Isenções fiscais exigem transparência, mas Governo fecha olhos

Associação Sara Carreira: sem sequer mostrar contas, Tony Carreira saca estatuto de utilidade pública em três tempos

por Pedro Almeida Vieira // Junho 22, 2023


Categoria: Exame

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Por regra, exige-se, no mínimo, três anos de actividade efectiva e a máxima transparência financeira para uma associação obter estatuto de utilidade pública. Não é apenas por reconhecimento que todos o almejam. Na verdade, por detrás, há um vasto leque de isenções fiscais, desde IMT e IMI até IRC, passando pelo não pagamento de diversas taxas. Por isso, a lei exige, entre outros requisitos prévios, que sejam públicas as contas e os relatórios de actividade. Mas com estatutos blindados, a Associação Sara Carreira não precisou disso: conseguiu o ambicionado estatuto em menos de dois anos e sem mostrar contas, contrariando a Lei-Quadro. Assim, no meio de cantorias em prol de uma causa nobre, não se conhece o seu património (e eventuais transferências para benefícios fiscais), nem sequer as receitas nem os gastos nas acções de beneficência. Tudo é feito na base da confiança. E quando o PÁGINA UM pediu contas e esclarecimentos, não houve sequer um acorde.


A Associação Sara Carreira – criada em Março de 2021, em memória da filha do cantor Tony Carreira, três meses após o seu trágico acidente mortal – viu o Governo conceder-lhe o estatuto de utilidade pública em tempo recorde, mesmo mantendo as suas contas secretas, o que contraria a lei. Além disso, os estatutos, entretanto alterados em Maio do ano passado, estão blindados, condicionando, de forma discricionária, a admissão de associados em função de donativos relevantes que nem sequer são definidos.

Além do reconhecimento, a obtenção de estatuto de utilidade pública – uma meta que qualquer associação almeja – concede um vasto conjunto de isenções fiscais, designadamente do pagamento de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e, no caso concreto da Associação Sara Carreira – que desenvolve a sua actividade de angariação de fundos da realização de espectáculos –, isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos.

Tony Carreira

Embora a lei determine que, regra geral, como requisitos para a atribuição daquele estatuto, seja necessário um período mínimo de três anos de actividade efectiva, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, achou que se poderia dispensar esse prazo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”. E, assim sendo, fez um despacho em 21 de Dezembro do ano passado concedendo o estatuto – ou seja, quando faltava ainda um ano e três meses para perfazer o período normal.

A favor desta aceleração do processo estiveram também os pareceres das autarquias de Almada, onde se localiza a sede da associação, e de Pampilhosa da Serra, concelho de onde é natural Tony Carreira, de seu nome verdadeiro António Manuel Mateus Antunes.

Porém, todos fecharam os olhos a aspectos relevantes que, mais do que constituírem requisitos legais, consubstanciam uma postura de transparência perante a sociedade que concede benefícios fiscais que podem assumir valores consideráveis.

Tony Carreira, com os seus filhos David e Mickael. Juntamente com a ex-mulher Fernanda Antunes, criaram a Associação Sara Carreira em Março de 2021, com estatutos blindados.

Com efeito, entre os requisitos prévios, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública obriga que as associações que o solicitem “tenham uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

Ora, mas além do facto de a Associação Sara Carreira não ter ainda cinco anos de existência, nunca foi publicado relatório de actividade e de contas, com as demonstrações financeiras, incluindo o balanço e as demonstrações de resultados, mesmo se os estatutos até já determinam expressamente essa tarefa. Nunca houve assim qualquer sinal dos rendimentos nem das despesas, nem se conhece se algumas das actividades empresariais dos sócios fundadores (Tony Carreira e sua ex-mulher, Fernanda Antunes, que preside, e os seus filhos David Carreira e Mickael Carreira) foram ali integradas para beneficiar de isenções fiscais.

Certo é que, consultando o site da Associação Sara Carreira, observa-se uma forte componente comercial, com uma ligação directa para uma loja de merchandising e para o catálogo de roupa Éssê by Sara Carreira, que a malograda artista lançara em Outubro de 2021.

No site da Associação Sara Carreira sabe-se quanto custa umas cozy white sweatpants, mas nada se sabe sobre as contas como exige a lei para a atribuição do estatuto de utilidade pública.

Até as actividades de carácter mais benemérito estão envoltas em grande secretismo quanto à parte económica e financeira, mesmo contando com a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander, a SIC e o Grupo DS, além de apoios de 12 empresas e parcerias com outras seis, entre as quais, ironicamente, a PWC, que presta serviços profissionais de auditoria, fiscalidade e assessoria de gestão. Com efeito, mesmo no projecto mais conhecido publicamente desta associação – as Bolsas de Estudo Sara Carreira – ignora-se os montantes efectivamente distribuídos.

Embora a associação, no seu site, refira que nas duas primeiras edições houve 35 jovens beneficiados, estando a decorrer a análise das candidaturas à terceira edição, nunca houve a mínima referência sobre os montantes atribuídos. No regulamento apenas se refere que “o valor atribuído a cada jovem bolseiro(a) será definido pela Direção da Associação [Sara Carreira], em função das necessidades do(a) mesmo(a)”, adiantando ainda que “os critérios e entrega dos valores, variam em função das especificidades e necessidades de cada candidato(a)”.

Por fim, acrescenta-se que “os valores atribuídos serão entregues diretamente às instituições de ensino ou a outras entidades a definir pela Direção, atendendo à especificidade da formação e necessidades.” Em suma, nenhuma menção a valores concretos.

André Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, concedeu despacho de atribuição de estatuto de utilidade pública sem exigir transparência à Associação Sara Carreira.

Além de tudo isto, e atendendo aos benefícios do estatuto de utilidade pública, mas perante o secretismo (ilegal) das contas da Associação, também se desconhece quais são actualmente os activos da associação, incluindo património financeiro e imobiliário eventualmente transferido da família de Tony Carreira. Como existe um controlo absoluto na entrada de associados por parte da família Antunes (que tem esmagadora maioria na direcção), a Associação – que pode vir a evoluir para fundação – pode estar a ser um veículo para benefício de isenções fiscais relevantes, sobretudo se se mantiver o seu estatuto de utilidade pública sem exigência de apresentação pública de relatórios de contas.

O PÁGINA UM contactou por duas vezes a Associação Sara Carreira, colocando um conjunto de questões relacionadas com estes assuntos, mas não obteve qualquer reacção. O mesmo sucedeu com um pedido de esclarecimento endereçado ao secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas. Foi, aliás, pedido ao governante que indicasse outras associações que tivessem conseguido obter o estatuto de utilidade pública em menos de três anos, um feito que Tony Carreira conseguiu para a associação em memória da filha, sacando assim apetecíveis benefícios fiscais.

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