Editorial

Porque estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev tenho raiva de Putin e medo de Helena Ferro de Gouveia

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Fevereiro 28, 2022


Categoria: Opinião

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Há uma grave tragédia na Ucrânia, à escala mundial, humanitária, política, geoestratégica, psicológica. Mais grave ainda por suceder no culminar de dois anos de uma pandemia que criou uma psicose colectiva – formatada por políticos, imprensa e indústria farmacêutica –, e que permitiu transformar um evento grave de Saúde Pública em prenúncio de um cataclísmico Armageddon vírico.

Desde 2020, pasmo com a mudança das mentalidades, mesmo em espíritos abertos. Ressurgiu, como em sombrios tempos passados, um pensamento unívoco e dogmático, baseado num mundo maniqueísta: o altruísta e o egoísta; o bondoso e o maldoso; o santo e o pecador; o humano e o desumano; o anjo e o demónio; o imaculado e o hediondo; o generoso e o sovina; o insigne e o abjecto; o puro e o impuro; o elevado e o rasteiro; o herói e o vilão.

Obviamente que, neste mundo, e desde que o mundo é mundo – que, neste contexto, se situa desde que o ser humano surge com as suas imperfeições –, há homens e mulheres egoístas, maldosos, pecadores, desumanos, demoníacos, hediondos, sovinas, abjectos, impuros, rasteiros, vilões. Porventura, ou “malventura” nossa, Putin será alguém que bem se encaixa em todas estas adjectivações. Se lhe faltar alguma, será, por certo, compensada por todas as outras.

Porém, o maior problema do mundo nem é a existência de Putins – porque houve piores ou iguais em séculos passados (e não apenas Hitler), e os haverá em séculos futuros. E no futuro sobretudo se pensarmos que ele é único, e fruto de um acaso ou de um azar genético.

Na verdade, a grande causa das piores desumanidades da Humanidade (lembremo-nos que a desumanidade é algo apenas dos humanos) foi a incapacidade colectiva em prevenir e precaver a existência desses maldosos, pecadores, desumanos, demoníacos, etc. – e, pior ainda, que estes fossem concebidos e crescessem na base, ou sob a assistência ou apatia, de pessoas que até se assumem como altruístas, bondosas, santas, humanas, anjos, imaculadas, generosas, insignes, puras, elevadas e heróicas.

Talvez uma leitura da Divina Comédia de Dante ajudasse a compreender os erros deste pensamento maniqueísta, mas se tal não for possível bastará a máxima popular, “de boas intenções está o Inferno cheio”.

Desse modo, colocar o conflito russo-ucraniano – ou, para se ser mais rigoroso, a invasão da Rússia à Ucrânia, porque é disso que se trata – numa esfera simplista, maniqueísta, é esquecer tudo aquilo que sucedeu antes. Até porque esquecer o que aconteceu antes impede compreender o que está a suceder. E o que mais virá.

Para que não seja uma interpretação minha dos acontecimentos, cito a excelente base de dados do Departamento de Pesquisa da Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala, para termos presente o que tem sido a Rússia das últimas três décadas:

“Após o colapso da União Soviética, a recém-criada Federação Russa reprimiu uma tentativa de golpe das forças parlamentares em 1993. Também lutou contra movimentos pró-independência no norte do Cáucaso. No contexto do conflito na Chechênia, iniciado em 1994, o Governo russo usou violência unilateral em grande escala. As brutais guerras chechenas contra a República Chechena de Ichkeria arrastaram-se até 2007, quando o líder da República Chechena de Ichkeria declarou o estabelecimento do Emirado do Cáucaso. No final de 2015, o grupo estava praticamente extinto, com seus membros mortos ou capturados pelas forças de segurança, ou desertando para se juntar ao Estado Islâmico em seu conflito para estabelecer um Estado Islâmico no Cáucaso, que ainda está em andamento como uma insurgência de baixa intensidade.

Os governos da União Soviética e da Federação Russa também forneceram apoio secundário de guerra a vários governos e grupos não estatais na sua esfera de interesse. Tais conflitos incluíram: Irão (1946), Coreia (1949–1953), Tajiquistão (1993–1996), Afeganistão (1979–1988 e 2001), Ucrânia (a partir de 2014 até à actualidade) e Síria (a partir de 2015 até à actualidade)”.

Ou seja, Putin não saiu assim do nada, de repente, de forma surpreendente.

Os conflitos da Ucrânia, associados à Rússia, também não. Não começaram este mês. Se não antes, começaram pelo menos em 2013, nos protestos pacíficos (EuroMaidan) em Kiev que, depois causaram a morte de 88 pessoas entre Janeiro e Fevereiro do ano seguinte.

Sucederam-se depois com a anexação da Crimeia, e com as intermináveis lutas na região de Donbass, que constituíram uma consequência directa da viragem da Ucrânia para o Ocidente, com a participação activa da Rússia.

Os dados da sueca Universidade de Uppsala, do departamento acima citado, ajudam-nos, tristemente, a compreender o caminho até aos dias de hoje, apenas pelo registo detalhado dos eventos e número de baixas nos últimos sete ou oito anos: Donetsk e arredores, 2.618 mortos, Horlivka 140, Debaltseve 238, Volnovakha 720, Ilovaisk 601, Mariupol 200, Hrabove 2.215, incluindo o abate de um avião civil da Malasya Airlines com 298 passageiros e tripulantes, em 17 de Julho de 2014. Os quatro suspeitos, actualmente a serem julgados à revelia na Holanda, têm óbvias ligações à Rússia.

Desde a Crimeia – ou mesmo antes disso –, a Rússia de Putin apenas “sofreu”, como consequência mais nefasta, deixar de ser convidada para as reuniões do G7. Ninguém quis perceber o que estava por detrás da decisão de Putin em descartar há três anos, por completo, uma readmissão a estas reuniões dos orgulhosos países com as economias consideradas mais desenvolvidas do Mundo.

Desdenharam Putin e a Rússia: os livros de História estão cheios de ensinamentos passados sobre o que, em muitos e trágicos casos, resulta disto.

Porém, há quem faça agora de conta que não se estava a ver crescer o “papão”; na verdade, a fazer crescer o “papão”. E que muitos contribuíram para aguçar a vontade do “papão”.

Os supostos e autodenominados altruístas, os bondosos, os santos, os humanistas, os anjos, os imaculados, os generosos, os insignes, os puros, os elevados e os heróis – que assobiaram anos a fio para o ar, enquanto concordavam com os negócios e investimentos da Rússia, aceitando-os como cidadãos de visto gold, graças a investimento sujo, com homicídios e perseguições de Estado –, surgem agora como paladinos da democracia e da paz. E contra o Mal, corporizado em Putin.

Putin é o Mal, sem dúvida. Mas não está sozinho. E, pior, do lado do suposto Bem, está outro mal.

[escrito em minúsculas para que não se queira interpretar, hélas, que estou a colocar tudo ao mesmo nível]

O mal (em minúsculas) está naqueles que agora, céleres, rotulam quem diz “mas” – como já tinham feito durante a pandemia com quem colocava críticas à gestão política – com epítetos, impondo um pensamento único.

person holding umbrellas on road at daytime

Hoje, cada vez mais se nota, que quem disser um “mas” ao conflito da Ucrânia, não seguindo a lógica dos demais, corre o risco de ser olhado de soslaio, de ser ostracizado e renegado.

Eis aquilo que agora temos, enfim, em democracias: paladinos do maniqueísmo. São pessoas que, aproveitando circunstâncias especiais, de emoção, de forte cunho psicológico e atrelados à Comunicação Social – que vê agora a crise ucraniana com o mesmo apetite por clickbaits que usou na pandemia –, promovem em cada indivíduo um futuro sacerdote dogmático.

Um povo que só veja preto e branco, que assimila uma linha narrativa única, sem investigar nem questionar. Obediente.

É esse o nosso mal, que pode medrar até ter um M maiúsculo disseminado por todo o Mundo.

São esses perigosos e nefastos paladinos do maniqueísmo, que encontramos na nossa imprensa, de que o expoente, não sendo isolado, é Helena Ferro de Gouveia, uma persona que se fez administradora caída do céu na Lusa, a agência noticiosa do Estado português.

Ver alguém como ela, a defender num país democrático (e como fez ontem na CNN Portugal), o condicionamento da informação – hoje da Rússia, amanhã, se calhar, cá de dentro, desde que fuja da narrativa oficial –, porque “nem toda a gente tem capacidade e o conhecimento e a literacia mediática para poder desconstruir” uma determinada narrativa externa, é de uma extrema perigosidade para um português, para um democrata, para uma democracia.

Na verdade, estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev, as palavras de Helena Ferro de Gouveia – e de muitos e muitos outros que, na imprensa, defendem as suas teses, incluindo muitos jornalistas – têm trejeitos de Putin.

E têm, porque são estas posturas anti-democráticas, censórias, que alimentaram poderes como os de Putin, que se impôs na Rússia enquanto implantava, em simultâneo, supostas medidas para o Bem Comum contra um “inimigo externo”. E eliminando opositores, em sentido figurado ou literal.

brown tree trunk on brown rock

As palavras de Helena Ferro de Gouveia não são balas nem mísseis, mas corroem uma democracia, sobretudo porque nem são irrealistas. São exequíveis – e foram mesmo agora aplicadas em sites noticiosos (mesmo se propagandísticos da Rússia) –, até porque socialmente aceites em contextos como os que vivemos há dois anos.

Saibamos compreender que a ausência da democracia pode não matar já, como as balas na Ucrânia. Mas mata a prazo. Aliás, como se constata pela invasão decidida por Putin, só possível porque Putin conseguiu manter-se mais de duas décadas no poder de um país com eleições mas nunca sendo um democrata. E conseguiu porque começou por impor uma imprensa condicionada e restrições de acesso à informação.

Ora, Helena Ferro de Gouveia trata de nos dizer que, em Portugal e no Ocidente democrático, a imprensa e a informação devem também estar condicionadas a uma narrativa – aliás, como já esteve durante a pandemia.

E isso é dramático.

Contudo, também muito mais facilmente resolúvel: basta demiti-la da administração de uma agência noticiosa pública, e deixá-la, enfim, manifestar as suas parvoíces antidemocráticas nos canais que lhe derem acolhimento.

Se se fizer isso, pelo menos ficaremos um pouco mais afastados de termos sósias de Putin no mundo ocidental. O mundo não ficará perfeito, como nunca foi, mas um pouco menos imperfeito.

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