Cânone P1

Lobo Antunes

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A primeira impressão amplamente positiva que este livro de Lobo Antunes nos causa é de uma continuidade inovadora que parece afirmar-se como o traço mais marcante da capacidade inesgotável da sua criação.

Dentro dessa impressão muito genérica, um conjunto de aspectos a destacar liga-se, de imediato, à linhagem literária em que a obra, do nosso ponto de vista, se inscreve. Com efeito, tomando-a na continuidade, num primeiro momento, a criação romanesca de Lobo Antunes aparece-nos inserida, de modo muito forte, na decorrência de um cânone, de uma família literária, que constitui o núcleo central de profunda revolução desenvolvida no romance por algumas atitudes autorais.

Podemos chamar modernistas a essas posições criativas e de manifestos poéticos – mais ou menos ficcionais –, até pelo paralelo que encontramos entre elas e as criações, em outros campos artísticos, que são reconhecidas como tais. Essas atitudes, de um modo geral, têm a ver, sobretudo, com o questionamento da representação espacial na sua articulação problemática com os vectores do tempo. De facto, uma espécie de preocupação dominante marca a produção artística, desde os princípios do século XX e, de um modo geral, ela procura de resolver, de maneiras controversas e variadas, a inscrição da quarta dimensão nos horizontes de percepção, construindo objectos em que não só é representada a relação das três dimensões clássicas do espaço com o tempo,  mas também a do observador com o observado.

Dentro dessa ordem de ideias, alguns romances fundamentais na produção literária ocidental, como os de Joyce, Proust e Faulkner, por exemplo, apontam claramente para a problemática dessa questão. Corroborando a importância de tal revolução modernista no romance, quase toda a produção do que se chamou o nouveau roman não faz mais do que reforçá-la. Para isso, instaurou como elemento dominante da criação romanesca o interesse explícito pela própria poética do romance, chegando alguns dos romances da “escola” a serem narrativas sobre a escrita de um romance.

Ora, não é por mero exercício de construção de um panteão que evocamos esses nomes e essas escolas: o começo do romance de que aqui falamos sobretudo convoca-nos, de imediato, duas das figuras centrais fundadoras desse modernismo: Joyce e Proust. A entidade voz que abre, por assim dizer, o discurso narrativo de  Que farei quando tudo arde? não pode deixar de nos evocar o universo de caóticas incursões imagísticas do estado semi-onírico de Molly Bloom, em Ulysses, de James Joyce, ou o universo de devaneio, num despertar mais ou menos embriagado, que se desenha em imprecisos contornos de invenção lexical em Finnegans Wake, do mesmo autor; como também não nos deixa esquecer o estado errático da imaginação do narrador de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, logo nas primeiras linhas do romance, quando procurava adormecer.

Se, por um lado, o despertar é francamente evocado, de imediato, nas primeiras linhas do último romance de Lobo Antunes: “Tinha a certeza que sonhara aquele sonho na véspera ou na antevéspera/ na véspera/ e por isso mesmo, sem acordar, pensava” (p.11) – por outro lado, o adormecer também aparece igualmente como importante momento do processo do discurso da voz atribuível à mesma personagem, no penúltimo capítulo do romance: “Quando morávamos juntos, me deitavam no colchão guardado debaixo da cama, o desenrolavam na cozinha a explicarem/ – É noite Paulo/ e ficava às escuras sentindo o que chamávamos o mar lá em baixo e não era mais que o rio, a foz do rio, o sítio onde o Tejo por alturas da ponte, cansado de tropeçar em montanhas, barragens, castelos, moinhos, planícies/ julgava eu/ desoladas chega finalmente ao oceano e se dissolve nele numa espécie de suspiro ou assim, quando morávamos juntos e ficava às escuras vendo a porta do quintal que surgia no halo do muro, pensava sempre que as lágrimas, as discussões acabavam, os meus pais/ vocês (…)” (p.611).

Esse é um dos processos segundo os quais o romance de Lobo Antunes estabelece aquilo que chamaríamos, aqui, o peculiar pacto de verosimilhança que o instrui. Segundo este, no vago do perceptível, na vacilação da racionalidade, o princípio da identidade dilui-se e o aqui e o agora dificilmente instauram fronteiras. Mas, note-se, a construção do momento do sono e do sonho como base em que se firma a origem das vozes, não é o único processo a dissolver os contornos em que é possível assegurar o efeito da realidade em causa e identificar os objectos de conhecimento; outros dois motivos reaparecem constantemente a incomodar a nossa “suspensão da descrença”: a evocação dos percursos das personagens pelas clínicas psiquiátricas e o facto de o consumo de drogas ou álcool ser frequente nalgumas delas.

Ora, se as vivências passionais são as fibras centrais das intrigas que se desenham e se o quotidiano das personagens é assolado pela própria marginalidade de algumas profissões ou modos de vida, como a prostituição, o transformismo (ou travestismo como também se diz muitas vezes) e a representação em circo como palhaços, completa-se o quadro da inquietante estranheza, no interior deste universo ficcionalmente construído, pela evocação permanente do momento da morte, do enterro, da perda dos parentes. Assim, enquanto ritual do enterro, ou a evocação do corpo morto, modulam a figura que se constrói com entidade perdida, a vacuidade das vidas que se apresentam como meras memórias, pela impossibilidade de lhes encontrar um esteiro de autenticidade, lança fortes colorações de suspeita sobre a verosimilhança das personagens.

Desse modo, o verosímil que se constrói não assenta sobre uma ética do socialmente instituído, do empiricamente reconhecido pelo grupo dominante, normativo, a que se chama todo social, como verdadeiro. Tendo o núcleo restrito da sociedade, representada fabulatoriamente, perdido as referências racionalmente aceitáveis que pautam os valores de verdade, – a heterossexualidade procriativa, a representação da autenticidade sexual, a vigília, a sobriedade e a sanidade mental – sendo as figuras dos mortos mais fortes afectivamente do que as dos vivos, podemos dizer que os processos de representação se constroem como perturbantes mecanismos de inquirição da verdade.

Lembraríamos, a propósito da importância que a evocação dos mortos e dos rituais de inumação tem no adensar da problemática da existência perspectivada pelos familiares amigos e conhecidos que lhes sobrevivem, As I lay dying, de William Faulkner, que se institui como modelo da narrativa do século XX exactamente pelo modo como usa o momento do enterro como cenário central e ponto nodal onde se tecem, em confrontos, as paixões e se visionam as acções em litígio.

Também é essa obra uma das que funda, pela criatividade que o autor americano com ela produz, a pluridiscursividade[i] dramatizada dos monólogos no romance. Resulta tal processo do facto de a narrativa avançar pelo entrecruzar, por vezes coerente, mas muitas vezes contraditório e mesmo paradoxal, dos vários discursos que, por assim dizer, representam o fluir de várias consciências em torno de um acontecimento central que unifica a acção. Com tal procedimento, Faulkner tinha intensificado e valorizado aquilo que já era notório, mas não dominante, em Dostoievski  – dado que, neste, esse encontro de vozes, embora nem sempre em sintonia, concordância ou mesmo em coerência interlocutiva, ainda se assemelhava muito ao discurso do diálogo típico do romance oitocentista.

Ora, Lobo Antunes, que, desde o seu primeiro romance, se caracteriza por um processo narrativo que se desenvolve pelo cruzar de vozes que nem sempre entabulam diálogo umas com a outras, leva, neste romance, o desenvolvimento de tal tradição a um ponto limite a que poderíamos chamar a dominância absoluta da polifonia em ruptura (Bakhtine, 1970: 33), ou, para usarmos termos mais simples, a dominância das sentenças em co-ocorrência sem estabelecimento de diálogo. Explicando ainda melhor, tudo se passa como se as vozes, representando personagens – por vezes personagens evocadas por uma delas –, se quisessem fazer ouvir pelas outras sem, contudo, darem atenção ao que as outras dizem.

hands formed together with red heart paint

Paulo, por exemplo, parece ser a personagem suporte desta narrativa, visto ser a partir da sua que todas as outras emergem – e aquela cujo nome é mais frequentemente evocado como elemento central do drama que se constrói como intriga (cf. M.A. Seixo, 2002: 428-429). No entanto, não é inteiramente evidente que isso seja sempre assim. Por exemplo, um dos capítulos começa com uma voz que se deixa perceber como a da mãe de Paulo invectivando o sujeito da escrita: “O meu filho Paulo que o aldrabe se lhe der na gana/ e o senhor a acreditar nele e a escrever ou a fingir que acredita nele e a escrever ou nem sequer a acreditar nele e a escrever…” (p.495).

É claro que, desse modo, fica posta em causa – pela aceitabilidade do princípio da contradição de duas afirmações antagónicas relativamente aos factos apresentados – a autenticidade de todos os ditos, incluindo o escrever que se presume (embora ninguém o afirme) que é o do escritor. A dúvida sobre a actividade da escrita como registo da verdade, aliás, é lançada de modo ainda mais evidente quando uma das vozes se manifesta como repórter e se revela incapaz de escrever o artigo em que fala do travesti, pai de Paulo, e do seu enterro, não só pelo contraditório dos depoimentos como pela impossibilidade de fornecer os “pormenores” que lhe parecem necessários e que o chefe de redacção anula por os considerar uma “mania” que “estraga a prosa” (pp. 257-262).

Uma outra tradição que seria de evocar aqui é a do modernismo português de Raúl Brandão, dado que o terror e a piedade se revelam como a grande paixão deste romance, em simultâneo com a paródia e o espectáculo de circo que resultam do confluir das várias personagens e cenários do romance.

Esta passagem, que se liga à voz/ escrita da personagem do jornalista, falando do pai de Paulo que foi palhaço e transformista, pode servir de exemplo dessa dívida para com o autor de A farsa: “a criatura chama-se Soraia senhor, foi a sepultar anteontem (…)/ veja a Soraia nessa esquina/ um acento grave e uma maiúscula que a fita não imprimiu/ a regressar das discotecas da Rua da Imprensa Nacional, umas caves de degraus na penumbra e nos fins dos degraus a música, as bailarinas, a cerveja em conta, a empregada/ dona Amélia/ com um tabuleiro de chocolates, perfumes e tabaco americano, o paraíso dos puros de coração, homossexuais, viciosos, melancólicos, transformistas, lésbicas e solitários como eu que perderam o seu ideal há trinta e cinco anos” (p. 260). De Brandão, parece-nos, é, assim, o culto de uma situação obsessiva, permanente, recorrente, expressa no acumular hiperbolizante dos elementos de um universo de desregramento, dor em paroxismo e “espanto” face aos indícios surpreendentes do mundo.

gray microphone in room

No entanto, o modelo mais directo do recurso a essa cena-quadro, quase estática ou repetitiva, núcleo dramático, de ressonância trágica, em torno do qual se vai compondo o mosaico das imagens, parece-nos ser José Cardoso Pires, sobretudo o de O Delfim. É dele que virá o modelo que Lobo Antunes tão bem cultiva dos fragmentos de acções, frases enigmáticas, diálogos em desentendimento, quadros perceptivos pouco  nítidos aglutinando-se em torno de um núcleo mítico-fabulatório, uma espécie de narrativa arcaica à qual se vêm juntar todas as fantasias, fantasmas e vivências. Tudo como se a dimensão afectiva desse núcleo perdido, apenas salvaguardado a custo e com imprecisão na memória, desencadeasse a intensidade da paixão e tornasse quase impossível o desenrolar seguro e aprazível da vivência e a sua fruição como realidade conquistada para a estabilidade do sujeito exactamente porque à nossa voz se opõe, perversamente, a voz do outro.

É assim que a voz de Paulo evoca o que há de inquietante na sua situação: “Se pudéssemos conversar não importa onde/na casa da praia, os Anjos, o Príncipe Real, a cave/um lugar onde fôssemos não os fantasmas de agora, mas as pessoas de dantes, fantasmas vocês que perdi e fantasma eu que os procuro entre sombras falando-vos como falam os mortos…” (p.477). Evocação de uma casa, um lugar de origem, uma família em que se revelaram os primeiros gestos do afecto e os estados emocionais fundadores, o romance desenvolve-se como um percurso pelos labirintos da memória e da fantasia, pelo reconstruir dos mitos e pela tentativa da melhor interpretação da situações dramáticas para fazer regressar o seu herói, eventualmente Paulo, filho do erro e do equívoco – uma mãe afectivamente abandonada, um pai palhaço e travesti (não era Laios homossexual, segundo algumas versões do muthos?), uns pais adoptivos sem grandes rasgos de espírito, uma sociedade  despojada de ideais – a um humos original acolhedor.

A narrativa, desse modo, não se assemelha a um cursor linear, partindo de uma necessária carência, para a busca de uma etapa final de reencontro e plenitude ou, pelo menos, para uma compreensão do que no Cosmo é um enigma. Quase ao contrário, do que se parte é do turbilhão fundador do discurso, da evocação dos mortos como inevitáveis personagens do pesadelo, dos entes perdidos como obsessivos adversários no percurso do sujeito que busca a elementar verdade em que assenta o seu ser, e que parece poder resumir-se numa pergunta: “de onde venho?”.

person holding white book

O fascinante é que o que se lhe apresenta nos labirintos da memória, independentemente de ser verdade ou fantasia, não passa do teorema da impossibilidade da sua origem em conformidade com os valores do humano: a mãe violada, pagando um favor e não desejando um filho, e um pai desqualificado como “paternidade”. Palhaço ou travesti, ora a paródia do homem ora a sua inversão sexual (Carlos? Soraia?), a imagem do pai só se inscreve socialmente na marginalidade ou na perturbante diferença.

Recorrentemente são as franjas marginais que pautam o lugar da morte e o ritual do enterro do pai: os mulatos, os travestis, os palhaços, os cães vadios. Com a mãe anulada enquanto mulher não desejável, integrado na família insignificante dos pais adoptivos, lançado no mundo da droga, a voz que circula, fazendo emergir as outras – dos seus parceiros, entes queridos perdidos ou figuras ameaçadoras das instituições ou das sombras – o potencial protagonista só se pode exprimir pelo drama que monta sobre o fundo obcecante do terror de si próprio como morto: “falando-vos como falam os mortos e respondendo palavras minhas, não vossas, o que espero que digam sabendo  que não diriam desse modo, se pudessem contar-me o que não conheço e talvez prefira não conhecer, o que sucedeu antes do meu nascimento ou quando era pequeno demais para entender que sucedera e apenas me permito inventar, conforme as cartas antigas inventam o passado” (p. 477).

E não será essa uma das forças maiores da ficção – ensinar-nos por entreposta experiência fantasiada como a nossa voz é inventada pela dos outros, voz pela qual nos criamos um eu mítico que só existe em plenitude ontológica como oposto aos outros que, até certo ponto, são fantasia nossa, tal como os delineamos pela nossa voz?  

graffiti on wall during daytime

No emergir confuso das vozes em multidão, delineando-se e desaparecendo, por vezes no mesmo enunciado, uma das grandes figuras que nos parece tutelar a encenação destas vozes que dizem, repetem, reformulam e desdizem os factos é o ruído. Ora, como nos ensina tradicionalmente a teoria da informação, o ruído é uma tendência de perturbação da boa circulação da mensagem mas, inversamente, é o modo pelo qual se intensifica a informação, a nível semântico, quando ultrapassamos o nível meramente tecnológico da comunicação e a emergência da ambiguidade se afirma como elemento importante na produção de sentido.

Do ponto de vista da “boa clareza”, o ruído não deve existir: mas uma mensagem sem ruído corre, no entanto, o risco de se tornar transparente. No limite, não transmite informação, é imperceptível, por tanto repisar os elementos que a tornam redundante: o que é dito em acréscimo é exactamente igual ao que já foi dito. O ruído, ao contrário, concentra informação, na medida em que provoca um máximo de busca de conhecimento e uma quase perda dos apoios do reconhecimento.

Estas considerações em que resumimos de modo simplificado algumas das consequências das teorias de Shannon e Weaver[ii], permitem-nos adiantar uma suposição sobre este labirinto de vozes, tal como ele é usado por Lobo Antunes. Dividiríamos, para melhor compreensão, essa suposição em dois horizontes de possibilidade: um afirmaria que aumentando a indeterminação semântica, pela multiplicação das vozes em antagonismo e contradição, a fábula – que se resume a um número muito pequeno de factos que residem numa história traumática (e mesmo clínica) de um jovem drogado – adensa-se como enigma e espaço de interrogação existencial e antropológico – resultando que uma espécie de enigma da vida e da morte surge no amontoar de repetições, contradições e sobreposições em que se nega o desenrolar da  intriga; o outro horizonte reforçaria o anterior pelo que dá de vislumbre de um dizer da multidão – não a vox populi, no entanto, mas antes a voz da massa, o acumular repetitivo do dizer ao qual já é indiferente a origem da fonte porque, se nenhuma é qualificada, todas se anulam – uma espécie de enigma do enunciar, uma vez que não é possível atribuir uma personalidade ao dizer.

person smoking

Ora, assim, o enigma desloca-se, curiosamente, do dito para o dizer como acto, e não tanto pelo sentido do enunciado, mas pela forma da entidade que formula. A suspeita que cultivamos, assim, como interrogação fecunda, é a de que a prática do ruído produtivo, a ambiguidade que instaura a dúvida como entidade heurística ou figura epistemológica em Lobo Antunes, não se processa tanto ao nível das distorções semânticas, como ao nível das distorções (ou ruídos) de enunciação. O que nele se torna central e dominante, sobretudo neste romance, não é tanto a inquietação do sentido, pela indeterminação, fragilidade ético-psicológica das personagens, ou mesmo a sua duplicidade, que as tornaria pouco dignas de confiança, como a inquietação do sentido pela complexidade e distorção das instâncias de enunciação. Não se trata mais de interrogar que tipo de verdade ou falsidade cada personagem comporta, sobretudo a partir da validade dos seus fazeres ou dizeres – trata-se, sim, de questionar a própria possibilidade de representar ou de meter em cena (encenar, no sentido mais forte do termo) a voz.

Tudo se passa – para recorrermos ao exemplo do teatro e da semiotização do seu pôr em cena as personagens, dado o palco ser o lugar onde o encenar da voz é menos “equívoco” – como se as falas se deslocassem das didascálias a que pertencem e se infiltrassem nas que lhe são vizinhas e que, por vezes, numa lógica de empastelamento da presentificação cénica, as falas fossem produzidas pelos nomes das personagens às quais são dirigidas.

Desse modo, a enunciação resvala, em muito casos, de um sujeito que aparentemente a suportava – que era o sujeito da enunciação, responsável, aparentemente, do dizer, seu garante “psicológico”, “epistemológico” e semântico – para o sujeito do enunciado ou mesmo para o vocativo da frase, passando a responsabilidade da frase a ser, também, do “ele”, de quem se fala, ou do “tu” a quem se dirige.

black Corona typewriter on brown wood planks

As consequências mais evidentes de uma tal prática – que sumariámos através das suas ocorrências mais notórias, omitindo as variações de registos de enunciação que já eram formulações típicas de Lobo Antunes e mesmo  procedimentos de narração similares dos autores que prefigurariam o seu cânone mais ou menos explícito (a que aludimos logo no princípio do nosso trabalho) – são, parece-nos: lançar uma opacidade significativa sobre o suporte mais evidente do discurso enquanto coerência lógica, inequívoca (ou unívoca – “univocal”, leia-se) e detentora de uma razão última das coisas; desenvolver uma cenografia do discurso romanesco onde a presença das vozes da narração e da narrativa se entrelacem numa evidência de fazer poético, sem que assista a nenhuma delas mais autoridade – no plano do conhecimento ou do interrogar dos enigmas  (de uma epistemologia, tal como a vimos conceptualizando aqui) – do que às outras; e uma reinscrição do autor no universo poético da própria criação, enquanto ser textual, que estabelece com a História e com o real uma relação problemática, muito mais inserido, como parte no enigma que dá sentido ao acto poético, na obra do que seu condutor. Surge, desse modo, muito mais como joguete do enigma do que como detentor de um saber que poderia pretender dissolver o mistério e retirar ao acto poético a sua dimensão inquiridora central.

Acompanhamos aqui, inteiramente, o juízo de Maria Alzira Seixo formulado a propósito exactamente deste romance (embora com alcance para o conjunto da obra do autor – ampliação que, em linhas gerais, propomos de modo similar):

 “a questão autobiográfica só tem sentido se o traço que remete para a figura do escritor, para a sua circunstância ou para a sua experiência, criar uma interpelação  do texto em relação àquele que o lê,  e obrigar essa interpelação a seguir um caminho de conjectura  quanto aos labirintos da produção artística. Isto é: o que é importante, (no excerto do romance citado pela autora em que a voz ora se autonomeia Paulo – nome da personagem – ora António, nome do autor: António Lobo Antunes ) não é tanto que a personagem se nos comunique com o nome de António (…) mas que entre o nome da ficção, Paulo, e o nome do ficcionista, António, se crie uma hesitação de identificação (sobretudo num romance que tematiza a identidade), hesitação essa que é justamente o que faz ler um romance como «mundo possível», e que, na hesitação comungante entre o real (sensível, mas inapreensível) e o imaginário (apreensível, mas apenas sensível nos riscos que continuam a escrita e configuram a sua representação mental) do romance as imagens se desprendam para virem interferir com o real e o imaginário do leitor e com ele entrem em diálogo de problematização ou actuação do pensamento fecundante” (2002: 476).

book lot on black wooden shelf

Embora  o tratamento do autor se coloque como questão central na estratégia da poética de Lobo Antunes, o espaço epistemológico que ela abre, a este nível da enunciação, reformula toda uma concepção do tratamento do saber e do conhecimento a que a literatura aspira. Muito especialmente no romance, sobretudo quando as suas formas são inquietadas até ao limite, como é o caso das obras de Lobo Antunes e desta muito particularmente, o modelo de mundo possível aberto retoma com a extrema veemência o postulado do verosímil, tal como Aristóteles o colocou  na sua poética: não tanto como algo que se “concede” à literatura pela condescendência da filosofia (ou da metafísica, ou da epistemologia, como suas partes constituintes fundamentais) para o poético poder ter um direito de cidadania, mas como uma afirmação de valor, sendo o verosímil um importante processo de construção da verdade suprema, inteligível (aletheia), e não um equivocado percurso em concorrência com a verdade do logos racional (episteme).

Ora, para que o saber se represente no literário, parece-nos, há um lugar que tem de ser minimizado, para que a ficção (a suspensão da descrença, que leríamos como o verosímil, neste caso) ganhe força, e a ambiguidade se instale como mecanismo epistemológico: o do centro detentor do saber final. Na filosofia, é ao “primeiro” Platão, concretamente ao de Íon, mas mesmo o de Crátilo, por exemplo, que temos de nos reportar, para percebermos quanto “Sócrates”, o primeiro, representa esse autor sem “autoridade”, que circula entre o seus pares, buscando a inteligibilidade que está para lá dos saberes. E é contra uma autoridade como a do segundo “Sócrates”, o da República (do primeiro livro em diante, dizem-nos os especialistas), que o romanesco de Lobo Antunes se formula. E é nesse sentido que pensamos residir a grande força da encenação das vozes em torno de um centro que todos partilham mas ninguém assume em plenitude de direito.

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Bakhtine, Mikhail, 1970, La Poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

Jakobson, Roman, 1963, Essais de linguistique générale, Seuil, Paris

Martinet, Jeanne, 1976, Chaves para a semiologia, Dom Quixote, Lisboa

Seixo, Maria Alzira, 2002, Os romances de António Lobo Antunes, Dom Quixote, Lisboa     


[i] Reportamo-nos aqui, evidentemente, ao uso que Bakhtine faz do termo polifónico   para falar das vozes do romance, sobretudo no de Dostoievski (cf. Bakhtine, 1970: 332-39)

[ii] Sobre esta matéria complexa, de cuja dimensão paradoxal tiramos fundamentos para algumas explorações na ordem do poético, remetemos para os textos de Jakobson e de J. Martinet constantes na nossa bibliografia, nos quais apoiamos as nossas hipóteses. Considerando que pode ser “«ruído» tudo o que é responsável pelo malogro de um acto sémico” Jeanne Martinet (1976: 36) abre-nos a perspectiva para pensarmos quanto o poético e o literário vivem  exactamente do malogro do acto monossémico. E cremos estar correctos ao pensarmos quanto a compreensão do poético pelo ponto de vista da estilística deve às observações de Jakobson acerca da importância do “«barulho semântico»” (1963: 95), pelo que este  permite de “ambiguidades  ao receptor” que “caracterizam as ambiguidades da poesia e do jogo de palavras” (Jakobson, 1963: 94). Sem esse ponto de vista certamente que a famosa e fecunda “teoria” do desvio ou não existiria ou teria muito mais dificuldades em se sustentar.

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