Recensão: Roteiro afetivo de palavras perdidas

A derradeira viagem pelas letras esquecidas

por Ana Luísa Pereira // Fevereiro 19, 2023


Categoria: Cultura

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Título

Roteiro afetivo de palavras perdidas

Autor

ANTÓNIO MEGA FERREIRA

Editora (Edição)

Tinta da China (Outubro de 2022)

Cotação

18/20

Recensão

Jornalista, escritor e gestor cultural, António Mega Ferreira, desaparecido há menos de dois meses, no final de Dezembro, nasceu na lisboeta Mouraria em 1949, e terá dito que “gostaria de ficar conhecido na História como um tipo que fez essas coisas todas na área da cultura”.

Com mais ou menos polémica, alguma coisa ficou feita. Mega Ferreira coordenou a candidatura de Lisboa à Expo’98, da qual foi depois comissário executivo, tendo em seguida presidido ao Parque Expo, ao Oceanário e ao Pavilhão Multiusos de Lisboa.

Além disso, dirigiu a Fundação do Centro Cultural de Belém entre 2006 e 2012, tendo também ocupado a liderança executiva da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC).

Mas antes de tudo isto, foi jornalista, passando pelo Expresso, ocupou a chefia de redacção do Jornal de Letras e da RTP2, e fundou ainda as revistas Ler e Oceanos.

Deixou também mais de 30 obras publicadas, entre ficção, ensaio, poesia e crónicas. E foi com Crónicas italianas, publicada em 2021, que receberia o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga.

Na sua última obra em vida, Roteiro afetivo de palavras perdidas, Mega Ferreira desenha-nos um repositório de palavras em desuso ou “olvidadas”, para que possamos reviver ou reconhecer, com ele, aquelas que a sociedade portuguesa tende a dar “sumiço” do seu riquíssimo vocabulário. E é, em sentido metafórico também, um livro de viagens. Uma viagem no tempo por uma sociedade pouco cosmopolita e quase ignorante, a que vivia no “mundo salazarista”, com um mundo de “clichés” e de propaganda política: “Uma pavorosa ignorância de tudo o que se passava além da nossa fronteira”.

O que provocava uma espécie de ressentimento por parte das chamadas elites que importavam e usurpavam, de forma faceciosa, palavras da língua francesa, como “galheta” ou “psiché”, e outras que foram substituídas por termos anglo-saxónicos, como seja “métier” (por especialista – tão em voga nos últimos três anos), ou mesmo “aeroplano”.

Em cada palavra, assim temos uma viagem no tempo. Mega Ferreira conduz-nos, ora pelos caminhos obscuros da criação de palavras, ora pelas memórias da sua infância, ora pelos trilhos da História, ora pelas páginas de muitos livros, para nos apresentar de forma deliciosa e afectuosa algumas palavras que se vão perdendo e outras que se recuperam, mas com outros sentidos.

“Geringonça” é disso exemplo, um neologismo, diz-nos o autor, já que o seu uso na política é algo inédito. “Nos longínquos anos 50 designava uma traquitana, um carro velho e desconjuntado pronto para ir para a sucata”. Mas Mega Ferreira vai mais atrás e recorre a outras obras para dar a conhecer as origens desta e de outras palavras no léxico português, para remeter “geringonça” para “algo mal contruído ou frágil”.   

É muito provável que o leitor/a acima dos 40 anos se identifique e até emocione com uma série de “palavras perdidas”, como por exemplo, “desaustinado”, “telefonia” ou mesmo “inalador” – quantos de nós terão sentido o aroma fresco de Vicks VapoRub, com que nos “friccionavam o peito quando uma ponta de tosse infantil” nos assaltava.

Muitas outras palavras são capazes de nos desfiarem sorrisos. Ao todo são oito dezenas, mas Mega Ferreira tinha uma lista de 250 entradas no seu roteiro inicial. Quem sabe fique o desafio para recuperar, ou pelo menos, registar e guardar algumas palavras e expressões que nos são caras, nos nossos cofres e cadernos, para que a elas recorramos sempre que nos apercebermos que alguns “famigerados” “estafermos” nos estão a “infernizar” com os seus “despautérios”.

Por curiosidade, “padralhada” não está neste inventário, “mas bem poderia estar”, como confessou Mega Ferreira, que contava que o pai quase vociferava quando afirmava “é preciso afastar essa padralhada toda”. Mas este país, este Portugal, parece continuar preso ao “pecado” – esta, sim, uma palavra deste Roteiro afetivo de palavras perdidas que, apesar de não se ter “perdido”, talvez comece, finalmente, a ficar em desuso.

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