Quem é o Edgar Caetano, pergunta-me o leitor.
Eu respondo por ele, citando-o: “Encontrei o equilíbrio que sempre procurei entre as letras e os números quando, há 16 anos, me tornei jornalista ligado à Economia e, em especial, aos Mercados Financeiros. Nascido em Águeda e licenciado em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, trabalhei quatro anos com a delegação em Lisboa da agência Dow Jones Newswires. Passei, depois, mais quatro anos na secção de Mercados do Jornal de Negócios, onde acompanhei de perto a crise da dívida da zona euro. Estou no Observador desde setembro de 2014 e, além da Economia, da Banca e dos Mercados, interesso-me pelas áreas da Tecnologia e da Inovação – tema de uma newsletter que assinei no Observador entre 2016 e 2019. Obrigado por me ler.”
Eu leio o que escreve o Edgar Caetano; e li o que Edgar Caetano e muitos outros jornalistas escreveram durante a pandemia, metendo foice em seara alheia, tocando rabecão sem sequer serem sapateiros, e contribuindo assim para uma certa narrativa única, para um afunilar de supostas verdades factuais, dogmáticas e inquestionáveis, pouco importando se, no meio disto, ostracizavam, silenciavam e difamavam.
O Edgar Caetano surge aqui como exemplo; mas há muitos mais, que poderiam ser citados – e que, às tantas, terei um dia de os elencar, a todos, porque mostra-se fundamental ser conhecida e discutida uma lista de nomes. A podridão tem de ser libertada para que novos ares pairem sobre a nobre função do Jornalismo.
Mas centremo-nos, por agora, no Edgar Caetano, que hoje, no Observador – tal como muitos outros media mainstream – fez eco da “convicção de Christopher Wray, diretor do norte-americano FBI, que acredita que poderá ter havido um ‘incidente’ num laboratório e que o regime chinês ‘tem feito o seu melhor para ofuscar’ os esforços para identificar a origem do vírus”.
E o ‘nosso’ Edgar Caetano acrescenta ainda que o The Wall Street Journal avançou este fim-de-semana a existência de “um estudo classificado, referente a 2021, do Departamento de Energia dos Estados Unidos, e que foi fornecido à Casa Branca por legisladores americanos”, que também aponta para a criação em laboratório do SARS-CoV-2.
Aquilo que Edgar Caetano, e tantos outros (supostos) jornalistas se esqueceram foi de, à laia de post scriptum (vulgo, P.S.), fazer um mea culpa – de culpa inteira – sobre o seu papel na campanha de desinformação e de difamação que alimentou o público durante os últimos três anos.
Foram eles – e com redobradas responsabilidades, atendíveis as suas funções de jornalistas – mais perniciosos na criação de fake news e de manipulação do que os teóricos das conspirações estapafúrdias (que também os há) atrelados (sempre, claro) à extrema-direita (que também os há, e cada vez mais, como falência democrática).
Mas vejamos o caso concreto do ‘nosso’ Edgar Caetano – e a razão, vista está, da minha fúria.
Em 19 de Abril de 2020 – está agora a fazer quase três anos –, o mesmíssimo Edgar Caetano escrevinhou uma “peça” – chamemos-lhe assim como sinónimo de asco – de pura difamação sobre um notável virologista, recentemente desaparecido, Luc Montagnier – e que, mesmo agora morto, perceberá mais de Ciência do que este ‘nosso’ Edgar Caetano com uma overdose de Memofante.
Reza assim essa infame “peça” de Edgar Caetano: “A teoria circula há vários meses e já foi desmentida por vários cientistas. Mas um controverso virologista francês laureado com o prémio Nobel pela pesquisa sobre o HIV, Luc Montagnier, acredita que o vírus saiu de laboratório em Wuhan e defende que a explicação mais consensual – uma transmissão com origem num ‘mercado vivo’ da cidade chinesa – é uma ‘história da carochinha’. A declaração está a causar polémica, com outros investigadores a descredibilizar Montagnier, considerando que o investigador premiado tem estado ‘em decadência acelerada nos últimos anos’.”
Para “confirmar” a tal “decadência acelerada nos últimos anos” de Luc Montagnier, Edgar Caetano não encontrou melhor ‘prova’ do que um tweet de um estudante de doutoramento de doença das Chagas, um tal Juan Carlos Gabaldón.
E para confirmar o suposto desmentido de “vários cientistas”, Edgar Caetano remeteu simplesmente para um artigo da Nature de 17 de Março de 2020, cujo autor principal é o dinamarquês Kristian G. Andersen, de um instituto de investigação (não-universitário) norte-americano, que a partir daquele singelo artigo coleccionou financiamentos federais, a começar pelo de 8,9 milhões de dólares do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), então liderado por Anthony Fauci.
Em Outubro do ano passado foram mais 2,5 milhões de dólares do Centers for Disease Control & Prevention (CDC) para desenvolvimento de software para rastrear a evolução e disseminação geográfica das variantes do SARS-CoV-2. Para Andersen, o SARS-CoV-2 tornou-se um maná.
Note-se que, através de e-mails “vazados”, e verídicos, soube-se, entretanto, e o próprio The New York Times destacou, que Kristian G. Andersen até suspeitara inicialmente da origem manipulada do SARS-CoV-2. Tal como Luc Montagnier.
Na mesma linha, e usando exactamente o mesmo tweet do obscuro estudante de doutoramento para sustentar o descrédito de Montagnier, seguiu a jornalista Teresa Campos, da revista Visão, em 20 de Abril de 2020. Descredibilize-se o mensageiro para descredibilizar a mensagem – eis a receita infalível dos cretinos.
[Sou apologista de descredibilizar a mensagem para descredibilizar o mensageiro; este editorial tem essa função]
Enfim, foi assim, com os Edgares Caetanos de certa vida airada do jornalismo, que se criou rapidamente uma Narrativa. Tudo inquestionável. Tudo facilmente descartável se fosse diferente. Tudo menorizado, se fosse controverso. Tudo tachado de “falso”, se soasse a crítica. Tudo feito, alegre e diligentemente, por acríticos escribas, a maioria sem qualquer formação científica, sem qualquer capacidade crítica, sem quaisquer princípios deontológicos.
Isolar, misturar e conspurcar – foi esta a estratégia. Isolar da comunidade científica quem fugisse da narrativa. Misturar essa pessoa com as mais estapafúrdias teorias (que as há) para a tornar menos racional. Conspurcar a sua credibilidade, bastando escribas de serviço para lhes colocar epítetos, deficiências e outras demais maleitas, servindo tudo para escarmento dos demais.
[Vejam no dicionário o significado de escarmento, se não souberem, porque era termo muito usado pela Inquisição – onde muitos jornalistas desta geração se sentiriam bem como esbirros –, de sorte que uma punição não servisse apenas para o castigado.]
Aliás, quando Luc Montagnier questionou a origem do SARS-CoV-2, lestos foram os fact-checkers (em Portugal e por esse mundo fora) a analisarem afirmações – nunca confirmadas – de um outro Prémio Nobel, Tasuku Honjo – para sobretudo denegrirem o virologista francês e garantir a irrefutável certeza da origem natural do vírus atribuída pelo agora afortunado (no sentido monetário) investigador dinamarquês.
O Polígrafo, por exemplo, foi em Portugal um dos ponta-de-lança mais activos nesta campanha, “desenterrando” muitas vezes, teorias da conspiração – quanto mais estapafúrdias melhor – para negar a possibilidade de debates sérios. Veja-se o caso de um fact-checking de Gustavo Sampaio de 20 de Março de 2020, onde a pretexto de uma hipotética e absurda tese (vinda de um simples post de origem não identificada das redes sociais) de alguém ter criado um vírus para matar 1% da população (como se houvesse essa possibilidade de “programação”), se insiste na irrefutável origem natural do novo coronavírus.
[Já agora, o “artigo” de Gustavo Sampaio teve o ”Alto Patrocínio” da Direcção-Geral da Saúde e do Facebook, o que convém sempre destacar. E também convém relembrar que o Polígrafo participou num projecto de suposto jornalismo colaborativo denominado CoronaVirusFacts Alliance, uma união de fact-checking para “verificar” (aspas minhas) a veracidade das informações colocadas a circular online]
Também sobre o tema da origem laboratorial do SARS-CoV-2, o Observador até fez, na altura, dois fact checkings, em 9 de Fevereiro e em 18 de Março de 2020, sempre pela jornalista Marta Leite Ferreira – mais uma ponta-de-lança do jornalismo português para a criação da dogmática narrativa oficial da pandemia – que, agora, a devia fazer corar de vergonha, se a vergonha fosse atributo que ela reconhecesse.
A forma como a diligente imprensa mainstream, através de jornalistas sem coluna vertebral e sem princípios deontológicos, tratou supostos “dissidentes” da narrativa pandémica – na origem do vírus, na eficácia das máscaras, nos certificados digitais como estratégia de controlo da transmissão, na necessidade de vacinação de menores e jovens saudáveis, na “justeza” da discriminação de não-vacinados, na recusa de debater efeitos secundários das vacinas, etc. – ficará como uma Página Negra (que digo!, uma enciclopédia inteira) do Jornalismo.
Veja-se ainda, por exemplo, o que, a páginas tantas, a jornalista Clara Barata, do Público, escreveu recentemente, em 12 de Janeiro, à laia de obituário de Luc Montagnier, com uma passagem completamente infame:
“E continuou [Luc Montagnier] a avançar com as suas ideias controversas. Por exemplo, em 2020, afirmou numa entrevista a um site e depois na televisão CNews (uma espécie de Fox News francesa) que o vírus SARS-CoV-2, que causa a covid-19, teria sido fabricado em laboratório a partir do vírus VIH-sida. ‘Não é natural, é um trabalho de profissional, de biólogo molecular, de modificar as sequências [genéticas]. Com que objectivo? Não sei (…) Uma das minhas hipóteses é que queriam fazer uma vacina contra a sida’, disse na televisão.
A tese de Luc Montagnier – que não convence a comunidade científica – era muito parecida com a de um estudo indiano publicado online, sem ter sido submetido a avaliação pelos pares, e muito contestado pelos especialistas, relata o Le Monde. O artigo evocava ‘uma semelhança estranha’, ‘que tem poucas hipóteses de ser fortuita’ nas sequências de aminoácidos de uma proteína do SARS-CoV-2 e outra do VIH-sida.
Apesar de desacreditado pelos cientistas, este artigo fez sucesso entre os aficionados das teorias da conspiração, e correu muito pelos sites sensacionalistas, antes de ser retirado pelos próprios autores. Aquelas sequências de aminoácidos eram afinal banais, e podem ser encontradas em inúmeras proteínas.”
Aquilo que Clara Barata merecia agora, se fosse cientificamente possível, era uma visita fantasmagórica de Luc Montagnier para levar com uns calduços.
Enfim, depois disto, espero que Edgar Caetano, Gonçalo Sampaio, Marta Leite Ferreira, Clara Barata e tantos outros aqui não citados (mesmo merecendo), “tenham noção”, como disse, num também infame contexto, Rodrigo Guedes de Carvalho. Aliás, este, por tudo aquilo que fez e disse, nem perdão merece. Apenas asco.