VISTO DE FORA

O dia em que pensei que a Argélia era a paragem final

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por Tiago Franco // Junho 5, 2023


Categoria: Opinião

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A minha mãe pergunta-me, com frequência, como é que passo o tempo no ar se tenho pânico de voar. Ao fim de duas décadas dentro de aviões, respondo-lhe quase sempre que, apesar desse medo, ainda maior receio tenho de, por isso, deixar de ver o Mundo.

Por isso, arranjei uma série de rotinas – e que dariam longas sessões no divã de um psicólogo – para continuar a seguir o meu sonho, o sonho de conhecer o máximo possível do Planeta onde nasci.

Dei assim por mim, a pensar nisto, com umas companheiras de viagem na pouco visitada Argélia, de onde vos escrevo agora. Tenho pouca paciência para países que dificultam a entrada com vistos aborrecidos ou idas a embaixadas, mas à medida que o Mundo vai encolhendo a esquisitice diminui.

Por outro lado, tinha uma curiosidade enorme pelo rico património histórico da Argélia. Das cidades coloniais às ruínas romanas, passando pela abertura ao Mediterrâneo e a vastidão do deserto.

A Argélia é o maior país de África, com uma dimensão que cobriria o território entre França e a Lituânia, de Este a Oeste, e entre a Suécia e Itália, de Norte a Sul. Não é um sítio para visitas rápidas, mas tentei chegar ao Norte, Este e Sul. Tentei. E não consegui.

Argel, a caótica capital, parece uma cidade perdida no tempo, entre as decrépitas fachadas coloniais e a modernidade que só chegou no culto do divino.

Nas ruas, vejo homens. Novos e velhos. A trabalhar ou a matar o tempo. Conto pelos dedos as mulheres. Há um conservadorismo que, apesar de tudo, ultrapassa as minhas expectativas iniciais.

Há uma exaltação à Guerra da Independência contra os franceses, e memórias por todo o lado, com destaque para o horripilante monumento aos soldados caídos nessa luta, que do alto da encosta ensombra a cidade. Polícia no local assegura que ninguém lá passa por baixo, evitando uma ofensa que não compreendi.

Um simpático dono de um café dizia-nos que o problema da Argélia eram os franceses, por investirem em Marrocos e na Tunísia, sabotando o turismo no país. A estranha incongruência de não querer o colono por perto, mas não se importar de receber uns Ibis.

De facto, aqui não há grande turismo. Ao fim de quatro dias, não terei visto mais de dez estrangeiros. Nota-se um pouco por toda a parte a falta de hábito de lidar com turistas. Entre os mais velhos ainda se fala francês, já os mais novos parecem fazer a escola em árabe. Inglês é um problema. Andar sozinha, caso sejas uma mulher, também.

Há lixo por todo o lado, menos na imponente e lindíssima Grande Mesquita. A maior de África e a terceira maior do Mundo, com uma beleza arrebatadora e um brilho cuidado que nos permitiria comer no chão. Fico sempre impressionado com as fortunas que países pobres, sejam eles quais forem, gastam na devoção religiosa. Seja qual for a religião, note-se.

A Argélia começa a ficar interessante, verdadeiramente única, quando saímos da capital. A cerca de três horas de carro, para Este, está o complexo romano de Djemila. Uma escavação abandonada pelos franceses a meio da guerra colonial, na década de 60 do século passado, ainda com mais de metade das ruínas por descobrir.

Ainda assim, uma área imensa, com casas, teatros, mercados e templos construídos entre os séculos I e V. Um património classificado pela UNESCO e deixado ao abandono, sem grande protecção para garantir a sua conservação. Casas com mosaicos, ainda intactos do século III são utilizadas como latrinas por visitantes aflitos.

É ver enquanto não destruírem o que falta – foi esta a sensação com que me vim embora. Vi um turista no local.

Constantine, um pouco mais a Este já me encheu mais as medidas. Uma das várias que ficou com o nome do imperador romano, pareceu-me menos caótica e mais acolhedora que a capital Argel. Construída entre dois lados de um desfiladeiro, ficou conhecida com a cidade das pontes suspensas.

Um daqueles sítios onde gostaria de me sentar numa esplanada a contemplar a vista sem ter de beber um sumo cheio de açúcar.

Esta malta sobrevive a laranjada e Coca-Cola, de manhã à noite. Não se degusta um tinto ou uma cevada líquida, nem que chovam canivetes. E como tem chovido, senhores.

Saí do Este para apanhar dois aviões a caminho do deserto, numa zona a sul menos aconselhada para turistas, chamada Ghardaia. A polícia no aeroporto disse-me que não mostrasse aquele cartão de embarque até ser necessário. O sul da Argélia tem zonas de conflito com guerrilhas, e não é, ainda, absolutamente seguro para visita.

No fim do primeiro percurso de avião, um velhíssimo ATR que avistava as montanhas e furava as nuvens como podia, senti-me como uma velha meia colada ao tambor da máquina de lavar. Enquanto ele, o piloto, teimava em não subir mais uns metro, e ia desfazendo nuvens à chapada, eu dizia em voz alta: “sobe esta merda, sobe esta merda!”

Pensei que fosse desta que não chegaria inteiro para escrever o texto de segunda-feira.

No fim, despedi-me da Air Algerie sem aquele abraço nostálgico, e deixei-os a chamar pelo meu nome no segundo voo – onde nunca entrei. Lá chegarei, ao deserto mais a sul, de carro, de camelo ou de bicicleta.

O pânico vence uns rounds, é verdade, mas no fim, e aos pontos, a teimosia vence quase sempre a luta. Importante é seguir caminho. Seja ele qual for, só precisa de ser novo.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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