a deriva dos continentes

Uns bons comprimidos cor-de-rosa

green and brown chameleon

por Clara Pinto Correia // Abril 3, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Este homem[1] é um herói da consciência nacional[2]

Allen Ginsberg

Contracapa de THE POLITICS OF ECSTASY, 1965


Querido Zé Duarte, soube na quinta feira, dia 30 de Março, que fizeste 84 anos e pronto, encostaste à box. Provavelmente estavas farto, mas é uma grande chatice, sabes. Temos todos de morrer, mas os que nos vão fazer muita falta deviam ser obrigados a segurar a barra por pelo menos mais um século. Foste uma das figuras mais marcantes, mais criativas, mais inovadoras, do século XX português. Foste absolutamente incontornável, e agora, sem ti, torna-se complicado entender por onde é que realmente passarão mais caminhos. Isso viu-se logo na noite da tua morte. Fui sentar-me a correr diante da televisão, à espera de ouvir contar todas as invenções multifacetadas que eu sei que te devemos, porque trabalhei contigo, dei contigo em doido, andei contigo ao murro, e ri contigo como com poucas outras pessoas. Epá Zé, mas, olha, não. Não, imagina. Tanto espaço novo que tu desbastaste para o sorriso inteligente de um país que inventaste sempre à beira de uma ou outra neurose feliz, e sabes o que é que eles diziam?



José Duarte foi durante 40 anos o autor do programa diário CINCO MINUTOS DE JAZZ, que apresentou na Renascença, Comercial, e Antena 1.”

Ouve lá. Eu não aguento estas vistas curtas. A puta que os pariu, Zé. Entendes? Nunca te ouviram, sequer, a passear pelo estúdio da Comercial enquanto fazias sermões louquíssimos com o sotaque de um padre de Viseu. Não sabem nada de ti. Desconhecem por completo a tua arte mágica do improviso – como daquela vez em que me atiraste à cara, assim mesmo completamente lixado, “a tua felicidade ofende-me!”. Lembras-te? Só tu, Zé. Só tu é que gritavas uma frase destas enquanto te punhas em pé de um salto, com toda a gente a ver, no meio do Café de São Bento.

Este filme que ninguém que lá estava esqueceu quer dizer muitas coisas boas, infelizmente todas elas extintas algures durante os anos 90. Passava da uma da manhã, a meio de uma semana de imenso trabalho. Na minha mesa éramos quatro miúdas, todas entre os trinta e os quarenta anos, produzidas, giras, descascadas, a comer bifes e a beber Moet Chandon, o que implica que, na altura, desde que se trabalhasse muito e o resultado fosse bom, havia dinheiro para festas como estas. Assim sendo andávamos atraentes e contentes, pelo que o estrago de dormir pouco, desde que repetido com moderação, era o menor dos nossos males.

S observa atentamente o cuidado com que CPC embala o seu novo afilhado, a quem acaba de dar o nome de Panzer, já que os Leões da Rodésia não crescem tanto como os Rafeiros Alentejanos mas quase.
Sempre que as piadas em quadrinhas de pé quebrado que eu escrevia para o PÃO COM MANTEIGA sobre os dilemas dos animais eram perdidamente cruéis, sobretudo para uma jovem bióloga que tinha a obrigação de gostar muito deles, o Zé Duarte olhava para mim sem esconder a sua perturbação e rosnava-me “You’re sick!
E eu, que só tinha 25 aninhos, ficava tããão orgulhosa…

Acontece que, nessa noite em particular, o Zé Duarte entrou quando os nossos bifes iam a meio e foi sentar-se na mesa ao lado da nossa, na companhia de mais dois indivíduos incaracterísticos. Fez-nos os devidos acenos de cabeça. Deu à situação a sua devida pausa romântica. Por fim, iniciou as manobras de aproximação com base numa razão perfeitamente aceitável: conhecia-me do PÃO COM MANTEIGA, já lá iam muitos anos, aqueles anos daquela vida que eu tive antes de ir para a América.

Reparem, isto também quer dizer que, nesse nosso mundo, nesse nosso País, uma pessoa descontente com o curso que a sua vida estava a seguir podia agarrar em si e mudar tudo de uma só vez, assim mesmo completamente, de todo em todo radicalmente. Aliás, nessa noite estávamos ali todas de encher o olho porque eu acabava de defender as minhas provas de doutoramento em Portugal[3]. E isto quer dizer que, nessa altura, estas coisas não eram fáceis, mas eram uma questão de teimosia e de qualidade, e faziam-se. E mais, e faziam-se bem[4]. Os outros dois indivíduos não tinham ponta por onde se lhes pegasse, portanto a mais alta e imponente de nós todas começou a mandá-los desamparar a loja, porque se era para cenas canalhas a gente preferia uma cena canalha em que só entrasse o Zé. O Zé começou a puxá-los pelas mangas e a ordenar-lhes que pagassem tudo antes de sair.

Foi quanto bastou para a minha melhor amiga, linda de morrer, os olhos azuis a atravessar os pobres homens como espadas, os cabelos loiros a enfeitiçá-los como os olhos caleidoscópicos da serpente, o minivestido de licra amarela a revelar-lhe todas as belíssimas curvas e todas as arrojadíssimas ausências de fios dentais e wonderbras, ir ter com os dois inexistentes a bambolear as ancas em cima da vertigem dos seus saltos agulha, agarrar no maço de Dunhill que eles tinham na mesa, levar um cigarro aos lábios, beber do copo de um deles, depois beber do copo do outro, e depois pedir aos dois ao mesmo tempo sem fixar a atenção em nenhum deles em especial,

“Meu Baby, tu, ou tu, meu Baby. Dá lume à mãe e dá lume à mãe, please,”

de onde resultaram acto contínuo dois isqueiros acesos logo ali, o que me fez abrir a minha caixa dos medicamentos e dizer aos dois que tomassem um cor de rosa que ia fazer-lhes bem, e a seguir que hit the road Jack, a malta queria era ficar com as partes todas do Zé Duarte e não tinha interesse em partes transparentes de mais ninguém.

Como o empregado vinha a aproximar-se para nos trazer outra garrafa que era oferta de dois senhores do balcão, a nossa amiga New Age, com os seus olhos verdes enormes e os seus dedos como algas, disse-lhe em voz comandante e cristalina,

“Ó Octávio, amoroso, és capaz de pôr estas duas criaturas inexistentes na rua, para pararem de bloquear o nosso acesso ao Zé Duarte?”

O que quer dizer que nessa altura nós sabíamos o nome dos empregados e estávamo-nos bem nas tintas para os senhores do balcão, mas começámos a encher uma flute para o Zé e eu ofereci-lhe um pratinho quentinho cheio de batatas fritas enquanto o Octávio tratava de pôr os transparentes a milhas depois de os ter obrigado a pagarem as contas de toda a gente, incluindo as nossas.

“A mãe é má, Baby”, disse a minha melhor amiga para o Octávio, com uma piscadela de olho que ou eu me engano muito ou assustou um bocado o Zé Duarte.

“E já agora toma quatro destes cor-de-rosa, Zé,” acrescentei eu, decidida a tranquilizá-lo mas um bocado perdida de riso. “Fazem o quádruplo do efeito com batatas fritas e Moet de senhores do balcão.”

“Mas eu tenho que ir para casa!”, gritou o Zé.

“Come, bebe, toma os cor-de-rosa, relaxa, que depois vamos todas contigo,” prometi-lhe eu. “Assim enquanto eu guio elas tiram-te a roupa pelo caminho.”

“Tiram-me a roupa?”, protestou o Zé.

“Sim!”, garantiram as miúdas, a despachar Moet e batatas fritas. “Toda a gente te tira a roupa, menos a Clarinha, que vai a guiar.”

“Clarinha!”, gritou-me o Zé, como se a culpa fosse minha. “Para que é que elas querem tirar-me a roupa pelo caminho?”

“Para sermos todos muito felizes, querido Zé!”

E foi esta resposta tão doce que fez o Zé levantar-se como que impelido por uma mola, apontar para mim de dedo em riste, começar a recuar para a porta, e bradar o já famoso,

CLARINHA! DESAPARECE! A TUA FELICIDADE OFENDE-ME!”

Saímos as quatro a correr atrás dele, e o Café de São Bento brindou-nos com uma grande salva de palmas.

Quando a porta se fechou por completo e já ninguém podia ver o verdadeiro desfecho, metemos o Zé Duarte num taxi que ia a passar e mandámos o motorista seguir para o Vá-Vá. Era o super-poder incomparável daquele homem. Para onde quer que fosse, estava constantemente a potenciar o acontecimento de coisas impossíveis como esta. Depois fomos andando para o meu Toyota amarelo alugado, empandeirado algures em cima do passeio. Sabíamos as quatro, perfeitamente, que o Audi cintilante do Zé Duarte estava estacionado na esquina, do outro lado da rua, mesmo em frente ao Parlamento, onde o reboque entra em acção logo às sete da manhã. Mas nisso é que nunca poderíamos interferir, mesmo que quiséssemos. Toda aquela aventura inesquecível era dele. Não era nossa.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Ginsberg referia-se aqui a Timothy Leary, e não ao Zé Duarte, que obviamente nunca conheceu. Mas o efeito é o mesmo e a heroicidade aplica-se da mesma forma a ambos os homens.

[2] Ginsberg referia-se aqui à consciência americana, que Leary sacudiu vivamente nos anos 60. Mas, exactamente no mesmo acto deliberado de assalto à psique, com a mesma vivacidade, poderia estar a referir-se à consciência portuguesa. O Zé Duarte guiou-nos durante dezenas e dezenas de anos num MAGICAL MYSTERY TOUR absolutamente fantástico. Se o consumíssemos, sabíamos que a viagem nunca seria má. É extremamente raro podermos dizer isto de alguém. Nos tempos que correm, então, já não há praticamente mais nenhuma personalidade que nos ofereça garantias semelhantes. Talvez o Papa Francisco. Mas, infelizmente, tudo indica que também ele está prestes a ir-se embora. Ficaremos, então, radicalmente órfãos de todo e qualquer bom gosto.

[3] Isso contribuiu, em grande medida, para a tal felicidade que ofendeu o Zé.

[4] Para encurtar razões, aquilo foi um castigo: além da prova normal do primeiro dia, no dia seguinte ainda tive que defender mais uma prova, consistente em apresentar e argumentar um projecto de investigação. No primeiro dia o material era muito menos interessante, mas o anfiteatro estava a deitar por fora. No segundo dia só estavam os familiares e amigos, o que me entristeceu, porque neste caso sim, o material era apaixonante. “A audiência veio toda no dia errado,” comentei com um amigo que dava lá aulas ao terceiro ano. “Hoje é que era giro ouvir as novidades.” O meu amigo riu com carinho, na constatação óbvia de que eu já começara a esquecer o meu próprio País. “Clarinha, então?”, disse-me ele. “O pessoal não veio ouvir as tuas provas. O pessoal veio ver-te chumbar, porque era isso que toda a gente dizia que ia acontecer. Quando perceberam que não chumbavas coisa nenhuma deram à sola. Não estamos todos fartos de te avisar que as pessoas são más?” Mas não, eu não conseguia ouvir. Passava demasiado tempo na América para me cair a ficha de que as pessoas são más. Nem com a acusação de plágio caiu como deve ser, uma vez que eu também estava na América quando me fizeram essa baixaria. Foi mesmo preciso toda aquela ordinarice do orgasmo, o desemprego, o abandono – ou seja, só me caiu a ficha quando fiz cinquenta anos, caraças! Tinhas toda a razão, Zé: I WAS SICK”!

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.