VISTO DE FORA

O Mediterrâneo que acolha os migrantes

person holding camera lens

por Tiago Franco // Junho 19, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Passava por Lisboa, em trânsito, a caminho dos Açores. O habitual atraso no voo para as ilhas permitiu-me um salto à baixa pombalina para matar saudades.

Não sou um saudosista da Lisboa antiga e abandonada e gosto, gosto mesmo, da mudança que a cidade sofreu neste século. Tropeçava em turistas que tentavam arranhar umas palavras em português para pedir uma bica ou aquele horrível galão depois do almoço. Pareciam felizes a desbravar a encosta do castelo num dia de sol e céu azul.

Uma guia, de bandeira no ar, dizia a um grupo de asiáticos que tinham tido sorte com o tempo… e, por aí, se percebeu que não era destas paragens. Lisboa não tem sorte com o tempo, o tempo é que tem sorte com Lisboa. Céu azul é a prata da casa e o sol esbanja sorrisos em cada mês do ano. Há falta de salário, de consultas, de trânsito fluído. Nunca de sol, céu azul e sorrisos.

a fountain in front of a row of buildings

Na ginja do Rossio há um ajuntamento que me agrada. Novos e velhos, ricos e pobres, portugueses e estrangeiros. Todos bebericam com ou sem elas, sempre em animada cavaqueira. Eu observo, como faço sempre que regresso à colina onde nasci, deliciado com o movimento da cidade e na metrópole cosmopolita em que esta se tornou.

Entre as conversas estridentes, uma chamou-me à atenção. Duas raparigas da minha idade (gosto sempre de achar que são raparigas para não me sentir muito velho) discutiam, com ajuda da terceira ginja, o último naufrágio do mediterrâneo ocorrido na semana passada, junto à costa sul da Grécia, com uma embarcação que se assume ter partido da Líbia, com destino a Itália.

Este tipo de notícias já nos passa uma pouco ao lado e preenche os rodapés dos jornais, entre renovações de jogadores de futebol ou mais um esquema qualquer do PS.

Ainda assim, entre as várias tragédias que aconteceram no Mediterrâneo, um autêntico cemitério de migrantes, este foi um dos piores de sempre na chamada “rota central de migração“, a mais longa e perigosa linha marítima de fuga para a Europa, vinda do norte de África. Quase 80 mortos, vários corpos por recuperar e estima-se que, num barco de pesca, sem capacidade para tal, viajariam 750 pessoas.

calm sea under clear blue sky during sunset

Elas, claramente animadas pelo debate político e pela ideologia exacerbada, diziam, debaixo do seguro céu azul de Lisboa: “que raio vêm eles fazer para cá? Não sabem que a travessia é perigosa e os barcos estão todos partidos?”

Ora, esse é um excelente ponto. O que fará o digníssimo habitante do continente mais a Sul, atirar-se para um barco velho sobrelotado, sem colete ou bote salva-vidas e arriscar uma travessia perigosíssima?

Acrescento ainda, só para aumentar a estupefacção das duas amigas, agora a caminho da quarta ginja: o que fará o migrante atravessar metade do continente a pé, fugir ao controlo dos senhores da guerra e entregar todo o dinheiro que consegue juntar ao longo de anos a quadrilhas que se dedicam ao tráfico de pessoas para… no fim disto, correr o risco de morrer no dito barco?

Não tenho feito muita praia no Sudão e, em Trípoli, também tenho evitado jantaradas com os amigos, mas arriscava, pelo que vou lendo, que a vida é tão má, tão difícil e tão sem esperança, que até a ideia de arriscar uma morte no Mediterrâneo para entrar na Europa pode ser tentadora. É capaz de ser isso.

building with refugees welcome signage

“E mesmo que sobrevivam e que a Meloni não os mande para trás… o que vão eles fazer na Europa?”. Nova interrogação extremamente interessante. O que fará na Europa uma pessoa que a procura para conseguir uma vida melhor? Em princípio… tentar ter uma vida melhor.

Eu entendo que para cada um de nós que nasce num continente com mais oportunidades, normalmente seguro, e com esperança de média vida longa, não faz grande sentido o sacrifício desumano de quem lá tenta chegar. É até difícil simpatizar com tamanho esforço porque não o compreendemos.

O nosso campeonato é outro. Na nossa pirâmide das necessidades já não está o acesso a electricidade ou comunicações, lutas para controlar poços de água, saneamento básico ou três refeições por dia. A nossa batalha está na limpeza das ruas norueguesas, na corrupção finlandesa, na produtividade alemã ou nos salários dinamarqueses. É para aí que olhamos, já não conseguimos perceber a barriga vazia de um puto a fugir de uma guerra no Sudão ou um perseguido pelo regime do Assad em fuga da Síria.

Criticamos o Costa, ficamos irritados com os preços do Pingo Doce, mas jantamos e chamamos nomes a quem queremos enquanto mandamos abaixo nova ginja.

Uma delas, a mais calada, responde à pergunta da que fala mais alto: “o que vêm fazer para cá? Não é óbvio? Vêm atrás do subsídio, de não fazer nenhum e de viver à nossa custa”.

A mais espalhafatosa empolga-se com aquele lançamento de alto teor racista e não perde tempo: “passado um ano, o Costa está a fazer-lhes mesquitas e merdas lá para o Alá e não sei quê! Bem faz a Meloni que os manda de volta. Razão tem o Ventura quando diz que estamos a ser invadidos!”

Dois minutos antes tinha pensado em juntar-me à conversa para perceber a origem das ideias. Gosto de falar com estranhos e discutir ideias pelo simples prazer de aprendermos uns com os outros. Embora o discurso apontasse para aquelas ideias pré-concebidas do mundo cheio de muros, a confirmação surgiu com parangonas de ignorância. Virei a direcção. Não há diálogo possível com quem vê o mundo a duas cores, e fui buscar outra ginja. Desta vez com elas.

Daquelas duas raparigas, extrapolei para os milhões de habitantes neste continente (as eleições na União Europeia assim o indicam) que concordam com elas. Há milhões de pessoas a fugir da guerra, da fome e da perseguição política, do médio oriente (Palestina, Síria) à África central. Milhares morrem anualmente nas malhas dos gangues do tráfico humano e fazem do mar predilecto dos europeus para férias, um autêntico cemitério, sem que organização alguma consiga sequer estimar o número de migrantes engolidos pelo Mediterrâneo.

italy, cala gonone, air

A calamidade é de tal forma grotesca que os governos europeus, líderes de populacões envelhecidas, antes de se preocuparem em salvar esta gente, chutam responsabilidades de um lado para o outro, deixando-os à sua sorte e fazendo o possível para que não entrem.

Meloni culpa Macron, os gregos culpam os turcos, Malta culpa quem invadiu a Líbia. Os desgraçados continuam a morrer, em barcas velhas, pensando que têm o direito de tentar fugir à morte certa nos países de origem.

No fundo, é isso: os migrantes acham-se no direito de fugir à morte, arriscando para isso morrer. E nós, por cá, nem a simpatia já temos para dar. O sofrimento alheio é-nos banal, debaixo do nosso céu azul não há espaço para refugiados que não venham do Donbass. O mediterrâneo que os acolha.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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