Agora, todos os meus sonhos são de pessoas mortas.
Jorge Luis Borges
DOCTOR BRODY’S REPORT
Em Portugal, fala-se muito, muito, muito, do aumento da velhice e do desaparecimento da infância. Acrescenta-se que a resolução deste drama[1] é complicada, senão mesmo muitíssimo delicada[2]. E ponto final parágrafo. À falta de soluções, espera-se que os velhos morram e que as crianças comecem a crescer nas árvores. E é verdade, há muitos velhos em Estremoz, como se choraminga que acontece enquanto parte integrante da “desertificação do interior[3].” Só que os velhos não morrem suficientemente depressa, exactamente como as crianças que viriam substituí-los não conseguem sequer ajudar os pais no trabalho[4] nem horas que cheguem nem dias que compensem. Mas então e os senhores não vão mesmo fazer nada? Hey! Está aí alguém?
Há inúmeros factores que complicam a tomada de políticas que equilibrassem a velhice com a infância. Em Economia, em Gestão, em Cálculo, em Direito, desculpem mas é que até em Biologia, a gente aprende que quando um problema é composto por vários problemas diferentes, todos igualmente complexos e todos igualmente concorrentes para resolver a equação, não tem nada que enganar: separam-se os diferentes problemas uns dos outros, e resolvem-se separadamente um por um. Se até eu sei fazer isto, como é que é possível que quem manda em nós não saiba? Sabem o que é que parece? Parece que o desequilíbrio populacional é um problema de tal forma espinhoso que “eles” olham para aquilo e amuam. Enfrentar aquilo? Eu não. Mandem vir outro que trate disto, se é que ainda anda por aí algum.
Antes de mais nada, atendendo à Guerra na Ucrânia[5], não se deseja de todo que os casais recomecem a ter uma dúzia de filhos por cabeça[6]. Nem seria fácil implementar agora nenhum programa social de apoio a famílias numerosas como estas. Trata-se de um País que está tão falido, e onde o dinheiro dos contribuintes já foi tão roubado por quem conseguiu deitar-lhe a mão[7], que o próprio Serviço Nacional de Saúde ainda anda a meter mais água do que uma antiga Grande Nau da Carreira das Índias, que, por via da ganância, foi completamente sobrecarregada de bens, e destituída de qualquer manutenção, quando voltava de Goa para Lisboa[8]. Mas, tal como à época ninguém ligou nem um bocadinho a nenhuma Ordem da Coroa[9] para limites de peso e de passageiros, ou para obrigatoriedades de manutenção, também no século XXI não se ouve ninguém anunciar que encontrou uma solução razoável e exequível para mais esta História Trágico-Marítima[10].
E temos também o pesadelo do Ensino, claro está. Considerando que os professores já andam a ter que dar aulas a mais de vinte alunos[11] com a escassa miudagem de que o País dispõe[12], quantos meninos teria cada turma se a natalidade aumentasse? Trinta e sete? Quarenta e dois[13]? Para não falar dos pais desses meninos, que já estiveram de tal forma à beira do desemprego por ficarem vezes demais em casa a cuidar dos filhos durante a greve dos professores[14], que mais filhos é que não quererão ter de certeza – e falar disso muito menos, porque não, de forma nenhuma, não se fala de um trauma como se fala de um frigorífico avariado[15].
E assim passam os dias, na doce inanição do aprés moi le déluge[16] como se nada fosse. Até ao momento em que paramos mesmo, porque desta vez os sinos dobraram por alguém da nossa afeição.
A minha casa em Estremoz é como Jerusalém nos antigos mapa-roda que nos restam, de entre todos os que foram desenhados durante a Alta Idade Média[17]: fica exactamente no centro preciso de tudo. Não se trata aqui de qualquer espécie de sentido figurado: o Passeio de Santiago[18] marca a organização do crescimento da cidade para fora de portas, de tal forma que, da janela do meu quarto, tenho o privilégio de poder olhar de vez em quando para o Torreão-Mór[19] das primeiras muralhas, todo iluminado entre as estrelas, enquanto estou a ler na cama durante a noite. Desta posição central resulta o facto, que para mim é encantador, de poder ir contando o passar das horas pelos sinos sucessivos das três grandes igrejas: primeiro a de São Francisco, depois a de Santo André, e, finalmente, lá muito ao fundo, a de Santa Maria. Habituei-me a ouvir os sinos de São Francisco tocarem no fim-de-semana a assinalar as várias missas, e a celebrar com eles os Dias Santos.
É mesmo verdade: as minhas noites sabiam a bençãos, tudo era verdadeiramente encantador, até eu notar que… e não era fantasia minha, porque comecei a estudar o fenómeno com muita atenção… e aquele tipo de repicar de sinos só há mesmo na Igreja de São Francisco… até notar que, Santo Deus, que sufoco. Se os sinos de São Francisco não dobravam a finados dia sim-dia não, no mínimo andavam lá perto.
E claro que era verdade, quando comecei a perguntar toda a gente me disse que claro que era verdade: os sinos estão sempre a dobrar a finados porque estão sempre a morrer pessoas. “Mas a pessoa morreu de quê?” – “Então, coitada, foi da idade.” E, de repente, é como a tripulação descobrir que o leme da Grande Nau está podre à primeira tempestade que se aproxima, ou que todos os canhões ficaram em Goa para desimpedir espaço no convés ao primeiro aviso de piratas ou de holandeses na distância. O tocar dos sinos passa logo a ter outro peso, e o seu dobre a finados começa a doer-nos também a nós, assim que participamos do funeral da pessoa que, também ela, morreu da idade. “Mas ainda a semana passada estava tão bem disposta…” – “Então, coitada, antes assim, seja como fôr a gente tem que ir, nem que mais não seja para dar lugar aos novos.”
Pois com certeza, mas cadê os novos – e cadê o seu direito à felicidade?
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Eu é que digo “drama”, porque não há outra palavra que realmente defina o que tem vindo a acontecer nas últimas décadas. Claro que nenhum político, ou comentador, ou alguma pessoa ilustre chamada a participar num debate, ou até algum humorista politicamente incorrecto, se dá ao trabalho de dizer “drama”. Em, boa companhia, o envelhecimento nacional é aquilo a que se chama “um problema”. E, escusado será dizer, ninguém promete que vai lutar contra ele em nenhuma campanha eleitoral.
[2] Por acaso, e pensando bem depois de ter escrito “muitíssimo delicada”, ocorreu-me que é possível que eu seja a única pessoa que diz isto — e que, de estar sempre a ouvir a minha própria voz a dizê-lo aos outros, já imagine que ouvi muita gente a dizer “delicada”. Wishful thinking. A expressão existe porque todos os dias faz sentido.
[3] “Eles” dizem isto com especial prazer. Estão aqui estão a escrever umas éclogas sobre o assunto.
[4] Que se lixe ir à escola. Descarregam-se os sacos todos primeiro, a seguir há que caiar estes muros todos, alguém tem que ir depressa apanhar as batatas, e depois logo se vê.
[5] Como é evidente, quando deixar de haver guerra na Ucrânia, a culpa continuará a ser da Guerra na Ucrânia.
[6] Marido e mulher formam uma unidade, supostamente indivisível salvo prova do contrário. Infelizmente, o que há mais por aí, na nossa sociedade, são provas do contrário. O que, por seu turno, cria ainda mais um outro problema (palavra que neste caso é utilizada correctamente) no apoio às famílias numerosas.
[7] Uma vez mais: não só assumo total responsabilidade pelo que acabo de escrever, como até esclareço que atenuei para “deitar-lhe a mão” o predicado que realmente me apetecia oferecer a esta frase, que era “apropincuar-se com”. Mas, ao menos aqui, e pelo menos em privado, ouço imensa gente dizer o mesmo que eu. É sempre reconfortante, isto de não estarmos sós.
[8] Ou “tenta voltar”, que foi mais o caso. Perderam-se milhares de naus nesta loucura. À primeira tempestade, descobria-se que a Nau já não tinha nem bombas para drenagem da água, deixadas em Goa, como tudo o resto, para carregar ainda mais brocados, mais especiarias, e mais drogas. O provérbio “Se queres rezar vai para o mar” aparece no século XVI, e claro que não aparece por acaso.
[9] Houve várias. A Coroa perdia fortunas indescritíveis em cada naufrágio. E os monarcas não são necessariamente parvos.
[10] Leram as TRÁGICO-MARÍTIMAS, porventura? É que eu li. Com muita atenção. São só três histórias, de três naufrágios diferentes. Mas percebe-se logo, até pelos comentários indignados dos cronistas da época, porque é que os naufrágios no trecho Goa-Lisboa foram tão frequentes, e tão estupidamente evitáveis, na História supostamente gloriosa da Carreira das Índias.
[11] Ou seja, anda a pedir-se-lhes que todos os dias descubram a quadratura do círculo, e o aproveitamento dos alunos ressente-se de missões impossíveis.
[12] E o País Real anda a ter imenso cuidado com a redução da miudagem. Se quiserem digam que a culpa é da Guerra da Ucrânia, quero lá saber – a verdade é que o pessoal está teso. Mesmo numa cidade tão calma e aprazível como esta, os meus alunos das explicações são frequentemente filhos únicos E eu acabo por fazer imenso pro bono, porque ninguém tem dinheiro, pronto.
[13] Ou seja, aqui já não se trata de mais quadraturas do círculo ou de mais missões impossíveis: trata-se, pura e simplesmente, de atirar a toalha e desistir de todo o alfabetismo nacional. Todo. Em benefício dos pais, a Escola passa a funcionar enquanto cantina e ATL, e acabou-se a conversa. Mas acabou-se mesmo, ouviram? Epá, mas então calem-se. Calem-se, meu.
[14] Se é que não foram mesmo para o desemprego. Ou, no mínimo, nas entrevistas de emprego tiveram que enfrentar o fatídico “então e deseja ter filhos?” com ainda mais cuidado.
[15] Pelo menos “não se fala de um trauma assim de um dia para o outro”, ou “não se fala de um trauma sem ser em terapia.” Um trauma é um caso sério. Demora tempo a instalar-se. E, uma vez instalado, consegue esconder-se tão bem que só alguns dos melhores profissionais da coisa é que conseguem puxá-lo cá para fora à força. Mas olhem bem para “eles”: alguém parece honestamente preocupado com a saúde mental dos portugueses?
[16] Sou culta, sou. “Depois de mim que venha o Dilúvio” era o que dizia desdenhosamente o Rei de França Louis XV quando os seus conselheiros aludiam aos gastos disparatados na Nobreza perante a fome crescente do Povo.
[17] São cerca de seiscentos mapas, sobreviventes em diversos países europeus, portanto sabemos que o conceito de Jerusalém marcar o centro preciso da circunferência representativa da Terra não foi uma fantasia: foi mesmo a primeira semelhança do mundo que organizou a inteligência medieval. A culpa deste mal-entendido terá sido de Santo Agostinho, que terá escrito, não sabemos onde, que “a virtude de todas as coisas está no centro.”
[18] Nome inventado a bem da privacidade, ou queriam mais o quê? O número da porta e o andar?
[19] Idem.