Jantar fora à sexta-feira é um sinal de que, afinal, nem tudo está mal na economia dos dias de hoje? Como é que se baixou a fasquia daquilo que deveria ser o normal indicador económico? E ainda se lembram quando se apelava a não fazermos férias no estrangeiro porque isso seriam “importações”?
Causou comoção nacional, com laivos de escândalo, uma declaração do presidente executivo do Santander Totta, Pedro Castro e Almeida. Disse ele que, apesar da crise, os portugueses continuam com “padrões de consumo relativamente elevados”. Este é o índice económico apresentado por este alto responsável da banca, que vê quando se circula pelas ruas de Lisboa, com pessoas a jantar fora à sexta-feira. Ou ao sábado de manhã.
Imediatamente se rasgaram vestes, produziram-se textos e discursos contra os predadores da grande banca, que se acham donos disto tudo. Com que direito vem este banqueiro julgar quem opta por ir jantar fora à sexta-feira? Quer ele insinuar que jantar fora à sexta-feira, no meio da crise financeira, é condenável e devíamos estar em casa a poupar?
Houve depois quem viesse avisar que as palavras tinham sido mal observadas no seu sentido profundo. O presidente do Santander, afinal, não quisera condenar quem anda a gastar de forma irresponsável o pouco que tem. Nada disso. Ele até estava a dizer que, pelo contrário, é bom, muito positivo até, poder ver gente que poupou durante a pandemia e que agora anda a jantar fora à sexta-feira. Isso significa que as pessoas têm dinheiro no bolso. Andam felizes e com confiança no futuro. Têm poder de compra. É, portanto, um indicador financeiro positivo, sinal de que as coisas não estão assim tão mal como andam para aí a pintar.
É este último pensamento – o do jantar fora à sexta-feira ser uma coisa boa –, que importa abordar, pois há um detalhe que parece ter passado ao lado de muitos jornalistas de Economia – sempre bons cumpridores de ordens e excelentes escribas de relatórios citados com aspas –, mas, por deformação profissional, fracos observadores.
No meio das discussões e até de algumas reacções de pessoas que foram jantar fora na sexta-feira imediatamente a seguir – as declarações foram feitas numa quinta-feira –, ninguém disse o óbvio: a fasquia do indicador económico está visivelmente em baixo. E essa é a discussão que devíamos estar a ter.
O que é feito daqueles termos tão caros aos economistas como o célebre “índice de produção na indústria transformadora”, o saudoso “índice de volume de vendas do comércio a retalho”, o tradicional “consumo de combustíveis (gasolina e gasóleo)”, o sempre revelador “consumo de energia eléctrica”, as enigmáticas “vendas de cimento para o mercado interno”, culminando nas análises dos números de “ofertas de emprego” e o sempre presente “procura de emprego por parte dos desempregados”, sem descurar, obviamente, o maior indicador de todos: “vendas de automóveis ligeiros de passageiros” e ainda de “vendas de veículos comerciais (ligeiros e pesados)” e, por fim, as “dormidas na hotelaria”?
O jantar de sexta-feira à noite nunca foi propriamente uma questão recorrente, sequer concorrente, nos indicadores quantitativos de consumo privado, onde eram contabilizados os bens para o lar, como computadores, equipamentos de telecomunicações e livros.
Nem sequer se questionava o ir jantar fora ao mesmo nível do consumo dos bens alimentares adquiridos nos supermercados, dos bens não alimentares, como têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro, passando ainda pelos produtos farmacêuticos, médicos, cosméticos e de higiene.
Quando queremos analisar a saúde financeira de um país, não andamos propriamente por aí, a espreitar pela janela dos restaurantes, para ver quem anda ou não a jantar fora – um dono da banca também não faz isso, pois basta-lhe ver os movimentos dos cartões de débito e crédito dos clientes para conhecer em detalhe toda a nossa vidinha e fazer os julgamentos para as decisões que bem entender.
O verdadeiro economista vai analisar, por exemplo, o indicador de investimento, onde se vê o que gastamos, como país, em máquinas e equipamentos. Há coisas como o “volume de vendas”, “actividade corrente”, “perspectivas de atividade” e “perpectivas de encomendas a fornecedores”. Há factores como vendas de veículos ligeiros de passageiros para empresas de rent-a-car e táxis, os serviços e a construção e obras públicas. Jantar fora à sexta-feira nunca foi uma questão premente e reveladora. Até agora.
Devemos então perguntar-nos como chegamos aqui? Como é que o jantar fora numa sexta-feira à noite chegou a ser um indicador da boa ou má saúde económica em detrimento de todos os outros? Como é que todos aqueles indicadores parecem estar em segundo lugar?
Talvez seja bom recordar então – e isto é um mero exemplo – de uma frase dita em Junho de 2010 por uma pessoa que percebe muito de Economia. Um senhor que, além de muitas outras coisas, até foi ministro das Finanças, e que, há mais de 12 anos, em Junho de 2010, disse isto: “férias passadas no estrangeiro são importações e aumentam a dívida externa portuguesa”.
Extraordinário, não? Alguém ainda se lembrava desta análise tão profunda sobre os hábitos dos portugueses? Alguém ainda se recorda de quando poder-se ir de férias no estrangeiro valia mais do que os jantares fora à sexta-feira?
E sabem quem foi o antigo ministro das Finanças, além de outras coisas mais tarde, que disse aquela verdade de tão elevado valor analítico? Pois. Foi o então Presidente da República, o Dr. Aníbal Cavaco Silva, doutorado em Economia Pública pela Universidade inglesa de York, e que serviu como ministro das Finanças do Governo de Francisco Sá Carneiro, entre 2 de Janeiro de 1980 e 10 de Janeiro de 1981.
Quando Cavaco disse aquilo, o socialista José Sócrates era o primeiro-ministro e havia um programa de incentivo económico para que os portugueses, no sentido de ajudarem ao estímulo da Economia nacional, fizessem férias “cá dentro”.
Que saudades do “vá para fora cá dentro”, quando ainda se podia, de todo, fazer férias, mesmo cá dentro. Quando ir jantar fora, “cá dentro”, era tão banal que nem chegava a tema de discussão. Bons tempos…
O mesmo Cavaco Silva, agora já ex-Presidente da República, escreveu em Abril do ano passado, no diário Público, que sem umas quantas reformas (que ele lá sabe) “continuaremos a ser um país de salários mínimos, de emigração dos jovens mais qualificados com ambição de subir na vida, uma classe média empobrecida, pensões de reforma que não permitem uma vida digna, elevado risco de pobreza e exclusão social e serviços públicos de baixa qualidade. Será assim, independentemente das promessas e ilusões criadas pelos governos e partidos políticos. A retórica e a mentira não produzem riqueza”.
Grande frase esta: “a retórica e a mentira não produzem riqueza”.
Para muitos portugueses, colocar jantar na mesa todos os dias – não apenas à sexta-feira – é cada vez mais difícil. E se há uns que ainda vão jantar fora, esses que aproveitem bem, pois se não pensarem nos pobres, os pobres irão pensar neles.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
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