Recensão: O diabo

A maldade está no meio de nós

por Pedro Almeida Vieira // Abril 17, 2023


Categoria: Cultura

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Título

O diabo

Autor

GONÇALO M. TAVARES

Editora (Edição)

Bertrand Editora (Setembro de 2022)

Cotação

16/20

Recensão

Aos 52 anos, Gonçalo M. Tavares é porventura o mais prolífico escritor da sua geração – e não só –, com uma vasta obra que conta, desde o início deste século, com cerca de meia centena de títulos. Multifacetado, multipremiado e multitraduzido, a sua produção literária criterisamente “catalogada” por si próprio, causa pasmo pela meticulosidade, harmonia e coerência..

Nos últimos anos, surpreendente, talvez, seja “apenas” uma certa desaceleração na sua cadência produtiva: no último quinquénio “apenas” publicou seis obras, o que parece pouco quando, por exemplo, entre 2003 e 2017 foram editadas 17 obras da sua autoria.

A estatística é, porém, um pormenor. A qualidade mantém-se bastante elevada, mesmo quando se aguarda um estilo similar, já conhecido. Gonçalo M. Tavares continua a (saber) criar, com as suas narrativas – chamemos-lhe assim, por simplificação –, estranhos e desafiantes universos, por vezes irritantemente simples, outras vezes desconsertantemente complexos. Tem sido justamente comparado com Kafka, e em certa medida alguma da sua obra assim assemelha- se ao escritor checo, sobretudo quando, como sucede com este O diabo, se debruça sobre a humanidade e sobretudo a maldade, e a incapacidade e impotência de a subverter (à maldade).

Integrado na série Mitologias – que conta também como A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado (2017) e Cinco meninos, cinco ratos, ambos também editados pela Bertrand –, O diabo acaba por ser, dependendo da perspectiva (ou da interpretação), um conjunto de narrativas que, tendo presente um belzebu físico, omnipresente e regendo os humanos, se espraia a maldade humana, não apenas a inata mas em especial a apreendida, a aplicada e a obedecida.

Sabe-se que o diabo está nos pormenores, mas por este livro de Gonçalo M. Tavares está afinal por todo o lado, mas na prática sem sequer se impor aos humanos, pelo medo ou pelo temor. Quase se pode dizer que o diabo é obedecido, e ponto.

Alexandre Palas-de-Cavalo, uma das personagens centrais deste livro, mostra de forma muito particular, de uma forma demasiado crua, como a maldade se pode aplicar sem qualquer noção moral, apenas porque “tem de ser”. E “tudo tem (mesmo) de ser”, quanto mais chocante e perverso se afiguram as cenas e efeitos do mal.

Gonçalo M. Tavares explora assim não apenas o mal, mas a banalização do mal, a aplicação de regras sem nexo, mas surgindo com tal naturalidade que aparentam ser a coisa mais normal e, por isso, necessariamente aceitável.

Embora algumas partes do livro sejam, aqui e ali, cansativas por um certo exagero na criação de personagens fantásticas – entre Kafka e Italo Calvino (nas três novelas de Os nossos antepassados) –, aconselha-se que este livro de Gonaçlo M. Tavares seja de leitura lenta e talvez repetida, para desvendar as metáforas que encerram.

E tal como sucede com muitos outros escritores, as interpretações de cada leitor podem não ser exactamente aquelas pensadas pelo autor – e se assim for, é aí mesmo que está a magia da Literatura.

Para finalizar, havendo imensas passagens marcantes, e muito visuais, neste livro de Gonçalo M. Tavares, que merecem ser anotadas (e discutidas), escolherei uma que, para mim, melhor representa o mundo como ele infelizmente é (maléfico), ou seja, como o poder de certos homens se exerce sobre os demais.   

Há um buraco no Grande Armazém – está no chão, num dos cantos –, um poço que acaba não se sabe onde, mas ninguém se atreve a fugir por ali porque cheira terrivelmente mal, e nunca o cheiro foi assim tão eficaz – impede a fuga, eis o cheiro a fazer o que não conseguiria um exército bem armado – e, sim, é para esse buraco que vão as fezes que o Povo-Armazenado produz. Tudo organizado: a comida vem de cima e o animal doméstico, o Povo-Armazenado, levanta a cabeça, como se fossem pequenos animais a receber comida da mãe, e depois baixa-se, próximo do Grande-Buraco, e para ali envia os dejectos. Assim se mantém o Grande-Armazém com o estômago cheio e não demasiado sujo.

(…)

Mas é armazenado para quê, esse povo? Eis a questão. Porque não o eliminam de uma vez? E é essa a pergunta que fazem ao capitão Mau-Mau. Gastamos comida e gasolina nos Helicópteros-Bons – não se percebe o sentido de armazenar um povo inteiro –, esta é a questão que inquieta. O capitão Mau-Mau responde que o Povo-Armazenado pode vir a ser útil no século seguinte. Quem sabe se daqui a cem anos, no início do próximo século, não precisaremos de novo deste povo que agora armazenamos. Sim, são estes os planos do capitão Mau-Mau – nada se pode desperdiçar, odeia tal gesto, o de deitar fora algo, e por isso é um dever armazenar este povo guardá-lo para o futuro. Quem sabe se este Povo-Armazenado não se transformará numa coisa útil, verdadeira, justa e bela. (pp. 63-64)

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