Título
A cook's tour: em busca da refeição perfeita
Autor
ANTHONY BOURDAIN
Editora (Edição)
Casa das Letras (Março de 2023)
Cotação
C17/20
Recensão
Como espectador useiro e vezeiro que fui dos programas televisivos de Anthony Bourdain (1956-2018), confesso a estranheza que sobre mim se abateu durante a leitura deste livro, tão só porque conhecia de antemão a trágica maneira como o autor havia desaparecido.
E essa estranheza foi-se formando paulatinamente a cada linha, a cada parágrafo, a cada virar de página, em que o ex-chefe de cozinha, agora transformado em estrela televisiva, perseguia a “receita perfeita” por todo o mundo e enaltecia o prazer de estar vivo e das coisas boas que nos conferem essa alegria, em particular as associadas ao comer e ao beber.
Publicado em 2001, dezassete anos antes da sua morte prematura, A cook’s tour: Em busca da refeição perfeita foi escrito no rescaldo do sucesso planetário que o anterior livro Cozinha confidencial: aventuras no submundo da restauração (2000) lhe granjeara, e depois de Anthony Bourdain ter iniciado um programa de televisão acerca das gastronomias e culinárias do mundo.
Por volta dos seus 45-46 anos, Bourdain teve uma crise existencial e decidiu não mais continuar “a atabalhoar brunches num café qualquer de West Village”, antes que o seu cérebro se transformasse em papa. Em conversa com o seu editor, disse-lhe: “Vou viajar por todo o Mundo, a fazer o que quero. Fico em bons hotéis e em barracas. Como comida assustadora, exótica e maravilhosa, faço coisas porreiras como vi nalguns filmes, e vou procurar a refeição perfeita.”
Além da refeição perfeita, Bourdain também queria aventuras, entusiasmar-se com emoções e arrepios melodramáticos, ver o Mundo. “Tudo dito, no entanto, a escrita deste livro tem sido a maior aventura da minha vida. Cozinhar profissionalmente é difícil. Viajar pelo mundo, escrever, comer, e fazer um programa de televisão é relativamente fácil. É melhor do que preparar o brunch.”
O enfant terrible da cozinha vai discorrendo sobre as suas aventuras num tom muito pessoal, irreverente, por vezes bastante confessional, polémico ou a chamar os bois pelos nomes, com pormenores históricos de contexto sócio-económico, mas também cultural, com múltiplas referências à Literatura, à Música ou ao Cinema. Os chefs de cozinha também são muitas vezes citados, uns mais conhecidos (Gordon Ramsay) do que outros, bem como figuras públicas ligadas à culinária (Nigella Lawson), salpicando as narrativas com inúmeras descrições pantagruélicas, umas de fazer crescer água na boca, outras de torcer o nariz.
Eis dois exemplos: num mercado em Saigão, Anthony Bourdain encontrou uma mulher a fritar uns passarinhos minúsculos, com “cabeça, patas, asas intactas, com as entranhas a rebentarem amareladas, saltando de barrigas fritas douradas”, nada que o assustasse. Tinham bom aspecto e cheiravam bem: “Compro um, pego-lhe pelas patas, e a mulher sorridente a encorajar-me, a dizer-me que estou a fazer bem. Coloco-o inteiro na boca, roendo até às patas, bico, cérebro, pequenos ossos crocantes e tudo. Delicioso.” Não há limites para o seu apetite: “Na manhã seguinte, estou de volta ao mercado, onde tenho um pequeno-almoço saudável de hot vin lon, essencialmente um embrião de pato cozido, ainda na casca, com bico meio formado e pedaços de matéria crocante escura enterrados na gema parcialmente cozida e clara de ovo translúcida.”
Atento e respeituoso dos cerimoniais da mesa em cada país, como por exemplo o pão em Marrocos: “Aqui não se pega simplesmente no pão; espera-se para ser servido”. Pormenores importantes mas que ajudam e fazem parte da integração de Bourdain à mesa de qualquer pessoa. E essa era outra das suas extraordinárias características. Tanto se podia sentar à mesa a comer com um simples pescador como estar rodeado dos mais ilustres chefs no mais conceituado restaurante do Mundo, com o mesmo prazer, irreverência e sentido crítico. Sem papas na língua.
Para terminar, transcrevo um excerto magnífico e revelador do tom apologético que Anthony Bourdain aplicou na caraterização de certos ingredientes e de como estes foram importantes na sua vida:
“O que é uma ostra, senão a comida perfeita? Não requer preparação ou cozedura. Cozinhá-la seria uma afronta. Ela fornece o seu próprio molho. É um ser vivo até segundos antes de desaparecer pela garganta abaixo, por isso sabemos - ou deveríamos saber - que é fresca. Aparece no seu prato como Deus a criou: crua, sem adornos. Um pouco de sumo de limão, ou talvez um pouco de molho mignonette (vinagre de vinho tinto, pimenta preta moída, um pouco de chalota finamente picada), é o máximo de insulto que pode ter contra esta magnífica criatura. É comida no seu estado mais primitivo e glorioso, intocada pelo tempo ou pelo homem. Um ser vivo, comido para sustento e prazer da mesma forma que os nossos antepassados o comiam. E elas têm, pelo menos para mim, a atração mística acrescida de toda essa memória sensorial – o significado de ter sido o primeiro alimento a mudar a minha vida. Culpo a minha primeira ostra por tudo o que fiz depois: a minha decisão de me tornar cozinheiro, a minha procura de emoção, todos os meus horrendos erros na busca do prazer. Culpo aquela ostra por tudo. De uma forma simpática, claro.”
Depois de ler isto só nos apetece comer ostras.