Por todo o lado a cidade ergue-se em cima dela própria, as pedras cansadas a vergar corroídas pelo cheiro de urina que vagueia por entre recantos, creolina e cara lavada em pontos de inflexão, graffiti bonito e colorido em caixas de electricidade feias, como maquilhagem e transformismo urbano.
Tudo pronto para a fotografia. Tudo mentira. (E o que é a verdade senão a nossa mentira? Onde estás, Voltaire?)
De buraco em buraco saltamos, desviamos caminho para não tropeçar, cabeça baixa para não parar. (E a fome a rastejar ao nosso lado.)
– Isto chega a uma certa idade é o que mais é, é cair a toda a hora!
– Pois olhe ela caiu, partiu duas costelas e agora lá está, deitada.
Que nos fizeram estes anos? Que nos fazem ainda? Aprisionaram-nos em casa, exigiram-nos guia de saída, injectaram a salvação no nosso braço (o que é a lei?), taparam-nos a cara (o que é o direito?), enervaram-nos a pele e sujaram-nos o pensamento. A cidade em cima dela própria, tudo é novo, tudo é velho (e o cheiro, a pestilência).
Foi só isso e já passou? Esqueceram 2008? 2010? 1995? Tantas datas e as cidades em cima delas próprias e em cima de nós, soterrados em fedor de urina e creolina a desinfectar a superfície. Que visão, a ascenção e queda de uma civilização. Que circo de figurinos e o Parvo no molhe, a apontar-lhes as chagas.
– Eu descontei 47 anos, olhe este joelho, ando aqui que não me posso apoiar nele.
– E a sua quintinha?
– Eu tenho-a toda bonita, não se vê uma erva, assim é que eu gosto, de a ver de lá de cima, é um mimo.
A Bíblia do Diabo é tão pesada como uma pessoa, de tão grande que é. Chama-se Codex Gigas e em princípio foi diligentemente escrita no século XIII por monges beneditinos na República Checa.
No meio das guerras que marcam as pedras das cidades europeias, no meio das falências que permitiram que os Cistercienses comprassem esta obra de conhecimento do mundo não perecível, e no meio de empréstimos que se prolongam no tempo, este Codex viajou para um castelo que sofreu um incêndio.
Poderia ter-se perdido no tempo para nós mas, reza a lenda, alguém o salvou em corpo do meio do inferno e o lançou de uma janela, tendo vindo a cair em cima de um espectador que até se magoou, por ter levado com aquela entidade feita de peles de burro em cima das costas.
O Diabo ocupa figura de destaque numa sua representação desenhada em corpo inteiro, com ar travesso e olhos esbugalhados. O céu, também representado noutra página, não tem lá ninguém. Está vazio. (Curioso, com tanta gente a bater com a mão no peito.)
Haverá sempre quem carregue em corpo as palavras, nem que as tenha de lançar de uma janela, arriscando a esmagar alguém que se limita a assistir.
Nada é planeado agora para o futuro distante. A velocidade tornou-se um vício e só trotinetas e eventos vazios é que existem.
Na verdade, ninguém quer um uso responsável das urnas. E por isso mesmo se sucedem os mesmos ou então surgem as vozinhas de pregão no balcão do café. Pessoas tacanhas que fazem exercício de encontrar culpados para as agruras mais partilhadas pelos demais, trepando assim ao poleiro, caturras coloridas e barulhentas.
Na verdade, Portugal não tem quem movimente corações (alguma vez teve?). Depois de sangue azul de privilégio e ocasionais megalomaníacos, depois de se importar a república, de baterem portas no vaivém de entrada e saída, de um chapéu tacanho e censor pôr ordem na casa para gáudio dos órfãos. Depois de jovens nos libertarem e se libertarem a si do diabo gigante do poder, os chacais têm estado a roer os ossos que sobram de uma nação que tinha tudo para o ser por vocação.
Sempre tivemos o corpo, corpo velho de cidades construídas em cima de cidades. Temos até a alma. Mas, na verdade, falta-nos a mente.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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