A gravação não deixa margem para dúvidas. O PÁGINA UM entrou no “mundo” da fabricação de “notícias” feitas por “jornalistas” a troco de dinheiro. Saiba como um suplemento do Diário de Notícias “mercadeja” o jornalismo sem pudor, através de uma conversa surpreendente com o director do PÁGINA UM “disfarçado” de gestor de comunicação de uma das empresas contactadas pela Valor Económico. E ainda se oferece como facilitador de contactos com o mesmo propósito para o Dinheiro Vivo. Ouça a conversa AQUI.
Apresenta-se como jornalista a trabalhar para um suplemento do Diário de Notícias, tendo ao seu dispor somente jornalistas com 20 anos de experiência (e nunca estagiários), e oferece “notícias à medida”, com acompanhamento personalizado e produzidas com “profissionalismo”.
Para as empresas interessadas em se mostrar aos clientes e potenciais clientes através de uma “notícia” no Valor Económico, este suplemento económico do Diário de Notícias, oferece um serviço personalizado para que o conteúdo não seja visto nem percebido como publicidade. Em troca, as empresas pagam 1.250 euros, que pode ser em três suaves prestações, mas facturado como publicidade para efeitos fiscais, ficam com a “notícia” no suplemento em papel e com ligação directa ao Diário de Notícias, sem qualquer referência a ser publicidade, durante 30 dias.
Eis, em resumo, o “negócio” apresentado por alguém que se identifica como um jornalista que aparenta trabalhar no Diário de Notícias chamado Miguel Ângelo – mas que, na verdade, se trata de Miguel Ângelo Sá, gerente da Edimédia Publicações, uma empresa de edição de revistas e publicações periódicas.
Não existe nenhum jornalista acreditado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista com o nome Miguel Ângelo, e a Valor Económico, apesar de ser uma marca registada pela Edimédia no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), não tem registo na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), o que é obrigatório quando se trata de empresas de edição de periódicos.
Em consulta do PÁGINA UM, identificou-se a mais recente edição do Valor Económico – integrado nas páginas do Diário de Notícias em papel, com o mesmo formato do jornal e sem qualquer referência a tratar-se de publicidade – em 27 de Outubro passado, contando com 19 “notícias” de empresas.
Para a próxima edição do Valor Económico, cuja publicação está prevista para os primeiros dias deste mês, o jornalista do PÁGINA UM – sob disfarce de consultor de comunicação (com o nome fictício de Jorge Costa) de uma das empresas consultadas – conseguiu estabelecer uma conversa telefónica com o responsável da Edimédia.
Devido ao inegável interesse público desta questão – a usurpação de funções de jornalista por quem não é detentor de título profissional e a “mercantilização” de notícias –, a conversa foi gravada.
De acordo com o Código Deontológico dos Jornalistas, “o jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja”, salientando-se que “a identificação como jornalista é a regra e outros processos só podem justificar-se por razões de incontestável interesse público e depois de verificada a impossibilidade de obtenção de informação relevante pelos processos normais.”
O PÁGINA UM considera que seria impossível conhecer os detalhes do modus operandi deste suplemento económico do Diário de Notícias se não houvesse um disfarce. Na gravação, sem cortes, apenas se retirou as referências à empresa que contactou o PÁGINA UM revelando, com surpresa, a proposta que lhe fora apresentada: pagar para ter uma notícia num suplemento do Diário de Notícias.
Na conversa de cerca de 20 minutos, Miguel Ângelo, que se assume como jornalista, diz que, se houver acordo, se faz a “notícia” – é este termo específico repetido inúmeras vezes – após uma conversa ou entrevista de cerca de meia hora, que merecerá os “acertos” necessários, e que sairá não apenas em formato de papel nas páginas centrais do Diário de Notícias, sem qualquer referência ou solução gráfica que indique tratar-se de publicidade.
Miguel Ângelo afiança que essa opção é intencional, que as “empresas não querem” estar “conotadas” com um produto publicitário. No entanto, a factura, garante o responsável da Edimédia – que nunca assume o nome da empresa; antes, de forma dúbia, dá a entender que trabalha directamente para o Diário de Notícias.
Para convencer os empresários da “qualidade do trabalho”, Miguel Ângelo – que diz ser “jornalista” (ao minuto 10:32) – garante que os textos serão escritos exclusivamente por jornalistas “lá da redacção”, dando a entender que se trata da redacção de um jornal. Todos experientes, assegura. “Isto é feito de uma forma bastante profissional”, e explica: “no Valor Económico, toda a gente que produz as peças são pessoas com cerca de 20 anos de experiência de jornalismo. Não colocamos estagiários a fazer a parte económica, porque não têm aquela sensibilidade económica necessária”.
Mais grave ainda é a possibilidade que Miguel Ângelo coloca de ser facilitador para um modelo similar no suplemento do Dinheiro Vivo, mas diz que os “valores e os custos são complemente diferentes”, dando a entender que serão mais elevados.
Nesta conversa – propositadamente feita de uma forma informal para não levantar suspeitas de estar perante um jornalista –, Miguel Ângelo até acaba por falar de si próprio como sendo o director (ou responsável) do Valor Económico, mas identificando-o como Miguel Sá, formado em jornalismo e antigo director de conteúdos da Global Media.
Contactada com este modus operandi de um suplemento inserido no seu jornal, Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias diz desconhecer “o modo como o Valor Económico produz os seus conteúdos, [e] muito menos se há ou não pagamentos e a troco de quê”, acrescentando que “não indagamos ou deixamos de indagar o que faz o Valor Económico, marca que nada tem que ver com o DN [Diário de Notícias] ou o GMG [Grupo Global Media].
Embora o PÁGINA UM não tenha, quando colocou questões à directora do Diário de Notícias, facultado a gravação da conversa com o responsável do Valor Económico – onde, repita-se, se assume a venda de conteúdos comerciais parecendo notícias e feitas por (presumidos jornalistas), Rosália Amorim garante que “é falso que nas páginas do DN [Diário de Notícias] surjam estes conteúdos, até por se tratar de um encarte comercial autónomo, da responsabilidade do seu proprietário e com ficha técnica própria, e que é apenas e só distribuído com o jornal, como acontece com outros encartes comerciais, neste ou noutros jornais do mercado global.”
Quanto à possibilidade de o Dinheiro Vivo também usar similar expediente, Rosália Amorim, não comenta, tendo remetido para a directora daquele suplemento, Joana Petiz. O PÁGINA UM não colocou essas questões a Joana Petiz porque, na verdade, essa jornalista está integrada na direcção do Diário de Notícias, como subdirectora.
Confrontado com a gravação do PÁGINA UM, o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Simões, diz que, mesmo que o Diário de Notícias possa ter uma explicação para esta situação abusiva, “qualquer jornalista tem a obrigação de resistir a elaborar conteúdos pagos ou patrocinados” por não ser essa a sua função, que afecta a independência necessária à profissão. Para este jornalista, “não se pode ludibriar os leitores travestindo conteúdos como se fosse jornalismo”, acrescentando que “não é aceitável a usurpação da função de jornalista, porque mina a confiança”. “É nosso dever denunciar estas situações, mesmo até à barra dos tribunais”, conclui.
Após a gravação sob “disfarce”, o PÁGINA UM colocou um conjunto de questões a Miguel Ângelo (Sá), mas não obteve qualquer reacção.
Ouça a gravação integral AQUI.