Ouvi João Miguel Tavares a dizer que achava que o direito à propriedade privada era mais importante do que o direito à habitação. É um pensamento lógico, diria, numa pessoa que se revê em políticas liberais. Embora não goste de excluir direitos, devo reconhecer que, em última análise, não concordo minimamente com essa frase.
Se a decisão for entre uma casa desocupada que pertence a um privado e uma pessoa que dorme ao relento, não há grande debate – pelo menos para mim.
O meu problema em toda esta discussão sobre a habitação passa no que há para fazer, antes de retirar a propriedade privada para a fornecer a alguém que vive debaixo da ponte.
Mas antes de entrar nesse debate, faço aqui um parêntesis para discutir a questão das casas devolutas. Aqui a minha opinião é radicalmente diferente e bem mais penalizadora para a defesa do direito à propriedade privada. Há muito que defendo que o Estado deve expropriar privados que deixam imóveis a cair. Seja qual for a razão: desinteresse, falta de capital, desacordo em partilhas. É indiferente.
A partir do momento em que uma casa, um edifício, um imóvel qualquer, passa décadas desocupado, sem qualquer manutenção – e vai resistindo aos elementos da Natureza até ser apenas uma parede no meio do entulho –, eu defendo que as autarquias assumam a sua posse, o encargo da sua recuperação para aluguer ou venda futura. O agravamento do IMI não é suficiente para evitar os milhares de imóveis em ruínas que vão poluindo visualmente o país.
Ou seja, mesmo admitindo que nenhuma das propostas de habitação anunciadas por António Costa – talvez retirando os Vistos Gold – chegue a qualquer lado, a medida anunciada para as casas devolutas seria altamente prejudicial para o Governo. Não só assumiam os encargos das obras de recuperação como ainda pagariam uma renda aos proprietários. Isso seria uma forma directa de atribuir subsídios e valorizar o património de quem nunca fez nada por ele. Ou seja, seria um benefício directo, pago por todos, a uma parte da população que paga.
O Estado deve, de facto, recuperar os imóveis e metê-los no mercado de aluguer, mas o dinheiro gasto, que é do erário público, deve significar que a propriedade passa para a esfera pública. O contrário seria apenas um negócio de leão para alguns e mais um calote para a maioria.
Voltando ao debate inicial – de ser necessário pedir aos privados com casas habitáveis e desocupadas que as coloquem ao serviço do Estado num regime de arrendamento –, parece-me um péssimo negócio para todos. Desde logo para os privados, que não devem ter grande interesse em negociatas com o Estado, que não é propriamente conhecido por ser bom pagador e muito menos ser ágil a executar. Imagino conflitos com os inquilinos mediados pelo Governo português. Uma pessoa até transpira só de pensar.
Para quem precisa de casa também não vejo grande mais-valia ao ter, na prática, que lidar com dois senhorios, ainda que de forma indirecta.
E para nós, contribuintes em geral, também é uma medida bastante desinteressante, porque o preço do arrendamento, ao valor de mercado, seria na mesma elevado, com o Estado a pagar a diferença. Portanto, mais dinheiro dos contribuintes para pagar a especulação imobiliária.
Mas o pior mesmo desta medida é a sua absoluta inutilidade e mostrar uma extraordinária falta de vergonha. Por que razão vem António Costa pedir casas a quem as comprou, em vez de dar o exemplo e reconverter o parque imobiliário público, devoluto, desocupado ou pouco utilizado, e colocando-o depois no mercado de arrendamento com preços reduzidos? O Estado já é o dono, alguns imóveis nem de obras precisam e assim podia-se controlar os preços sem ter de indemnizar fosse quem fosse. Visto assim, conseguiam-se mais casas com menos dinheiro dos impostos. Tenho a sensação de que em Portugal não gostamos de estradas rectas; precisamos sempre de adicionar umas curvas que ninguém pediu.
Estava a pensar nisto, e lembrei-me que tenho de dar uma volta por Lisboa, no próximo regresso a Portugal, e fazer um levantamento de alguns imóveis públicos sem qualquer utilização. Mas claro, já nada se inventa neste mundo, e poucos dias depois da conferência de António Costa, já corriam pelas redes sociais fotos de imóveis desocupados ou devolutos com o selo do Estado.
Nesta última semana perdi a conta ao número de escolas fechadas, prédios desocupados, antigas repartições públicas, sedes de instituições que deixaram de o ser, casas térreas da GNR, do guarda disto ou do vigia daquilo. E o mais engraçado é que muitos destes prédios localizam-se no centro de Lisboa ou do Porto, onde aparece a maior parte dos pedidos de habitação. São as duas principais cidades do país e as suas cinturas urbanas que sofrem mais com esta temática da habitação, porque, como se compreende, também é ali que se concentra a maior parte da população portuguesa.
Veja-se. Todos os dias surgem mais, todos os dias há alguém que faz mais um levantamento. Em duas semanas, de livre iniciativa e apenas por andar na rua, cidadãos anónimos conseguiram fazer o que o Estado português parece não conseguir. Há tantos, mas tantos imóveis públicos prontos a habitar com duas ou três idas ao IKEA e, eventualmente, pequenas obras, que não se compreende o que foi António Costa sequer fazer à apresentação do programa Habitação Mais.
Se o Governo português quisesse, de facto, resolver o problema da falta de habitação, o primeiro passo teria sido mexer a enorme máquina burocrática e fazer um levantamento das casas que já pertencem ao Estado e que poderiam ser utilizadas. Depois disso, punham as mãos na massa e tratavam de construir fogos de habitação social.
Mas, em vez de simplificar e usar os recursos existentes para resolver o problema das famílias que precisam já de uma casa, agora, o Governo português meteu-se numa embrulhada de burocracia e complicações legais, arriscando, com alguma certeza, nada ter para mostrar daqui a uns meses.
Visto assim parece aquela lógica, usada nos tempos áureos de Santa Comba, de criar uma comissão para garantir que tudo ficava na mesma. Pergunto-me, por isso, se António Costa quer mesmo resolver o problema ou se tenta apenas agitar os braços para que acreditemos que algo está a ser feito.
Quão estúpidos, pensará este homem, outrora hábil, que nós somos?
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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