoy, dinamizado por camionistas que atravessaram o Canadá de costa a costa, assentou arrais desde sábado em plena capital, em protesto contra as medidas consideradas demasiado restritivas de gestão da pandemia. E tem vindo a granjear cada vez maiores apoios público, entre os quais o fundador da Tesla, Elon Musk.

Por outro lado, a campanha de angariação de fundos no GoFundMe – com o objectivo de pagar custos de combustíveis, alimentação e dormidas – tem superado as expectativas, e deverá atingir esta noite a meta dos 10 milhões de dólares canadianos (cerca de 7 milhões de euros). Em comunicado, esta plataforma de crowdfundig revelou que esta é, por agora, a segunda campanha mais lucrativa no Canadá.

Apesar das acusações de Trudeau para estereotipar os manifestantes, certo é que dois dos principais dinamizadores do movimento, e que dão a cara pela campanha no GoFundMe, até pertencem a minorias: Benjamim Dichter é judeu e Tamara Lich pertence à etnia métis, um dos três grupos nativos canadianos, conforme destaca o National Post.

O incómodo político tem vindo, aliás, a aumentar. O premier (primeiro-ministro) do governo da província de Ontário, Doug Ford, já exigiu, segundo o canal CTV News, que os manifestantes abandonem as ruas e deixem “o povo de Ottawa viver as suas vidas”.

Imagem do mural de uma das páginas do Facebook a favor do protesto contra Justin Trudeau.

Com o receio dos protestos se eternizarem, ainda mais com o sucesso dos apoios já arrecadados, as autoridades têm tentado, por todas as vias, incutir a ideia de os manifestantes estarem a desrespeitar até a memória do povo canadiano. Os incidentes considerados mais graves, porém, são manchas de urina na neve que cobre o Memorial Nacional de Guerra, a dança de uma mulher no túmulo do Soldado Desconhecido e bandeiras colocada na estátua do atleta Terry Fox, um activista da luta contra o cancro, falecido em 1981, e considerado um herói nacional. Trudeau aproveitou estes pequenos casos para argumentar que se cometeu “um insulto à memória e à verdade”, citado pela BBC.

O escritor canadiano George Russ veio já clamar dos exageros na descrição dos acontecimentos feita pelos políticos, defendendo estar-se perante uma “orgia irracional da histeria”. E exemplifica com o episódio da estátua de Terry Fox. “Ouvindo os políticos e especialistas, poderia pensar-se que ele foi pintado com tinta vermelha, teve seus membros cortados e foi arrancado do seu pedestal, um destino que muitos outros monumentos canadianos encontraram recentemente”, escreveu Russ.

E acrescenta depois que, na verdade, “uma bandeira canadiana foi enrolada no pescoço da estátua, um chapéu foi colocado na sua cabeça e uma placa que dizia ‘Mandato de Liberdade’ foi colocada entre as suas mãos. A exibição era de mau gosto, mas temporária e inofensiva. A maior consequência da ‘desfiguração’ da estátua de Terry Fox foi uma onda de doações para a Fundação Terry Fox, o que é indiscutivelmente uma coisa boa.”

Estátua de Terry Foz “paramentada” pelos manifestantes e que chocou o primeiro-ministro Trudeau. Foto: Adrian Wyld.

O primeiro-ministro canadiano, que está fora de Ottawa, continua a recusar reunir com os manifestantes, e garante não ceder “a quem participa em vandalismo”, criticando também a iconografia usada nos protestos.

“A liberdade de expressão, reunião e associação são pedras angulares da democracia, mas o simbolismo nazista, imagens racistas e profanação de memoriais de guerra não são”, disse Trudeau, citado pela BBC, em alusão às imagens dos participantes nos protestos que consideram que a actual política de discriminação dos não-vacinados recorda os primórdios da implantação do nazismo.

Saliente-se que as pessoas geralmente críticas da estratégia em redor da pandemia, ou que não aceitam a vacinação, têm sido repetidamente apelidadas de “negacionistas”, um termo associado geralmente a quem, nega o Holocausto. O Canadá tem, neste momento, 80% da população vacinada, mas é um dos países com maiores restrições contra os não-vacinados.

Em declarações ao National Post, os organizadores consideraram “hilariante” a ideia de que apoiariam o racismo e renegam eventuais actos de pessoas que se possam ter “colado ao movimento”. Por outro lado, a comunicação social canadiana, com constante cobertura dos protestos, tem destacado sempre o caráter pacíficos dos manifestantes. E a polícia de Ottawa já esclareceu não se ter registado “motins, nem feridos ou mortos”.

Ontem, numa reportagem do jornalista Rupa Subramanya, do jornal National Post, salientava que “os manifestantes incluíam canadianos, jovens e velhos, de todas as convicções políticas”. E destacava-se ainda que, “embora o objetivo declarado do comboio seja de oposição aos mandatos federais de vacinação e outras restrições, dois dos líderes e alguns dos manifestantes estão vacinados”, embora defendam que a vacinação deveria ser uma escolha individual.

Este repórter, que aliás deu voz a várias pessoas não relacionadas com os camionistas para justificarem as suas participações nos protestos, sublinhou que, entre os manifestantes, se veêm “indo-canadianos, canadianos com raízes árabes, canadianos de origem chinesa, canadianos negros, e quase todos os outros canadianos étnicos que vivem sob o sol”.

Texto editado por Pedro Almeida Vieira

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