Como referência à morte do antigo ministro das Finanças, João Salgueiro, relembramos o mito da eleição de Cavaco Silva em 1985, frente ao falecido ex-ministro, no congresso do PSD da Figueira da Foz. Antes que os mitos de Cavaco se tornem na verdade histórica. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.
A notícia do falecimento do economista e antigo ministro das Finanças social-democrata, João Salgueiro, no passado dia 17, lembrou um mito esquecido na política portuguesa e que remonta ao congresso do PSD em 1985 e à eleição “inesperada” de Cavaco Silva.
Antes disso, lembre-se que João Salgueiro era uma personalidade que não surgira na política portuguesa pós-25 de Abril de 1974 propriamente do nada, pois tinha a experiência governamental do tempo do Estado Novo, onde trabalhou directamente com o ditador Marcello Caetano, como subsecretário de Estado do Planeamento Económico. João Salgueiro também não era aquilo que podemos qualificar como um “homem do regime”, pois até esteve na fundação da associação cívica SEDES.
Tendo sido vice-governador do Banco de Portugal, aderiu ao PSD após a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, em Dezembro de 1980. Uma decisão emotiva. Naquela altura, o sucessor do primeiro-ministro morto no alegado atentado de Camarate foi Francisco Pinto Balsemão, que não contou com o então ministro das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, para continuar no governo.
João Salgueiro era vizinho de Balsemão, na Rua Ribeiro Sanches, à Lapa, e o novo primeiro-ministro queria-o para o seu executivo. Só que o economista rejeitou o convite por razões pessoais e, considerando ainda a recente adesão ao partido, que o vissem como um oportunista. Balsemão teve de se contentar com o centrista João Morais Leitão para o cargo anteriormente ocupado por Cavaco. Mas, em Setembro de 1981, após a resolução de uma crise governamental, Balsemão formou novo governo e, finalmente, levou o vizinho João Salgueiro para as Finanças, cargo que o economista conduziu até Junho de 1983.
A marca imprimida por João Salgueiro levou-o depois a ser considerado como o principal candidato à liderança do PSD após a morte de Mota Pinto, em 1985. E é aqui que entra um mito da política portuguesa: João Salgueiro foi derrotado no congresso social-democrata da Figueira da Foz, em Maio de 1985, pelo antigo ministro das Finanças do governo de Sá Carneiro, Cavaco Silva, que só estava presente no congresso porque tinha ido fazer a rodagem do seu novo carro e saiu vencedor de forma “inesperada”.
A margem eleitoral entre Cavaco e Salgueiro foram 57 votos e, depois do que aconteceu na Figueira da Foz, já se sabe: Cavaco tornou-se primeiro-ministro até 1995 e ainda chegou a ser Presidente da República. Fica sempre, para o reino da ficção alternativa, como seria Portugal caso João Salgueiro tivesse chegado a ser ele o primeiro-ministro em vez de Cavaco Silva.
Ao ver as notícias da morte de João Salgueiro percebe-se como o mito inventado por Cavaco Silva está hoje bem enraizado na história recente da política portuguesa e, como estes textos estão escritos debaixo da designação “Histórias que eu sei”, sou levado a ter de recordar, nesta hora em que desaparece um homem que fez parte desta história, aquilo que sei.
Sei que Cavaco Silva, que sempre disse ser um economista e que nunca se assumiu como político profissional, é o melhor político que este país conheceu. E se há muita gente que não gosta dos políticos portugueses, então é a Cavaco que o devem, pois o melhor político é aquele que nem sequer pode ser acusado de ser político. E Cavaco conseguiu criar esse mito à sua volta.
O primeiro mito de Cavaco é ter-nos feito acreditar que, após a morte de Sá Carneiro, não tinha hipóteses de se manter no governo. Que até estava cansado e queria sair após um ano em funções, entre Janeiro de 1980 e Janeiro de 1981, altura em que Balsemão se preparava para se sentar na cadeira de S. Bento.
É falso: logo após a morte de Sá Carneiro, a 13 de Dezembro, o semanário Expresso, propriedade de Pinto Balsemão e dirigido interinamente pelo actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dizia em primeira página que o nome de Cavaco Silva estava a ser ponderado dentro do PSD como “hipótese forte” para ficar à frente do executivo, enquanto Balsemão ocuparia o cargo de presidente dos sociais-democratas.
Será modéstia de Cavaco não reconhecer que o seu nome era o mais forte para suceder a Sá Carneiro em 1980?
Ou será que foram as condições por si impostas a Balsemão que não agradaram ao único dos três fundadores originais do PSD que ainda estava vivo e filiado no partido? Talvez ajude relembrar aqui as declarações de Balsemão ao Diário de Notícias de 1 de Janeiro de 1981 que, a propósito do projecto de Cavaco Silva, afirmou: “Estou convencido de que nunca vingarão em Portugal projectos de poder pessoal, porque o povo português ao escolher quem quer para governar escolhe um conjunto de medidas, um modelo de sociedade, e não o cidadão A ou B”, tendo acrescentado esta frase fatal: “Santa Comba Dão em 1980, em Portugal, não é concebível”.
Sim, Balsemão comparou directamente Cavaco Silva ao ditador Salazar. E isto, seis anos após o 25 de Abril, era visto como um enorme insulto político. Hoje, alguns diriam ser uma medalha, mas foi também no tempo em que Balsemão ainda não participava nas reuniões internacionais do Grupo Bilderberg e acreditava-se que Camarate tinha sido um acidente.
O segundo mito de Cavaco é o de que se manteve de fora da política activa até à altura em que chegou a líder do PSD. Afinal, recusou ser deputado e só falava publicamente quando lhe pediam a opinião.
Falso: Cavaco encabeçou uma lista para o Conselho Nacional do PSD no primeiro congresso do partido após a morte de Sá Carneiro, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa – actual Pavilhão Carlos Lopes –, em Fevereiro de 1981, tendo feito aí o seu primeiro discurso em congressos. Estava na política activa. E pior: era activamente contra o líder do seu partido e primeiro-ministro, Pinto Balsemão.
Uma pessoa que topou bem essa nova esperança no futuro do PSD foi então um jovem jornalista do semanário Tempo, chamado Paulo Portas, que assinou uma entrevista com Cavaco Silva a 4 de Junho de 1981. Portas perguntou a Cavaco se, ao estar activo dentro do partido, não estaria a fazer um “tirocínio partidário” e se não colocava de lado a hipótese de poder ser chamado a funções mais elevadas. A resposta do economista Cavaco foi a resposta de qualquer político: “O PSD precisa de todos”.
Um ano depois, Cavaco assinava, com Eurico de Melo, uma carta aberta contra Balsemão. Aquilo não caiu bem, tanto mais que havia eleições autárquicas em Dezembro e, viu-se, o mau resultado do PSD – coligado desde 1980 com CDS e PPM, na AD –, levou à demissão de Balsemão.
No discurso de despedida da liderança do PSD, em Março de 1983, em Montechoro, Balsemão deixa um recado ao interior do partido dizendo que não se poderia aceitar que viessem a ser recompensados aqueles que “nos últimos dois anos, só se distinguiram por se colocarem fora do sistema, por desrespeitarem as resoluções dos órgãos próprios do partido, por se refugiarem calmamente em sua casa ou no seu escritório e se limitarem a falar de quando em quando para os jornais ou a escrever cartas abertas publicadas nas piores ocasiões”. Está-se mesmo a ver quem era o alvo: o maior dos políticos.
O terceiro mito de Cavaco e o maior de todos, é aquele em que ele diz que foi “inesperadamente” eleito líder do PSD no congresso da Figueira da Foz, em 1985, vencendo João Salgueiro, candidato apoiado por Pinto Balsemão. É certo que teve uma diferença de 57 votos, mas não se pode dizer que Cavaco Silva só foi ao congresso para fazer a rodagem do carro e dizer o que tinha a dizer e, depois, vir embora.
A falsidade do argumento é desmentida, primeiro, pela manchete do Expresso a 11 de Maio de 1985, uma semana antes do congresso, que se realizaria entre os dias 17 e 19 de Maio: “Distritais avançam nome de Cavaco Silva”. Eram as letras gordas da primeira página do Expresso, acompanhadas de um ante-título, com letras mais pequenas, a dizer: “Com candidatura de Salgueiro quase certa no PSD”.
Outro semanário bem informado sobre os passos de Cavaco na preparação para o congresso, era o Tempo – uma escola para o futuro director do Independente, Paulo Portas. A manchete de sexta-feira, dia 17 de Maio, à abertura do congresso, tinha a foto de um sorridente Cavaco e, em letras gordas: “Discurso de Cavaco vai ser decisivo”. E com isto, ainda nos querem fazer acreditar na rodagem do carro? E no “inesperado”?
Cavaco conseguiu ser eleito e João Salgueiro nunca mais exerceu qualquer outro cargo político, e este é agora o País que temos. Não sei se seríamos diferentes caso o resultado do congresso de 1985 tivesse sido favorável a João Salgueiro, mas uma coisa tenho a certeza que nunca haveria: os factos omitidos para a criação do mito de Cavaco Silva.
Que a morte de João Salgueiro nos permita desfazer um pouco disto antes que se tornem para sempre na verdade em que todos acreditarão.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
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