Laura Sanches, psicóloga

‘Não quero que os meus filhos vivam num mundo onde é possível excluir pessoas de sítios só por tomarem opções diferentes’

por Elisabete Tavares // Abril 11, 2023


Categoria: Entrevista P1

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A psicóloga Laura Sanches foi, durante a pandemia, uma das vozes mais activas em defesa das crianças e de medidas baseadas na evidência. Esteve contra restrições prejudiciais para as crianças, como o encerramento de escolas e a imposição do uso de máscaras. A Ciência deu-lhe razão, mas continua, ainda hoje, a enfrentar dois processos na Ordem dos Psicólogos, devido a duas denúncias, uma das quais que a acusa de afirmações que nem fez. Apesar disso, a Ordem abriu-lhe um processo na mesma. O seu activismo não espanta: é filha da magistrada Maria José Morgado, rosto do combate ao crime e à corrupção em Portugal, e do fiscalista Saldanha Sanches, falecido em 2010. Nesta entrevista intimista ao PÁGINA UM, também realizada a pretexto do livro que publicou recentemente, Como educar crianças desafiantes, Laura Sanches fala dos muitos desafios que as mães e os pais enfrentam, nos dias de hoje, e ainda aborda a sua decisão de adoptar um estilo de vida mais equilibrado e saudável, que lhe permite acompanhar de perto os filhos.


Existe a máxima de que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Pareces ser alguém que segue mesmo essa máxima. É mesmo assim?

Sim, eu acho que tento fazer aquilo que prego, como se costuma dizer. E sim, tento tomar todas as opções que, no fundo, acho que me trazem mais qualidade de vida e que poderiam contribuir também para a qualidade de vida dos outros.

Trabalhas na cidade, mas tens um estilo de vida que procura ser mais equilibrado e sustentável, não é?

Sim, as escolhas que fiz… Aliás, eu venho a pé para o trabalho, porque consigo, tenho esse privilégio. Também tive algumas vantagens que me permitiram construir isso, obviamente. Mas todas as opções que fiz também foram em função de conseguir manter isso. Sempre tive consciência que não queria trabalhar por conta de outrem, porque uma das coisas que era importante para mim era estar com os meus filhos em casa. E consegui realmente ficar com o primeiro até aos três anos e com o segundo até aos quatro. Porque tenho essa vantagem, também porque o meu marido consegue articular os horários dele com os meus e, portanto, ou ficava um ou o outro; fomos sempre conseguindo organizar-nos nesse sentido. E isso realmente é uma coisa que eu sempre tive muita consciência, que queria fazer, e felizmente tive essa possibilidade.

E isso interferiu com objectivos profissionais e de carreira?

Sim, atrasou umas coisas [risos]. Mas isso faz parte, não é? Eu, por exemplo, tive duas gravidezes muito difíceis, com enjoos, portanto, foram alturas em que eu fiquei quase completamente parada. Com o meu primeiro filho, consegui estar mais de um ano sem trabalhar mesmo, sem fazer absolutamente nada. Nada, quer dizer, cuidava dele, que já é muito [risos].

Ou seja, na altura não tinhas rendimento.

Sim, tive essa possibilidade. Obviamente, isso depois tem algumas consequências económicas, e não só. Mesmo escrever, por exemplo, eu gostava de escrever muito mais, e às vezes era impossível, o tempo não chega para tudo. Mas eu acho que são opções que, no fim da vida, são as correctas para mim, pelo menos [risos].

E tu, como mãe, estás satisfeita por teres tomado essa decisão. Como profissional e psicóloga, tu vês que, de facto, foi uma boa opção, e sentes que mais mulheres gostariam de ter essa possibilidade?

Sim, sim. A mim, chegam-me muitas mães que conseguiram fazer essa opção – por vezes, lá está, com grandes custos financeiros e até emocionais, porque, apesar de tudo eu tive muita sorte em conseguir articular tudo com o meu marido e, portanto, nunca fiquei completamente isolada. E aquilo que eu vejo é que há muitas mulheres que realmente fazem essa escolha, e que têm de optar entre a carreira e o ficar com os filhos, mas há um lado da vida delas que fica para trás. Eu nunca precisei de fazer isso, porque voltei a trabalhar quando quis. Enquanto eles eram pequeninos, ia trabalhando menos, mas ia trabalhando. Mas há pessoas que têm de desistir completamente, e isso é um peso muito grande. A forma como organizamos a vida, hoje em dia, põe sobretudo em cima das mulheres a escolha entre os filhos e o trabalho. Na maior parte dos casos, não dá para conciliar as duas coisas, e há mulheres que sofrem muito com isso.

E isso depois vê-se na forma como vivem a maternidade e no relacionamento que têm com os filhos?

Claro, porque a certa altura, há mães que ficam completamente esgotadas, cansadas, deprimidas, por só estarem a cuidar dos filhos. Naturalmente, estão menos disponíveis. Antigamente, as coisas eram feitas com muito mais harmonia, num certo ponto de vista. Em alguns aspectos eram muito mais difíceis, mas noutros aspectos, apesar de tudo, havia uma comunidade que suportava as crianças. As mães iam voltando aos seus afazeres com muito mais naturalidade, à medida que os filhos também iam procurando mais essa presença e apoio da comunidade. Essa comunidade perdeu-se. Temos mulheres que ficam isoladas no seu apartamento o dia inteiro, com o marido que chega a casa às 20 horas, com quem às vezes já nem conseguem comunicar, porque estão ali submersas naquele mundo solitário que, hoje, é a maternidade. Estão tão desesperadas quando o marido chega. Por vezes isso também põe um peso tremendo no casal. E, claro, depois as crianças também sofrem, porque têm uma mãe muito mais cansada e menos disponível, esgotada.

E nas empresas, sentes que tem havido uma mudança? Porque houve uma época em que as empresas tinham creches para os filhos dos trabalhadores, mas parece ter havido um retrocesso. Vês algumas mudanças que possam permitir que mulheres que trabalhem a tempo inteiro, tenham uma forma de estar mais com os filhos?

Sim e não. Na verdade, eu contacto com uma população muito privilegiada. As mães que me chegam tiveram, apesar de tudo, possibilidade financeira de optar por ficar com os filhos e, portanto, enfim, são uma fatia privilegiada da população. Eu vejo realmente cada vez mais mães a tirarem uma licença sem vencimento de dois anos, que é aquilo que é permitido, para poderem estar esse tempo com os filhos. Às vezes, isso tem consequências no regresso ao trabalho. Nem todas as empresas encaram essa opção de ânimo leve. Mas quero acreditar que sim, que apesar de tudo, está a haver alguma mudança. Já vou tendo cada vez mais mães que conseguem ir mantendo aquele horário reduzido, porque antigamente conhecia muitos casos de mulheres que sofriam grandes pressões por quererem trabalhar apenas seis horas diárias, enquanto os filhos eram bebés. Agora, até já conheço casos de mães com crianças que já têm mais de um ou dois anos – porque enquanto a mãe está a amamentar a lei permite essa redução de horário – e, de facto, há empresas onde isso já vai sendo aceite, embora muitas vezes aquilo que as mães me transmitem é que nessas seis horas têm de fazer o mesmo trabalho que fazem nas oito! Não sabem muito bem como [risos], mas enfim, têm de espremer ali tudo, porque a responsabilidade não lhes é tirada, não é? É esperado o mesmo delas. Mas, pelo menos, isso já vai sendo permitido. Se calhar, há uns dez anos atrás, nem isso era. Por isso, eu acho que há um progresso, mas ainda pouco para aquilo que era preciso.

A pandemia introduziu medidas, como o teletrabalho, que, apesar de tudo, ajudam os pais e mães que queiram acompanhar mais de perto os filhos. Vês essa mudança como positiva?

Sim e não, depende muito dos casos. Ou seja, em alguns casos, por exemplo pessoas que tenham que fazer uma deslocação grande até ao local de trabalho, é positivo, pois ganham ali às vezes até duas horas por dia. Com o tempo que as pessoas perdiam, isso sim, é excelente, claro que sim. E até há casos em que lhes dá mais margem de manobra nos horários, porque não têm de estar na empresa a uma determinada hora, e isso é uma vantagem. Por outro lado, também se cria a ilusão de que, por exemplo, se a pessoa está em teletrabalho e o filho está doente, não tem desculpa para não trabalhar, porque estão ambos em casa. E, realmente, cuidar de crianças pequenas e trabalhar… E depois o que acontece é que as mães fazem esse trabalho à noite, quando as crianças estão a dormir, com grande peso para a sua saúde mental e física.

Para as crianças, tu vês uma diferença significativa quando têm a possibilidade de ter um dos progenitores a acompanhá-los durante os primeiros anos, em casa, em comparação com as outras, que têm de passar às vezes 10 horas numa creche ou numa escola?

Sim. Mas também depende das escolas. É muito importante para as crianças conseguirem ter essa presença dos pais sobretudo nos primeiros tempos de vida. Nós temos, enfim, problemas que, se calhar, não precisariam de existir se os pais tivessem maior disponibilidade para estar com os filhos. Em Portugal temos um grave problema: somos o país da Europa onde as crianças passam mais tempo na creche. Há crianças de um ano a passarem 10 horas na creche, e isso não é bom.

Que tipo de vínculo as crianças podem criar com os pais quando passam 10 horas num local em que eles não estão?

Há um autor que eu cito sempre, que é o Gordon Neufeld, e que tem um conceito que é muito relevante para esses casos: o conceito da orientação para os pares. O que ele diz basicamente é que as crianças nascem com esta grande necessidade de construir vínculos, de criar relações. E, à partida, essas relações devem criar-se com um adulto, mas para isso o adulto tem de estar presente e disponível. Algo que nas escolas nem sempre é possível, porque com crianças pequenas, se há muitas crianças para um adulto, é impossível o adulto responder a todas as solicitações. E aí quem acaba por estar mais disponível são as outras crianças. E então gera-se aquilo que se chama a orientação para os pares, que significa que passam a ser os outros jovens – isto vê-se muito na adolescência – a grande referência daquele jovem ou daquela criança. E isto vem com uma série de problemas, porque para já, um jovem não é um bom modelo para outro jovem, não é? Hoje em dia nós até vemos que os ídolos da juventude são outros adolescentes. E isto não é um bom modelo de desenvolvimento, porque um adolescente também ainda é imaturo, naturalmente. É suposto que os jovens admirem os adultos, para quererem ser como eles, de certo modo. Se eles vão admirar outros que são tão imaturos como eles, não se ganha muito em termos de desenvolvimento. E depois, por outro lado, os jovens e as crianças nunca podem ser uma boa base de segurança para outras crianças. As crianças até dizem muito: já não és meu amigo, já não gosto de ti, já não vou brincar contigo. O que é que isto faz? Vai provocando algumas feridas, e se aquela criança é a pessoa mais importante da minha vida, vou ter de começar a adoptar uma série de comportamentos defensivos para que aquilo não me magoe tanto. E depois, ao mesmo tempo, isto também faz com que se crie uma distância entre o jovem ou a criança e o adulto, sendo que são os adultos que têm capacidade para ajudar a criança ou o jovem a lidar com as suas emoções, enfim, a sentir-se minimamente seguro. E depois dá origem àquele comportamento, que hoje se ouve muito, de que os jovens já não respeitam os adultos. Nas escolas, um dos grandes problemas é que já ninguém respeita os professores. E é verdade, porque quando o adulto deixa de ser uma referência, eu já não quero agradar ao adulto, quero é agradar aos meus colegas. Quero lá saber do que o professor pensa! E aí gera-se toda uma série de comportamentos… Até aqueles vídeos que eles põem no Youtube, que nós não percebemos. Mas por que raio alguém quer filmar uma coisa destas e pôr no Youtube? Porque agrada aos outros jovens, eles já não estão a tentar agradar aos adultos, não é? A referência deles já não são os adultos, são outros jovens. E isso dá origem a uma série de comportamentos que são prejudiciais.

Ou seja, passou-se do 8 para o 80. Na minha geração, por vezes temíamos os adultos. Era um querer agradar para não ser castigado. E hoje nem se teme, nem se respeita.

Exactamente. Este autor até diz que começou mais ou menos nos anos 60 ou 70 do século passado, este fenómeno de orientação para os pares assim em peso, e agora temos, pela primeira vez, uma geração em que a maioria está completamente orientada para os pares. Antigamente, havia esse problema, por vezes com peso excessivo, da autoridade. Mas, apesar de tudo, isso também tinha alguns benefícios e algumas vantagens. De facto, passámos para o outro extremo, e isso não é bom.

Em termos civilizacionais, estamos a caminhar para uma sociedade mais ou menos orientada para a família? Como é que vês a evolução, sentes-te optimista?

Eu sou optimista sempre. Às vezes digo que sou uma optimista incorrigível [risos]. Tenho esperança que as coisas melhorem, e que a sociedade se torne mais orientada para a família, porque estamos a começar a perceber os problemas de não o sermos. Neste momento, não somos. Somos uma sociedade orientada para os pares; até nós, adultos, já crescemos muitos de nós nessa cultura de orientação para os pares. Hoje, temos adultos que preferem passar tempo com os seus pares do que estar em família e a educar os filhos. A realidade é esta, neste momento. E isso, de facto, não é positivo.

Então, de onde é que vem o teu optimismo?

Porque, pela primeira vez, também estamos a reconhecer esse problema. Ou seja, foi preciso reconhecer que descarrilámos em algumas coisas; noutras coisas também ganhámos, obviamente. Antes, as mulheres não tinham opção de escolher uma carreira sequer; agora sim, e isso é uma coisa positiva. Não quero que as mães voltem todas para casa outra vez sem opção. Mas, de qualquer forma, acho que estamos a começar a perceber também muitas das coisas que se perderam; e a ter essa capacidade de perceber que nos desviámos e descarrilámos em algumas coisas. E, portanto, se calhar há algumas coisas que precisam de ser recuperadas, e há outras que não, que ficaram para trás e que não fazem falta nenhuma.

Mas se calhar também caminhamos para isso porque muitas pessoas, sobretudo nos últimos anos, se despediram, simplesmente porque perceberam que querem ter outro estilo de vida. Vês que em Portugal há esse movimento ou sentes que é do lado das empresas que há mudanças?

Tenho mais consciência do que se passa com as pessoas do que propriamente com as empresas. Mas, de facto, aquilo que eu vejo é as pessoas muito insatisfeitas com este modelo clássico de trabalhar, ganhar dinheiro… As pessoas já procuram mais, querem outras coisas. Estão mais insatisfeitas nesse papel, e julgo que isso também vai originar alguma mudança, as empresas terão de se adaptar. Agora, eu acho que aqui em Portugal há um problema grave: as pessoas têm poucos meios financeiros para fazer mudanças reais na sua vida. A nossa margem de manobra é muito curta em relação a outros países, onde existem mais apoios. Aqui, apesar de tudo, a maior parte das pessoas ainda está a tentar pôr comida na mesa no fim do mês. Portanto, isto também limita a capacidade de pensarmos um bocadinho mais além.

Há pouco referiste a importância de jovens e crianças terem modelos nos adultos. Acontece que temos também adultos muito doentes em termos psicológicos e emocionais. Como vês essa situação? Temos adultos disponíveis para serem modelos e exemplos para os mais jovens?

Se calhar também não temos muitos, não é? Se calhar, porque muitos de nós já crescemos nessa sociedade de orientação para os pares. Aliás, isso viu-se nesta história toda da covid-19. As crianças não foram protegidas, foram atiradas para a linha da frente. A realidade é essa. As crianças tinham de ficar quietinhas para não matarem os avós.

E com máscara.

Exactamente. Não houve preocupação com o impacto que isto ia ter em seres que são mais frágeis, porque estão em desenvolvimento, e não lidam com as coisas da mesma maneira que um adulto. Um adulto até pode cumprir determinadas medidas, sem isso ter um grande peso na sua vida, mas numa criança a mesma medida pode ter um peso brutal. Não houve essa capacidade de dizer: ok, vamos criar algumas medidas para os adultos, se for necessário, e vamos proteger as crianças. Não, o que se disse foi que as crianças tinham de salvar os avós. E a questão até mais chocante de todas se calhar até é a das vacinas, na forma como as crianças foram vacinadas. Em Portugal, felizmente, que eu saiba, a maior parte [menores de 12 anos] não foi, mas a ideia era que as crianças deviam ser vacinadas para uma coisa que não as punha em risco, só para protegerem os adultos. Depois, soube-se que não protegiam nada; mas, enfim, era isso que constava. Portanto, isto é revelador de uma sociedade que não está bem; que está já a deixar de estar em contacto com os seus valores, porque é fruto de uma sociedade orientada para os pares. Uma sociedade que está bem, e em contacto com os seus valores, sabe que precisa de proteger as crianças antes de qualquer outra coisa. As crianças deveriam ser prioritárias. Em todas as medidas, o seu bem-estar devia ser o primeiro a ter-se em conta, e isso não aconteceu.

Houve então uma inversão de valores? Porque numa sociedade saudável, não deviam ser as crianças a proteger os adultos, mas sim o contrário…

Exactamente, porque desde o início que se sabia que as crianças seriam muito pouco afectadas pelo vírus em si; havia era o debate sobre se as crianças podiam transmitir aos adultos, e muita gente que dizia que não, que as crianças nem sequer eram grandes transmissoras. Mas, no entanto, havia toda esta ideia de que se as escolas estivessem abertas, e se as crianças vivessem livremente, trariam o vírus para casa e depois os mais velhos seriam afectados. E, de facto, isso é sinal de uma sociedade que não está muito saudável. A partir do momento em que nós sabemos que há coisas que fazem falta na vida das crianças, que lhes podem deixar marcas…

Aliás, saíram agora notícias que apontam que pessoas morreram devido aos confinamentos, e que, no caso das crianças e jovens, há uma epidemia de saúde mental, para além de tudo o que perderam, em termos sociais e de aulas.

Sim. Eu ainda ouço constantemente pessoas que vêm à consulta das crianças, que têm este ou aquele problema e depois dizem:”Ah, ela também nasceu no meio da pandemia…”. Pois, claro, houve crianças que passaram os dois primeiros anos das suas vidas completamente isoladas.

Não é algo que te revolta? Porque, de facto, as crianças na Suécia tiveram a benção de estar na Suécia, e de não ter sofrido o que as portuguesas sofreram.

Eu acho que nos países nórdicos, em geral, e também na Noruega, há uma outra capacidade de proteger as crianças. São países que até têm já licenças de maternidade um bocadinho mais prolongadas.

Ou seja, já têm uma cultura voltada para a proteção da família e das crianças…

Eu acredito que sim; há um bocadinho mais essa valorização.

Aqui não se valorizam as crianças e os jovens?

Neste caso, eu sinto que não se valorizaram muito, de facto. A partir do momento em que nós temos este problema de ter crianças pequeninas que passam 10 horas ou mais por dia na creche, realmente temos de dizer que não há uma grande valorização da infância. Nos países nórdicos, os pais saem mais cedo do trabalho, vão buscar as crianças à escola. Nós aqui, o normal é vermos os pais a irem buscar as crianças às 19 horas. Isto não é saudável, não é bom para ninguém.

Como jornalista, no início da pandemia, até 2021, senti resistências em poder trabalhar em regime de teletrabalho, quando tinha os filhos muito pequenos, apesar de, muitas vezes, as minhas funções e a tecnologia o possibilitarem. Encontrei uma atitude compreensiva e flexível da parte de alguns editores e directores em relação a poder trabalhar em casa quando os filhos estavam doentes. Era muito difícil conciliar o trabalho a tempo inteiro na redacção com as rotinas da vida familiar. E houve resistência de alguns pares, o que me surpreendeu. Reclamavam se, por exemplo, alguém trabalhava em casa porque um filho estava doente.

É uma coisa que eu ouço muito, de mães que, por exemplo, têm horário reduzido, e que lidam, por vezes, com a pressão dos colegas, porque saem mais cedo e eles ficam lá. Há pessoas que levam isso a mal e ficam chateadas.

Também é um pouco desta cultura, em que a mulher quase é penalizada se está a cuidar de filhos ou se quer ter uma vida familiar.

Da mulher ou do homem. Porque os homens também podiam sair mais cedo e não o fazem porque, de facto, há muito essa pressão. Colocamos muito o trabalho como um valor máximo. Uma pessoa boa é uma pessoa trabalhadora, é uma pessoa que se esforça e que está ali todos os dias… E, realmente, será que isso é o principal?

Ou seja, alguém que gosta de estar com os filhos e que se quer dedicar aos filhos e levá-los ao médico, em vez de ser o avô ou a empregada a levá-los. Essa pessoa é mal vista.

Sim, em Portugal temos muito essa noção. Eu lembro-me até de um estudo, há uns anos, que dizia que em Portugal o part-time é uma coisa muito mal vista. Também com os nossos ordenados, é difícil viver com meio ordenado. Mas a verdade é que, mesmo na mentalidade das pessoas, quem quer trabalhar em part-time é porque é preguiçoso. As próprias empresas não querem contratar ninguém em part-time, porque acham que isso é contratar preguiçosos. Enquanto lá fora, é uma das realidades: quem tem filhos pequenos, às vezes escolhe trabalhar em part-time, justamente para poder acompanhar mais os filhos. E nós cá, nas empresas, nem pensar.

Sim, e apesar da lei prever algumas medidas, há mulheres ou homens que recorrem à lei mas são penalizados nas empresas, e passam a ser tratados como maus trabalhadores. Isso não é justo…

De todo. Nós precisamos de perceber que, para já, quem está em casa a cuidar dos filhos não está de certeza de férias, não é preguiçoso [risos]. Dá trabalho cuidar de uma criança. E sim, precisamos de mudar essa mentalidade.

Como se caminha para mudar estes valores de glorificação do trabalho e de sacrifício 24 horas por dia?

Isso é uma coisa muito portuguesa, aquela ideia de que é preciso estar no escritório das 8 horas da manhã até às 20 horas.

E até pode não se estar a trabalhar…

Exactamente. Por vezes, as pessoas estão lá e não estão a fazer grande coisa. Já tive pessoas que se queixam que estão constantemente a ser interrompidas, porque temos esta cultura de perguntar tudo e marcar reuniões para tudo, e as pessoas sentem que constantemente há interrupções de tudo e mais alguma coisa. Isso é uma coisa muito cultural. Se formos mais para o norte da Europa, já não existe tanto esse problema. As pessoas vão para trabalhar, não vão para conversar ou para conviver, e só estão lá as horas que são necessárias. Aqui, achamos que é preciso dormir no trabalho, quase.

E o optimismo de que falavas há pouco, também é por veres que as novas gerações de pais já têm outra atitude?

Sim, eu acredito que sim. Nunca estivemos tão preocupados com a infância, e com a nossa responsabilidade como pais como hoje em dia. Isso eu acho inquestionável. Agora, até há imensos livros sobre como educar crianças. Por um lado, porque as pessoas também estão muito aflitas, mas também porque, apesar de tudo, têm consciência da sua responsabilidade e do seu papel. Isso, à partida, será bom. Agora, é preciso também que aconteça alguma coisa. Neste momento, acho que ainda estamos, se calhar, um bocadinho na transição de perceber que isto não está a funcionar, mas ainda não somos capazes de perceber o que é que vamos fazer diferente.

E apesar de haver uma muito maior participação da parte dos pais, a esmagadora maioria ainda continua a ser a mulher que trata das refeições, da logística da casa e das crianças.

Sim, e que falta ao trabalho quando as crianças estão doentes, por exemplo. Eu já ouvi mães que me dizem que o marido até ficava em casa, mas depois chega ao trabalho e perguntam-lhe porque é que não é a mulher a ficar. Quer dizer, isso não pode ser …

Pois, é a questão cultural. E tu publicaste agora um livro, Como educar crianças desafiantes. Existem crianças desafiantes ou pais desafiantes?

Existem dinâmicas desafiantes, podemos dizer [risos].

Porque muitas vezes se leva crianças ao psicólogo, porque têm problemas e mau comportamento na escola, e quando se vai a ver, o problema está mesmo é nos pais.

Exactamente, está na dinâmica que se gerou. Na verdade, aquilo que eu procuro fazer no livro é responsabilizar os pais para perceberem que não são os filhos que têm o problema, mas sim aquela dinâmica que não está a funcionar por algum motivo. Uma boa parte do meu trabalho passa muito por isso. Eu digo sempre que prefiro trabalhar com os pais do que directamente com a criança. Principalmente, quando são crianças pequenas, não faz muito sentido trazer a criança ao psicólogo. E menos sentido ainda faz nós assumirmos que é ela que tem um problema, e que é ela que precisa de mudar alguma coisa; porque se nada mudar em casa, o problema da criança nunca vai ficar resolvido.

E isso acontece muito, ou se calhar mais frequentemente, por exemplo, em situações de divórcios ou de grandes mudanças familiares, como nascimento de irmãos.

Sim, pode acontecer. Grandes transições às vezes são das coisas que causam muita angústia e alguma instabilidade na família. Por isso, às vezes os pais procuram apoio para saber como é hão-de lidar da melhor maneira com isso. Mas não necessariamente. Hoje, há muitas condicionantes que não ajudam, e de facto, por vezes, instalam-se relações entre pais e filhos que não funcionam. E a nossa forma de lidar com isso só vai, em alguns casos, cristalizando cada vez mais essa dinâmica que já não está a funcionar. Por vezes, de algum modo, o nosso próprio comportamento vai alimentando o problema e agravando a situação.

E o adiar também de algumas questões. Escreveste algo que me tocou: “As emoções são um potencial de acção que precisa de ser executado, e quando não podemos fazê-lo na altura certa, é como se o nosso organismo fosse acumulando essa informação, que vai precisar de descarregar mais cedo ou mais tarde, e nem sempre da maneira mais adequada”. Esta passagem serve para situações de crianças pequenas e jovens adolescentes, mas também de adultos.

Sim, claro. Nós, adultos, também acumulamos e deslocamos, muitas vezes, as nossas emoções. Aliás, muitos casos de ansiedade estão associados, de certo modo, a essa falta de capacidade de ir descarregando as emoções.

Mas também porque não há tanto uma conexão com as emoções e até com o próprio corpo.

Exactamente. Na infância aprendemos que certas emoções são perigosas. E isto pode acontecer por muitos motivos: ou porque nunca tivemos ninguém que nos ensinasse a lidar com essas emoções, ou porque os nossos pais reagem muito mal de cada vez que as demonstramos, ou ficam com medo de cada vez que aquela emoção é expressa. Então, vamos aprendendo que há determinadas emoções que não são aceitáveis, e isso coloca-as na caixa das emoções que são “perigosas”. E isso faz com que nos vamos desligando delas, e depois há determinadas emoções que também nos trazem para um estado de vulnerabilidade muito grande. E se tivermos medo dessa vulnerabilidade, então vamo-nos desligando daquela emoção. Para nos desligarmos da emoção, precisamos de nos desligar das sensações que ela provoca no corpo; portanto, esse desligar vai-se acentuando.

As dores de barriga nas crianças, por exemplo…

Sim, por vezes acontece. Se vamos sempre ignorando, chega um momento em que o corpo precisa de nos dar um sinal mais forte de que alguma coisa não está bem. E isso, em várias situações, traduz-se em sintomas físicos, como dores de barriga ou de cabeça. São as coisas mais comuns.

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Da tua experiência profissional, vês que vai sendo mais fácil para as famílias terem ajuda psicológica, ou não?

Vai sendo mais fácil, no sentido em que se retirou um bocadinho o estigma e o peso. Há uns anos, só ia ao psicólogo quem estava muito desesperado; hoje, felizmente, já não acontece. Por outro lado, em Portugal temos ainda um grande problema económico. Apesar de tudo, já há alguns seguros que comparticipam as consultas de Psicologia, coisa que antes não acontecia. E antigamente, se alguém conseguisse uma comparticipação, era preciso ter um papel do médico de família. Agora, já não acontece. Mas temos ainda muito poucos psicólogos no Serviço Nacional de Saúde e, portanto, consultas gratuitas as pessoas nem sempre conseguem. E as que conseguem… Já vi coisas absurdas, como pessoas com uma depressão pós-parto que tinham uma consulta por mês. Não faz sentido. Nessa fase da vida daquela mulher, numa altura tão decisiva e tão importante, uma consulta por mês não é nada.

Qual a razão para a saúde mental e emocional não ser vista como prioridade?

Eu acho que começámos a perceber já a sua importância, mas tem sido descuidada. É sempre relegada para segundo plano, porque no fundo os sintomas também não são assim tão óbvios e visíveis. Se eu tiver uma dor de barriga muito forte, é impossível eu ignorá-la. Se eu tiver uma doença qualquer que me provoca sintomas graves, também não consigo viver. Mas se eu tiver ansiedade ou depressão, se calhar vou vivendo, vou conseguindo funcionar mais ou menos. Por isso, é fácil ir varrendo para debaixo do tapete e fingir que aquilo não está ali.

A Direcção-Geral da Saúde tem estado a esconder dados sobre saúde. Alguns só estão disponíveis até 2019, por exemplo sobre as causas de morte e a evolução de suicídios. Noutros países, os dados que existem mostram que tem havido um aumento. Portanto, as pessoas que estão a sofrer do ponto de vista mental podem estar em risco de vida…

A Psicologia ainda é uma ciência muito recente. A verdade é essa. A Medicina, que trata das coisas físicas, é muito mais antiga. Portanto, ainda há aqui algum caminho a percorrer.

Laura Sanches é autora do blog Parentalidade com apego.

Mas estás optimista, também aqui?

Sim. Nunca se falou tanto destas questões, nunca lhes prestámos tanta atenção. Isso, à partida, é bom sinal. Alguma coisa há-de sair daqui.

Em termos civilizacionais, talvez se comece a olhar para esta área com maior acuidade. Durante a pandemia, foste uma voz muito activa, mas também tiveste custos. Sentes que o que aconteceu foi grave, sobretudo relativamente às crianças e jovens?

Muito grave, sim.

Ficaste surpreendida que outros colegas teus não tenham vindo a público defender as crianças? Muito faziam em privado e em grupos de Whatsapp, mas não publicamente. Nem junto da Ordem dos Psicólogos tiveram qualquer tipo de iniciativa.

Sim, muita gente me falou em privado. Aliás, no início quando saíram as normas para as escolas, e tive acesso àquilo que ia ser feito, fiquei logo muito preocupada e consegui reunir com algumas pessoas que eu nem conhecia. As maravilhas das redes sociais! Escrevi um artigo no Público [com Zulima Maciel e Ana Rita Dias, em Julho de 2020] e consegui recolher assinaturas de alguns colegas, mas também de algumas pessoas que não conhecia, e a partir daí conseguimos até enviar uma carta para a Ordem dos Psicólogos. Foram mais de 100 assinaturas, que reunimos num dia ou dois; foi uma coisa muito rápida, porque a situação era de urgência. Portanto, muita gente estava apreensiva e com medo das regras que iam ser impostas e dos seus impactos. Depois disso, parece que as pessoas se começaram a querer proteger primeiro a si próprias, e, de repente, houve um ignorar daquilo que toda a gente estava a assumir que era muito grave. Aliás, na altura falei com toda a gente com quem conseguia falar, até deputados. Todos me diziam que aquilo não fazia sentido nenhum, e que era absurdo submeter as crianças a estas regras; davam-me razão. E, depois, afinal, nada aconteceu, e não se passou nada; foi uma coisa que me deixou completamente estupefacta! Eu cheguei a participar numa reportagem em que a jornalista veio falar sobre as regras que iam ser impostas; eu comecei-lhe a explicar que aquilo não fazia sentido e o impacto que eu achei que ia ter, e ela no fim disse-me: “pois, realmente tem razão, eu nunca tinha pensado sobre isso”. Mas não se passou rigorosamente nada, apesar de as pessoas todas concordarem que não podia ser. Acho que depois, entrava a questão do egoísmo. Isto agora até está um bocadinho na moda, mas havia um autor que dizia que vivemos numa sociedade de narcisistas, e parece que foi um pouco isso que aconteceu. As pessoas ficaram tão preocupadas com o seu umbigo, que aquilo que lhes parecia um absurdo tão grande e que era tão óbvio que ia ter impacto, afinal já não importava, porque afinal era preciso que ninguém tivesse covid-19. Houve até uns investigadores que diziam que todos os efeitos secundários provocados pelas medidas passaram a ser mais aceitáveis do que qualquer morte por covid-19. Tornou-se mesmo uma questão moral; de repente, deixámos de conseguir reflectir e pensar friamente sobre o assunto.

pink and white plastic container on brown wooden table

Surpreendeu-te também terem sido tomadas medidas sem base nem evidência?

Sim, claro, embora não fosse bem isso que se dizia, não é? Logo no início, quando isto tudo começou, lembro-me de um artigo da Lancet que dizia justamente isso, que nunca tinha sido tentado assim um confinamento à escala global, mas havia exemplos de pequenos confinamentos, em regiões afectadas pelo Ébola, em que as pessoas ficaram contidas.

Sim, mas no caso do Ébola, a taxa de letalidade era acima dos 50%… Na covid-19, a taxa de letalidade é, em média, de 0,03%, e de 0,07% no caso dos idosos. E são dados do período anterior à campanha de vacinação…

Sim, claro. Mas o artigo concluía que isso tinha um custo tão elevado para a população que só mesmo em situações extremas, e muito limitadas no tempo, contendo pessoas de uma população, muito específica; e mesmo um peso gigante para as pessoas que eram submetidas a isso. Mas, de facto, todos fecharam os olhos e já não interessava nada o que se sabia. Mesmo em relação às crianças. Aqui faço um parênteses na questão das evidências, porque obviamente que não havia estudos que comprovassem os efeitos das máscaras nem do “ficar em casa”. Também não precisamos de estudos para tudo, quando temos modelos. Se temos o modelo de desenvolvimento das crianças, e sabemos as suas necessidades, isso dá-nos alguma previsibilidade. Portanto, se vamos cortar-lhes uma necessidade, isso terá algum impacto, e isso também não foi tido em conta. Esquecemo-nos de tudo.

Desapareceu a evidência científica e os modelos do bom senso. Tivemos campanhas grotescas, como aquelas da DGS a empurrar as crianças para a vacinação, com os trágicos desenvolvimentos a que nós estamos a assistir hoje, com os efeitos adversos e excesso de mortalidade. E criticaste isso, mas tiveste custos pessoais, como se verificou com a postura da Ordem dos Psicólogos contra ti.

Na verdade, sobre as vacinas nunca falei em público, porque nunca considerei ser a minha área, pelo que não acho que tenha muito o direito de me pronunciar sobre isso. Embora, hoje em dia, acho que é do domínio comum que as vacinas não faziam falta nenhuma às crianças. Mas aqui, enfim, é senso comum. Agora, em relação aos efeitos psicológicos das vacinas, sim; aí realmente eu sentia que alguma coisa tinha de ser dita.

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Também escreveste artigos, incluindo no Observador.

Sim, sim, escrevi alguns artigos. Sobre as consequências que eu tive… Acho que houve outras pessoas que, apesar de tudo, foram muito mais prejudicadas. Houve aquela altura em que parecia que tínhamos a peste, porque éramos rotulados de “negacionistas”, mas, enfim, acho que se fez uma selecção. Claro que algumas pessoas se afastaram, mas tudo bem, não é coisa que me tire o sono. Apesar de tudo, eu acho que fui até bem recebida pelas pessoas, no geral. Eu participei, por exemplo, no movimento “Assim Não é Escola”, que teve uma boa aceitação, porque as pessoas percebiam que estávamos a tentar proteger as crianças. E isso não estava a ser feito. Portanto, mesmo assim, eu não fui muito atacada; houve pessoas que sofreram muito mais.

Na área da Pediatria e Obstetrícia, mas mais uma vez em privado, houve de facto várias pessoas que apoiaram bastante esse movimento…

Sim. Falei com imensos pediatras, que estavam preocupadíssimos, porque viam o que estava a acontecer nos hospitais. Até pediatras que trabalhavam em urgência, e viam o estado em que as crianças apareciam, e estavam muito preocupados. Mas, de facto, na Ordem dos Psicólogos foi um bocado surpreendente. Porque, no início, quando eu escrevi o artigo no Público, e fizemos a carta aberta, até tivemos uma reunião com eles, e concordaram com tudo. Até depois escreveram uma carta à DGS, mais ou menos focando os mesmos pontos que nós focávamos.

Mas depois…

Depois, abriram-me um processo. Ou, na verdade, dois. E abriram-me dois processos com base em queixas completamente absurdas. Uma, em que o meu nome nem sequer era mencionado, por fazer parte de um grupo, e pelos vistos não podia fazer parte desse grupo. E outra, por uma pessoa que alegava que eu tinha dito coisas nas redes sociais, que eu nem sequer tinha dito.

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Mas na Ordem dos Psicólogos abrem-se processos sem averiguar a veracidade dos factos?

Pelos vistos, abrem-se, e isso é uma coisa perfeitamente chocante. Eu fui ouvida na Ordem e aquilo para mim foi completamente surreal. Ainda está em aberto; eu nem deveria falar sobre isso, porque supostamente vem lá a ameaçazinha na convocatória. Se eu falar sobre isto podem pôr-me outro processo, porque isto ainda está em segredo. Mas eu acho que isto é sobre mim; portanto, se há alguém que pode decidir se eu posso falar ou não, sou eu.

Mas vês isso como uma forma de tentar dissuadir-te de falar em público, de continuares a defender as crianças?

Sinceramente, não percebi qual foi a intenção deles. Aquilo que me disseram foi que tinham de averiguar se todas as comunicações são feitas com base científica, e de forma fundamentada.

Deviam começar pela DGS e verificar se as medidas aplicadas nas escolas têm base científica…

Exactamente, a DGS fez muitas comunicações que não tinham base científica. Mesmo isso da base científica é, enfim, uma falácia, de certo modo. Porque lá está, há muita coisa em Psicologia que não tem base científica e continua a ser usada e aplicada, porque funciona com base em modelos. A Psicologia não é uma ciência exacta, é uma ciência humana. Portanto, também podemos prever as coisas com base num modelo. Os estudos que agora saem estão a dar-me razão. Ainda há pouco, saiu uma notícia no Expresso a dizer que aumentaram até os suicídios em crianças, algo gravíssimo.

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A Ordem dos Psicólogos, mesmo assim, continua com os dois processos, portanto…

Estão em aberto. O papel das Ordens nunca deveria passar por policiar aquilo que as pessoas dizem. Para dizer a verdade, eu até tenho as minhas reticências sobre a utilidade da Ordem dos Psicólogos. Não sei se era importante termos uma Ordem. No fundo, serve para quê? Para fazer lobbying. Serve para tentar pôr mais psicólogos no SNS e nas escolas; até são coisas que fazem falta. Mas, enfim, a partir do momento em que servem para policiar o discurso das pessoas, aí perdem toda a razão de ser. Uma coisa é a Ordem investigar algo que se passou dentro do consultório, em que alguém tenha ido a uma consulta com um psicólogo e tenha queixas. Aí, pode haver alguma legitimidade para se investigar. Agora, coisas que eu disse, ou não disse, em público… É esse o papel das Ordens, hoje? Mesmo que haja um psicólogo que vá à televisão dizer uma coisa perfeitamente absurda, até que ponto a Ordem tem legitimidade para intervir? Não sei se tem, muito sinceramente.

Como vês o desfecho destes dois processos? Estás optimista ou preocupada?

Não sei. Eu acho isto tão absurdo que nem consigo dizer, honestamente. Não consigo sequer ter uma opinião. Confesso que fui para a audiência completamente descontraída e relaxada, a pensar que era só uma formalidade; pronto, já que me abriram um processo, agora têm de me ouvir. E cheguei lá e percebi que aquilo é uma coisa séria! E aí fiquei um bocado a pensar que estou em algum tipo de mundo paralelo. Isto não está a acontecer.

Como se tivesses cometido um grande delito…

Sim, fui interrogada sobre por que tinha dito e aquilo e como é que tinha dito aquilo. Perguntaram-me 30 mil vezes se eu tinha dito algo que não tinha dito. Acho que a pessoa [o denunciante] afirmou que eu tinha falado sobre a hidroxicloroquina, e queriam saber qual era a minha posição sobre isso. E eu, na altura, disse-lhes que nem tinha posição, nunca falei sobre isso na vida, nem investiguei o suficiente para ter uma posição! Poderia ter, pessoalmente, mas como psicóloga não me compete falar sobre isso em público.

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Mas podias ter uma posição. Ou não. Se calhar essa nova PIDE entende que não.

Exactamente, poderia ter uma posição sobre isso, mas nem tinha, por acaso. Porque até li algumas coisas sobre a ivermectina, por exemplo. Há dias até estava a ouvir um podcast sobre a hidroxicloroquina. Se calhar, agora já teria uma opinião, mas naquela altura não tinha. Também ainda nem tenho uma posição muito formada, nem tenho de ter, porque não é uma coisa que me diga respeito, ou que interfira no meu dia-a-dia.

Mas interferiu, deduzo, teres dois processos na Ordem, com a tua serenidade interior, porque ficas preocupada. Pensaste duas vezes se deverias continuar a falar ou não?

Na verdade, nunca coloquei muito essa questão, porque acho que também não me conseguia calar [risos]. Quando recebi as comunicações dos processos, a primeira coisa que me apeteceu fazer foi escrever um artigo sobre aquilo ou ir falar daquilo para algum lado, porque achei tão surreal e tão absurdo, que me apetecia comunicar ao mundo que aquilo estava a acontecer.

Até porque há outros psicólogos que têm vindo a falar, e pediatras também, em relação às crianças. Infelizmente, tivemos alguns pediatras que também receberam processos na Ordem, entretanto arquivados. Mas outras figuras mais conhecidas falaram, como a Joana Amaral Dias.

Apesar de tudo, eu acho que sempre tive muito cuidado. Lá está, nunca iria falar da hidroxicloroquina, porque realmente sinto que não me compete. Não posso tomar posição sobre uma coisa para a qual não estudei o suficiente para conseguir compreender. Portanto, eu sempre falei daquilo que eu senti que conhecia e que era a minha área, e em que eu poderia contribuir.

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As medidas tomadas, que foram comprovadamente erradas, como o encerramento de escolas, ou o confinamento, ou a imposição do uso de máscara… fica a pairar como sendo possível que se repitam. Até porque estão a ser feitas alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e está em criação o Acordo Pandémico, que confere poderes à Organização Mundial de Saúde, e que levantam muitas preocupações. És das pessoas que temem que estejamos a caminhar para uma sociedade cada vez mais totalitária?

É muito ambivalente, porque, por exemplo, da primeira vez que as escolas fecharam, eu estava completamente crente que, a seguir à Páscoa, reabriam, e não abriram. Pelo menos as do primeiro ciclo, que só abriram em Setembro. Na segunda vez que fecharam, eu não achava que iam fechar. Pensava que nunca o fariam outra vez, e que já se tinha percebido o disparate que foi. E fecharam [risos]. Portanto, já não consigo dar grandes palpites. Já não confio na minha própria opinião.

Tal como as vacinas e o certificado digital. Também não ia haver vacinas obrigatórias e certificado obrigatório para acesso a certos sítios, mas, na prática, houve.

Exactamente. A partir do momento em que vivemos um tempo da nossa vida em que não nos era permitido frequentar determinados sítios, porque não tínhamos um determinado papelinho… Acho que passámos uma linha muito grave e perigosa. A partir daí, se calhar, muita coisa pode acontecer. Porque aqui é completamente irrelevante se nós achamos que as vacinas são úteis ou não; não tem nada a ver com o que se passou. Eu podia acreditar que as vacinas eram a melhor coisa do Mundo, mas não tenho o direito de obrigar a outra pessoa a vacinar-se só porque existem todas as evidências de que aquilo é espectacular. Não existiam, por muitas provas que pudessem existir.

É a tal polícia moral.

Exactamente. A partir do momento em que nós penalizamos os outros pelas suas escolhas pessoais, e criamos divisões na sociedade com base naquilo em que uma pessoa acredita ou não acredita, passámos uma fronteira muito grave. E pior do que tudo: nós passámos essa linha sem grandes protestos, e sem que muita gente se importasse. Eu cheguei até a ter pessoas a dizer-me que também não se vacinaram, mas que não se importaram de não ir aos restaurantes, e a perguntar qual era o problema. Como “qual é o problema”?! É um problema gravíssimo, não importa se a pessoa está vacinada ou não, isso é completamente irrelevante nesta questão toda. Quer dizer, como é que alguém pode aceitar que uma pessoa esteja a ser barrada de um sítio porque tomou uma opção de saúde diferente daquela que acham que devia ter tomado?

a person holding a sign that says if vaccines work who needs segre

Ou a censura de informação verdadeira, por exemplo. Há pessoas que não vêem mal nisso, porque as redes sociais são entidades privadas. Ou mesmo os media, sabemos também que houve e ainda há condicionamento ao nível dos media.

Claro. Há pouco tempo partilhei uma notícia do Expresso sobre a questão das máscaras, porque afinal, com os estudos, a Cochrane chegou à conclusão de que não havia evidência sobre a eficácia no uso de máscara. E partilhei, porque achei realmente muito curioso que a jornalista fosse buscar um especialista qualquer, que respondeu que sim, que fazem e fizeram uma grande diferença. Mas não era para seguirmos a Ciência, com eles diziam? E depois chegavam à brilhante conclusão que foram 70 e tal estudos analisados, mas os estudos não eram assim muito bons. Quer dizer, então se durante este tempo todo não se conseguiu produzir um estudo de qualidade sobre o tema, vamos partir do princípio que o tema não será “estudável” por estes meios, não é?

Parece é que não se quer estudar porque já se sabe o resultado…

Claro, é completamente absurdo dizer que se analisaram 70 e tal estudos e nenhum prestava! Como é que isso é possível?

Aliás, a própria Cochrane terá sido pressionada à posteriori porque, entretanto, tentou pôr um bocadinho água na fervura, mas não está a resultar.

Agora, a questão é esta: partilhei no Facebook, com um comentário inocente sobre uma notícia de jornal, e fui censurada, retiraram-me a publicação sem apelo nem agravo. Que sentido é que isto faz? Estamos a tratar as pessoas como tolinhas, que não conseguem filtrar a informação por si mesmas?

É a questão da infantilização, não é?

Exactamente, é isso que se está a fazer. Estamos a partir do princípio que as pessoas não são capazes. É como aquela história, há uns tempos, do Trump, que disseram que houve pessoas a beber lixívia porque ele falou nisso. Não podemos partir do princípio que as pessoas são todas burras, não é? Está bem, se calhar pode haver uma ou outra pessoa mais impressionável, que vai fazer disparates, com base em alguma coisa que ouviu dizer. Mas isso até pode acontecer a pessoa estar a dizer uma coisa perfeitamente válida e fiável, e haver alguém que interpreta aquilo tudo ao contrário e vai fazer um disparate.

És vista agora como activista, mas acabaste por ser englobada, lamentavelmente, por alguns media como “negacionista” ou “anti-vacinas”. Tens uma herança, porque os teus pais, que fazem parte dos heróis que construíram a nossa democracia, não só pela defesa da justiça em prol dos mais fracos, mas também pelos direitos civis e liberdade. Sentes que também estás a dar agora um contributo, como os teus pais fizeram na sua época?

Eles foram muito mais penalizados, não se pode comparar. Eu não fui presa nem nada que se pareça, o meu pai esteve muitos anos preso. Infelizmente, o meu pai já morreu, por isso nunca saberei o que ele pensaria sobre isto. Mas uma coisa que eu pensava muitas vezes era: “caramba, o meu pai esteve preso tantos anos em luta pela liberdade, para agora de repente estarmos a voltar atrás desta maneira”. Não faz sentido.

Como é que ele veria estas alterações à Constituição?

Quero acreditar que seria veementemente contra todas estas coisas.

Mas sentes que estás um pouco a honrar o caminho dos teus pais, ao fazer a tua parte nesta luta?

Eu não sei se é honrar, ou se foi alguma coisa que me foi incutida em criança, que quando víamos as coisas acontecer não nos podíamos calar; ou se é qualquer coisa minha, não sei. Certo é que, de facto, estamos a ir em alguns aspectos para um caminho muito perigoso, e acho que não podemos ficar calados. Ainda para mais, se sabemos que houve pessoas que sofreram tanto, e que lutaram com grandes custos para a sua vida pessoal, por esta liberdade que agora estamos a pôr completamente em risco, e a deitar fora e a dizer que não interessa, porque há coisas muito mais importantes… A mim custa-me ficar quieta.

Laura Sanches,em 2010, a receber a Comenda de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, a título póstumo, ao seu pai, Saldanha Sanches.

Sentes na tua família preocupação pela tua exposição, como uma voz activa, na defesa da liberdade, das medidas com base na evidência e dos direitos das crianças?

[risos] A minha mãe preocupava-se sempre um bocadinho. Mas, enfim, a minha mãe preocupa-se sempre com tudo. Mas é triste, e é revelador, chegarmos à conclusão de que alguém se deve preocupar só porque outro alguém está simplesmente a dar uma opinião, que foi aquilo que eu fiz, não é? Veja-se ao ponto a que chegámos, para que isso seja preocupante. E, se calhar, em determinadas alturas, também pensava que isso poderia ter algum impacto na minha vida profissional. E, se calhar, em alguns aspectos teve, algumas pessoas talvez me tenham começado a ver como “negacionista”.

Provavelmente, como a tua mãe também sofreu na pele as suas posições, não queria que a filha passasse por certas situações.

Claro. Mas, apesar de tudo, pelo menos por enquanto, a coisa ainda não chegou a esse ponto.

Pensas nos teus filhos quando falas e quando escreves?

Muito. Pensava que se não tivesse filhos, não sei se isto me importaria tanto, porque para além de os ver a sentir na pele algumas medidas… O meu filho, quando tinha 10 anos, entrou para o quinto ano e tinha de usar máscara. Isso doeu-me, isso custou-me. O mais pequenino, apesar de tudo, estava mais protegido; no primeiro ano estava em casa e depois, quando entrou para a escola, enfim, era uma escola privada; as medidas eram muito mais aligeiradas. Mas houve coisas que me custaram muito. E não só, também pensar no mundo que quero deixar para eles. Não quero que os meus filhos vivam num mundo onde é possível excluir pessoas de sítios só por tomarem opções diferentes.

E se eles um dia ainda tiverem de fazer lutas, como as que estás a fazer, como vais reagir? Vais querer que eles as façam? Se calhar estás a tentar impedir que tenham de as fazer.

Eles terão que fazer o caminho que tiverem que fazer. Obviamente, nenhuma mãe quer que os filhos sofram. Queremos todos o melhor mundo possível para os nossos filhos, mas tenho consciência de que também escolherão as suas batalhas, e é natural que existam algumas. A vida nunca vem sem desafios, e claro que há momentos mais turbulentos, e há outros que serão mais pacíficos. Mas eu não posso controlar como é que vai ser o mundo quando eles crescerem, não é?

Com aquilo que se passou nos últimos anos, compreendeste melhor ou viste com outra luz a luta que os teus pais fizeram? É diferente lermos e contarem-nos sobre um tempo, e depois experienciarmos uma retirada da liberdade sem motivo válido como o que se verificou…

Sim. O impacto maior que eu vi nisto e que me fez mais impressão – e acho que na altura deles também aconteceria – foi este peso social. Só o uso da palavra “negacionista”, uma pessoa sentia-se quase leprosa em determinados contextos. E antigamente quem estava contra o regime, também se sentiria assim. Obviamente, havia algumas pessoas que apoiavam, mas era aquele apoio por baixo da mesa. Às claras, as pessoas eram mal vistas. Para mim, o mais impressionante, e o que mais me marcou, foi a forma como, de repente, toda a sociedade se pode organizar para encarar daquela forma um determinado grupo social.

E mesmo da parte de pessoas que, em termos intelectuais e de formação, considerávamos civilizadas. Tivemos directores de jornais, editores, jornalistas, a chamar manifestantes e críticos de chalupas. Não têm desculpa para a atitude que tiveram…

Isso para mim foi o mais chocante. E depois, ainda por cima, havia muitas pessoas com quem eu falava, como em restaurantes, que diziam que concordavam connosco, mas não podia dizê-lo a ninguém. Como é que se gerou este contexto em que as pessoas sentiam que não podiam expressar a sua opinião, porque as tornava uma espécie de párias sociais. Muita gente ficava chocada com esta comparação da Alemanha Nazi, mas, de facto, os processos psicológicos foram similares. Foi perceber como é que os nazis levaram a cabo aquilo que levaram com a conivência da população. E os próprios soldados eram pessoas normais, que só estavam a cumprir ordens. E, realmente, era aquilo que acontecia, as pessoas só estavam a cumprir ordens, inclusive nas escolas.

Estamos a falar de pessoas que são pais, e que em público são capazes de atacar outras de forma vil, insultá-las e incentivar ao ódio.

Exactamente; é algo completamente assustador. Por exemplo, em escolas tivemos crianças a brincar em quadradinhos no recreio, porque não se podiam misturar com as da outra turma… E como é que havia adultos a olhar para aquilo e a achar normal, aceitável? Como é que não deram um murro na mesa!

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Em termos psicológicos, a sociedade portuguesa é muito conotada como sendo passiva e obediente.

Quando certa vez fomos para uma casa de campo, eu vi o caso de uma pessoa que teve covid-19 na casa ao lado. E a GNR ia lá duas vezes por dia, buzinava e o senhor tinha de vir à varanda para mostrar que estava em casa, e depois iam-se embora. Como é possível? No campo! O homem estava fechado em casa sem ter ninguém à volta. Completamente ridículo.

Para mim, uma situação que me chocou foi receber uma chamada do centro de saúde porque queriam falar com a minha filha adolescente para tomar a vacina. E tem havido essa tentativa de retirar, também com a ideologia de género, a soberania dos filhos aos pais. Isso é uma táctica também muito utilizada em ditaduras…

Mas isso eu acho que também vem um bocadinho desta orientação para os pares e da desvalorização da família e das hierarquias. A noção de hierarquia também começou a ser mal vista na sociedade. E a hierarquia existe, e existe uma hierarquia de pais para filhos. E a partir do momento em que desautorizamos os pais, também se abrem portas para esse tipo de coisas.

Fotografias de Laura Sanches: André Carvalho

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