Governo invoca transparência mas defende cada vez mais obscurantismo

Governo quer que todos os documentos feitos e trocados entre os seus membros sejam secretos

por Pedro Almeida Vieira // Junho 20, 2023


Categoria: Exame

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O secretismo da actividade do actual Governo, que festejará no próximo ano, o cinquentenário da Democracia, está a intensificar-se. Numa contra-alegação de um processo de intimação do PÁGINA UM, através do seu FUNDO JURÍDICO, intentado no Tribunal Central Administrativo Sul, a Presidência do Conselho de Ministros defende que todos os documentos elaborados pelos seus serviços e a troca de documentação entre membros do Governo, e também com o Presidente da República, devem ser considerados documentos de natureza política. Desse modo, pretendem que fiquem excluídos das obrigações da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.


O Centro de Competências Jurídicas do Estado – um “gabinete jurídico de luxo” da Presidência do Conselho de Ministros – considera que “os ofícios, cartas e outros documentos trocados e elaborados no seio do Governo ou entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República e os respetivos Gabinete e Casa Civil não são passíveis de acesso ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos”.

Esta interpretação – que pode significar dificuldades acrescidas de acesso a documentos governamentais – consta das contra-alegações do Governo apresentadas no Tribunal Central Administrativo Sul no decurso de uma intimação do PÁGINA UM para aceder ao inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues. O PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que estranhou que um inquérito apresentado como um sinal de “transparência do Governo” sobre os seus membros, após um conjunto de escândalos, fosse classificado como “secreto”.

Este professor do Instituto Superior de Agronomia foi a primeira (e até agora única) pessoa a ser abrangida por uma Resolução de Conselho de Ministros de Janeiro deste ano, que passou a exigir a entrega de resposta a um conjunto de 36 quesitos. Sem essa entrega, a pessoa convidada não poderá ser aceite como membro de Governo, mas o diploma legal – que vincula um particular, que tem assim de cumprir uma norma – considera que a informação é classificada como “Nacional Secreto”, invocando legislação que se aplica a casos de segurança de Estado ou de aliados.

Ironicamente, o inquérito que o Governo não quer ceder ao PÁGINA UM resulta de uma Resolução do Conselho de Ministros que, logo no preâmbulo, relembra que “o Programa do XXIII Governo Constitucional realça a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático“. E acrescenta, a seguir que “tal aconselha que o escrutínio a que aqueles titulares devem ser sujeitos para integrarem o Governo, no âmbito do processo de avaliação política que precede a respetiva nomeação, seja reforçado.” Só que o reforço é falacioso. Não só o Governo esconde os inquéritos como garante a sua destruição se o governante foi destituído ou se não tomar posse.

Trecho da contra-alegação do Governo em defesa do obscurantismo. Tribunal Central Administrativo Sul determinará se esta tese, em vésperas do 50º aniversário da democracia, vence.

Em sede de primeira instância, o Governo conseguiu que uma juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa considerasse que os documentos associados, mesmo se indirectamente, à constituição do Governo eram apenas documentos políticos, e não documentos administrativos contendo decisões políticas, concluindo que assim o Governo não teria de ceder o acesso ao documento por este não estar abrangido pela Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. O PÁGINA UM contestou essa interpretação por considerar que um acto político, que é conceito muito abrangente, assume também um acto administrativo se efectivado em documento físico ou suporte análogo em cumprimento de uma norma legislativa.

Mas agora, em sede de recurso, o Governo aparenta querer ir ainda mais longe – e até porventura criar jurisprudência –, ao defender que todos os documentos elaborados no seio do Governo, incluindo correspondência entre ministros, secretários de Estado e até Presidente da República fiquem no segredo dos deuses. No limite, o acesso a qualquer relatório técnico, contendo matérias politicamente sensíveis, poderia passar a ser negado pelo Governo invocando que se trataria de um documento político.

Recorde-se que a lei considera que um documento administrativo é “qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades” públicas, incluindo Governo, “seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material”, não fazendo referência ao tipo de decisão ou matérias que contenha.

Existe apenas um artigo que exclui determinados documentos da esfera públicas, em concreto “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – daí que, por exemplo, as famosas notas de Frederico Pinheiro não são documentos administrativos, pelo que o acesso público pode ser vedado –, “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação” e ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português.”

Não parece ser esse o caso de um inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues, ainda mais sabendo-se que, no momento em que o actual secretário de Estado o entregou, era ainda um simples cidadão sem cargo político, e que estava apenas a cumprir o estatuído num diploma legal, criado por… uma decisão política em prol da transparência.


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