Sou um grande fã da forma como os franceses aplicam a democracia. Se lhes mexem nos direitos, vão para a rua partir tudo. Podem não ser grande coisa quando se metem em guerras para estragar o que é dos outros mas, nas ruas de Paris, ninguém parte material como eles.
Se me perguntarem, acho que estão a prestar um favor à sociedade e, de certa forma, a dar uma lição de cidadania. Depois de Sarkozy ter passado a idade da reforma de 60 para 62, o bom do Emanuel quer repetir a graça até aos 64.
Um sindicalista de origem portuguesa, radicado em terras de França, como a nossa Linda de Suza, dizia aos microfones da RTP que a lei que o governo francês tentava aprovar era um roubo declarado à classe trabalhadora. Segundo ele, bastaria aumentar os impostos em 1% às 60 maiores fortunas francesas para cobrir o rombo no fundo de pensões.
Não tenho dados para confirmar a conta, mas não é muito difícil de acreditar, uma vez que o princípio é quase sempre o mesmo. Trabalhadores de base, como nós, têm que trabalhar cada vez mais anos para garantir reformas não particularmente altas.
Trabalhadores de elite, por exemplo como Manuel Pinho, podem passar décadas a receber uns milhares livres de impostos, vindos de uma offshore qualquer e, quando chegam à idade da reforma, têm um valor acumulado de tal ordem que ninguém lhes diz até que idade precisam de trabalhar.
Para os restantes, não funciona bem assim. Somos esmagados com cada vez mais impostos ou, como se diz por aqui na Suécia, “ninguém enriquece a trabalhar”. Depois de uma vida a cumprir um contrato social de descontos, esperando que no fim da caminhada nos seja devolvida uma percentagem do salário em forma de pensão, as regras são alteradas. O tempo de trabalho aumenta porque, é esta a justificação recorrente, a população está a envelhecer.
Pergunto: a culpa disso é de quem trabalha? Os jovens que não conseguem sair de casa dos pais por causa dos salários miseráveis, são culpados de não terem mais umas centenas de euros para pagarem uma creche?
Bem sei que é nas ruas de Paris que o fogo arde agora mas, quando aqui há uns anos a função pública viu a idade da reforma passar para os 67 anos, o argumento foi exactamente o mesmo. Reparem, eu não digo que não seja factual. Percebo a matemática da coisa.
Mas, se em vez de andarem sempre a aumentar os anos de trabalho para resolver o problema do excesso de velhos, começassem antes a apostar em políticas de incentivo à natalidade, não seria mais eficaz?
A conversa liberal neste tema irrita-me profundamente, com o estafado argumento do mérito para não se ir buscar mais impostos aos milionários. Há sempre um esperto que aparece com aquela conversa que ninguém sabe se existiu entre o Otelo e o Olof Palme, a propósito de acabar com os ricos versus acabar com os pobres.
Nada me move contra um milionário mas não entendo a vergonha ou a defesa da carga fiscal ao mesmo. Qual é o problema de taxar mais as grandes fortunas? Por acaso algum milionário criou fortuna sem o trabalho dos outros? Qual é o problema de devolver uma parte em obrigações sociais?
Quem defende que não se toque nas grandes fortunas são aqueles que, por norma, andam lá perto e beneficiam com os esquemas. São os mesmos que defendem paraísos fiscais, gestão privada com investimento público ou aquela frase que me leva às lágrimas: “empresas é que criam riqueza e postos de trabalho”.
Ao fim de 22 anos de trabalho, nunca vi um prédio vazio a criar seja o que for. É isso uma empresa. Um prédio vazio. Já quando o enchem de pessoas, de facto, aquilo começa a criar qualquer coisa.
Toda a lógica deste sistema de elites é perfeitamente absurda e altamente penalizadora para a esmagadora maioria da população. Senão, vejamos.
Os trabalhadores são afogados em impostos e obrigados a pagar os excessos das elites. Seja na forma de resgate à banca, depois destes jogarem no casino com os depósitos, seja, por exemplo, nos lucros da Amazon, depois dos governos nos obrigarem a estar dois anos em casa e a encomendar vidas online.
O mesmo sistema que permite isto, compete entre si, de país para país, para que as empresas paguem os mínimos impostos possíveis (Irlanda e Holanda na Europa, por exemplo, onde estão as empresas do PSI20).
Há sempre uma forma de aumentar os lucros através de engenharias fiscais, passando por paraísos totalmente legais que, no fim, vão aumentar os dividendos de donos e accionistas. Lá está, pessoas que criam fortunas com base em especulação e trabalho de terceiros.
No meio disto tudo, temos a maioria silenciosa a trabalhar para garantir os lucros e a receber uma ínfima parte do que gera. Ainda levam com as culpas de terem poucos filhos e contribuírem para o envelhecimento da população.
Para a dor ser ainda maior, temos que ouvir alguns idiotas úteis a defenderem, em horário nobre, que empresas servem para dar lucro e como tal, há que não atrapalhar a vida dos ricos.
Parece não haver grande consciência sobre a enorme distância social entre um trabalhador de base e um CEO, um accionista (daqueles com fatias que se vejam) ou um dono de uma empresa.
Lembro-me sempre de uma empresa pequena com a qual lidei, ali da região de Setúbal, com apenas 80 funcionários onde os trabalhadores da linha de montagem (a maioria) recebia pouco mais do que o salário mínimo (menos de 500 euros na altura) e o CEO cerca de 10 vezes mais. Isto numa micro-escala. Nas multinacionais detidas por milionários esta diferença é quase incalculável.
Qual é o problema de puxar esta minoria, com lucros absolutamente pornográficos criados nos braços dos outros, para a realidade do quotidiano e taxar, de forma mais justa, as grandes fortunas? Fogem para paraísos fiscais? Por que permitem os governos, sequer, a existência de paraísos fiscais?
Não se trata de ideologia mas sim de pura justiça social na distribuição da riqueza acumulada. Ela não caiu do céu e muito menos foi obra de um indivíduo. Que tabu é este e que medo têm os governantes desta minoria que controla a riqueza do planeta?
É mais fácil meter polícias pobres, cuja idade de reforma também aumentará, a bater em trabalhadores que lutam pelos seus direitos do que ir atrás de quem acumula o capital?
Não perceberá a polícia de choque, nas ruas de Paris, que está no lado errado da barricada?
E já agora, percebemos nós, portugueses calmos e passivos (a não ser que o golo tenha sido em fora-de-jogo), que os franceses estão a fazer o que toda e qualquer população devia fazer de cada vez que nos chamam para pagar os dislates das elites?
Nós somos a maioria. Deveríamos ser nós a ditar as regras.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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