No dia 6 de Fevereiro deste ano, a partir da madrugada, uma sucessão de sismos devastou a Turquia e a Síria, fazendo 60 mil vítimas mortais e centenas de milhares de pessoas ficaram desalojadas. Mais de quatro meses depois, o jornalista esloveno Boštjan Videmšek, várias vezes premiado por reportagens em ambiente de guerra e em contexto de migrações e refugiados, relata como agora ali se vive, se (sobre)vive após o colapso da Natureza ter transformado vidas e casas em destroços e pó. Esta reportagem foi também publicada no jornal esloveno DELO.
“Foi o pior pesadelo. Um horror absoluto. Assim que o tremor começou, fugimos lá para fora, onde estava a chover fortemente. Estava frio e bastante escuro. As pessoas gritavam por toda parte. Foi hora após hora, como se fosse o apocalipse”, diz Maryem Kalkan, de 54 anos, num assentamento de tendas formado na esteira do terremoto, num pequeno parque nos arredores de Antioquia, numa província turca de Hatay.
Com o amanhecer, Maryem pensou que o pior já tinha passado. Algumas horas depois, o chão tremeu de novo.
Antioquia e toda a província de Hatay foram as regiões mais devastadas. O centro antigo da cidade ficou quase totalmente arrasado. Os blocos de apartamentos mais recentes desabaram como se feitos de papelão. Uma cidade maravilhosa de grande património cultural acabou dizimada. E com ela, milhares e milhares de vidas.
Oficialmente, o terramoto de 6 de Fevereiro passado, que atingiu o sudoeste da Turquia e uma parte do noroeste da Síria, provocou mais de 55 mil mortes. Várias dezenas de milhares de pessoas ficaram feridas. Três milhões perderam as suas casas. De acordo com a Direcção-Geral das Operações Europeias de Protecção Civil e Ajuda Humanitária, o terramoto afectou diretamente mais de nove milhões de pessoas espalhadas por onze províncias.
Quando a primeira ajuda humanitária chegou ao norte da Síria, com uma semana de atraso, as pessoas ainda tiveram de passar por pior. Muitas foram forçadas a tentar desenterrar os seus parentes com as próprias mãos. Mesmo agora, os sobreviventes dependem inteiramente da ajuda humanitária.
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Após o terramoto, nos primeiros dez dias, Maryem Kalkan e os seus familiares dormiram ao relento. Demorou algum tempo até ela perceber, em pleno, a extensão da catástrofe. Depois de uma semana, uma equipe de resgate desenterrou o cadáver de seu pai. Em seguida, o marido da sua filha grávida foi encontrado, também morto.
Maryam tentou descrever suas perdas com o estoicismo de uma sobrevivente. Mas as lágrimas rapidamente a dominaram.
A sua casa, no bairro de Defne, ficou muito danificada. “Está a desmoronar-se lentamente”, relatou. “Mais tarde ou mais cedo, as autoridades locais vão, por certo, derrubá-la; está perdida para sempre”.
Só em Antioquia, cerca de 20 mil casas e edifícios foram arrasados ou se tornaram inabitáveis para sempre. Retroescavadoras ainda estão peneirando o que resta da cidade. Em frente às suas casas danificadas, os sobreviventes estão a retirar os escombros, como se se estivesse a concretizar o mito de Sísifo, sabendo muito bem que as autoridades destruirão um dia aquilo que resta. Crianças vasculham os destroços. Antigas carroças puxadas por mulas são agora carregadas com pertences que, pelo menos, possam parecer úteis.
Como a paisagem, o ambiente urbano ficou completamente alterado.
Agora, Antioquia está repleta de crateras, como se bombardeada até quase ao esquecimento. O centro da cidade lembra muito o oeste de Mossul, no Iraque, depois de o Estado Islâmico e as forças do Governo iraquiano se enredarem num turbilhão de destruição. Dezenas de automóveis, dobrados e retorcidos fora de forma, estão espalhados ao longo das bordas daquilo que eram estradas de asfalto.
Em cada passo, arriscamo-nos a tropeçar noutra pilha de betão e ferragens, ou a sermos atropelados por um camião-cisterna que atravessa tudo, tentando desesperadamente fornecer água potável onde é mais necessária.
Enormes cães famintos estão vagueando neste cenário pós-apocalíptico, em busca de comida. Mas a sua inteligência não está à altura dos gatos, que agora também têm a vantagem em número.
Um profundo sentimento de trauma
Na província de Hatay, cerca de 40 mil empresas encerraram temporária ou permanentemente por causa do terramoto. O desemprego colectivo está na ordem do dia. O famoso bazar de Antakya também ficou destruído, tendo sido transferido para os arredores da cidade. O antigo local está agora cheio de contentores azul-claro para alojamento.
Tudo isto é como se o Ano Zero tivesse sido declarado em todas as regiões do sudoeste da Turquia. Grande parte da sua história física foi apagada, e um sentimento de temporariedade é agora evocado em cada passo.
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“Agora, já não nos sentimos mendigos quando recebemos ajuda. De alguma forma, resignámo-nos por termos perdido tudo”, lamenta Maryem Kalkan, em frente à sua barraca, no calor escaldante da tarde. Como a maioria, ela perdeu as suas perspectivas em redor da casa e do emprego, tornando-se integralmente dependente da ajuda humanitária.
As equipas humanitárias locais e internacionais fornecem às vítimas, com regularidade, alimentos, água e medicamentos às vítimas. Infelizmente, o auxílio disponível não é suficiente para ajudar todos. A crise é demasiado vasta. “A necessidade de ajuda é estupenda e incontrolável«, afirma Ali Fuah Sütlü, diretor de programa da organização humanitária Concern.
“Todos aqui compartilhamos a mesma experiência«, diz Maryem. “O terramoto não escolheu as suas vítimas, por isso partilhamos agora um forte sentido de solidariedade.”
Antes do cataclismo, Maryam ganhava a vida como cozinheira, empregada de limpeza e colectora de nozes. Em frente à tenda, esteve acompanhada pelo irmão, que não largava um doberman que choramingava. Ambos pareciam inflexíveis e não tinham qualquer intenção de se mudarem para os colonatos de contentores.
Despontadas em toda a zona sinistrada, estas colónias albergam agora cerca de 600 mil pessoas. O resto das vítimas – ou seja, mais de dois milhões de pessoas – vive em acampamentos. As razões desta opção vão desde o medo em habitar num espaço confinado até à esperança de poderem regressar às suas casas, se o processo de reconstrução for rápido. Tanto nos contentores como nas tendas reina um profundo sentimento de trauma. Há muita luta diária pelo espaço íntimo e os receios de violência e doença são elevados.
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“Já não me atrevo a entrar numa casa. Qualquer casa. Assim que tento, entro em pânico. Não consigo evitar. Começo a pensar que o chão pode tremer novamente. Acho que tem muito a ver com as constantes réplicas. Há também muitos saques e destruição em toda a cidade. Pelo menos aqui, nas tendas, estamos seguros. E o mais importante, estamos juntos«. Maryem Kalkan conclui assim a nossa conversa, enquanto o ar em frente à sua tenda se enchia com o cheiro de pão recém-cozido.
Começar do zero
Seren Reyhangoulari, de 23 anos, também garantiu que ela e a sua família alargada de 35 pessoas não tencionam mudar-se para os contentores, cujos habitantes parecem condenados a permanecer lá pelo menos durante os próximos anos.
“Aqui, nas tendas, estamos juntos”, conta a mulher de cabelo negro. “E queremos mesmo ficar juntos; é a única coisa que nos resta – uns aos outros!”
Antes da convulsão, Seren trabalhava como professora numa escola privada. Agora, nem um único dos seus familiares que se amontoam com ela nos arredores de Antioquia tem emprego. Sobrevivem à custa de ajuda social e humanitária e estão amontoados em seis tendas. Mas, comparadas com um mero lençol de plástico arrancado de uma casa de jardinagem local, as tendas quase parecem um luxo.
“Tivemos de esperar muito tempo por estas tendas e pelos primeiros socorros”, recorda Seren. “Como não somos do centro da cidade, e como recusamos mudar para os contentores, parece que fomos esquecidos. A casa onde eu vivia está apenas moderadamente danificada e pode ser reparada. Mas onde é que vamos arranjar o dinheiro? Ser-nos-ia pedido que contribuíssemos com 40% dos custos, o que significa que todos nós teríamos de nos endividar durante várias gerações”, diz.
As palavras saem em catadupa da boca de Seren, que apanhou o terramoto enquanto andava de autocarro. O acontecimento deixou-a profundamente traumatizada. A sobrinha teve as duas pernas amputadas. Todos perderam familiares, vizinhos e amigos. Seren também se juntou à longa lista de pessoas que já não se atrevem a entrar em qualquer tipo de edifício.
Mas mesmo que Seren fosse psicologicamente capaz de encontrar uma nova casa, não tinha dinheiro para a comprar. Após o terramoto, as rendas locais aumentaram até quatro vezes. Aquilo que se pode chamar de “Economia de Guerra” está em pleno andamento.
Há também que ter em conta a crise económica geral com que a Turquia se estava a debater nos últimos anos. Depois de espantosos aumentos de 88% nos preços em 2022, a inflação deste ano está, por agora, estimada em 44%. A maior parte das poupanças já foi varrida, enquanto os preços dos alimentos continuam a disparar.
Como sempre, o peso do colapso económico é suportado pelas componentes mais vulneráveis da sociedade. Nas zonas afectadas pelo cataclismo, o trabalho clandestino é agora muito escasso, apesar de constituir normalmente uma parte muito importante da Economia turca. Não há trabalho, a não ser em projectos de demolição e de limpeza. Mas estes pertencem a empresas privadas experientes, com fortes ligações às autoridades locais e centrais.
Para piorar, nos meses que se seguiram à convulsão, várias centenas de habitantes da província de Hatay receberam uma mensagem de texto das autoridades, informando-os de que um decreto presidencial lhes tinha confiscado os terrenos, pelo que deviam sair imediatamente. Tudo em nome da renovação.
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“As nossas vidas desapareceram. Tudo mudou. Todos nós, aqui, estamos a começar do zero. As nossas personalidades também mudaram. Agora, sou muito mais temperamental, irrequieta e agitada”, continuou Seren Reyhangoulari.
Ao seu lado, estava sentada a sua parente Feride, que se encontrava na fase final da gravidez. Faltando apenas sete dias para a data do parto, afogava-se lentamente em ansiedade.
Feride sabia que a sua vida iria, por certo, tornar-se ainda mais difícil. Mas mesmo depois do parto, não tinha qualquer intenção de se mudar para os contentores.
“Vamos ficar juntos”, insistiu ela, enquanto gatos e galinhas continuavam a passear à volta das tendas doadas pela China e pelo Paquistão. “Só posso esperar que as autoridades ajudem a melhorar as nossas condições de vida. Aqui, vemos cobras a toda a hora! As crianças estão aterrorizadas. Gritam e choram. Estamos todos cobertos de picadas de insectos. Só há pouco tempo é que temos uma casa de banho portátil, mas ainda não está ligada aos esgotos. Mas há muitos que estão ainda pior do que nós”.
Duplamente vitimados
Infelizmente, Feride tem razão. O terramoto de Fevereiro também afectou brutalmente quase dois milhões de refugiados sírios. Quando estavam finalmente a recompor-se, depois de fugirem de uma guerra particularmente selvagem, as ondas de choque fizeram-nos cambalear. E, sem mais nem menos, voltaram a agarrar-se à vida.
“Para mim, o terramoto foi um momento de medo e de morte. No meu bairro, várias casas foram destruídas. Felizmente, a nossa só ficou danificada. Agora, sobrevivi a um bombardeamento e a um terramoto. Deve significar que tenho de ter um futuro”, explicou calmamente Abdul Hakin, um rapaz de quinze anos.
Conheci Abdul no centro do Projeto Nacional Sírio de Próteses de Membros em Reyhanli, mesmo ao lado da fronteira com a Síria. Em 2013, o bonito e desgrenhado adolescente perdeu as duas pernas num ataque aéreo das forças governamentais sírias nos arredores de Hama. Uma das suas pernas teve de ser amputada abaixo da cintura e a outra abaixo do joelho.
Após o ataque, que custou a vida a seu pai, Abdul e a mãe, gravemente ferida, foram levados para a Turquia. Foram necesários dois anos para lhe ser entregue um par de próteses. No centro, gerido pela organização Relief International, Abdul reaprendeu a andar e terminou a escola primária.
Foi então que surgiu o choque da pandemia da covid-19.
De acordo com o seu psicoterapeuta, a falta de contacto social mergulhou o rapaz numa grave depressão. Esmagado pelos seus traumas, Abdul começou a ter ataques de pânico. Pôs a um canto as duas próteses que lhe permitiam viver uma espécie de normalidade. A mãe, que também tinha recuperado na Turquia, já não o conseguia fazer sair do apartamento alugado. O rapaz deixou de estudar e de ir à fisioterapia.
Depois, o chão começou a tremer. A mãe, os irmãos e as irmãs de Abdul conseguiram, de alguma forma, tirá-lo do apartamento. Passaram os dias seguintes à espera de ajuda, nas ruas frias e húmidas. Um tio, que vinha de carro da devastada Antioquia, acorreu em seu socorro. Trouxe ajuda e mudou-se com a família para o seu apartamento, que ficou apenas um pouco danificado.
Nas palavras do próprio Abdul, o terramoto acordou-o, tirou-o da sua espiral descendente. Apercebeu-se de que as suas decisões imprudentes, no rescaldo da pandemia, poderiam ter-lhe custado a vida. Por isso, retomou o uso das suas pernas protéticas e voltou a frequentar a fisioterapia.
“Também quero muito retomar os meus estudos. Um dia, gostaria de ser arquiteto, como o meu tio. O meu desejo é construir casas para as pessoas. E também hospitais e escolas!” Abdul sorriu, pouco antes de nos despedirmos.
Um enorme fracasso de solidariedade
Após o terramoto, a grande maioria dos refugiados sírios teve de se deslocar para as cidades de tendas informais que surgiram nas cidades e aldeias, sobretudo como resultado da improvisação e da pura vontade de sobreviver. No entanto, quatro meses e meio depois, nada indicava que a situação dos refugiados estivesse a melhorar.
De facto, é precisamente o contrário. Cerca de 99% das pessoas colocadas em contentores pelas autoridades eram de origem turca. Os refugiados sírios podem, de facto, candidatar-se à interminável fila de espera. Mas as nossas fontes nas fileiras humanitárias disseram-nos que os sírios não tinham praticamente nenhuma hipótese de entrar num dos contentores.
A escassez de contentores marca um enorme fracasso na solidariedade do Governo turco para com os refugiados. Assim, os pobres sírios foram obrigados a aguentar ao ar livre, enfrentando todo o tipo de condições climatéricas e sendo ameaçados de expulsão pelo candidato presidencial da oposição, Kemal Kılıçdaroğlu, durante a sua campanha infamemente racista.
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Uma das cidades mais duramente afectadas pelo terramoto foi Nurdağı, na província de Gaziantep.
Uma grande parte da cidade foi destruída, e é certo que permanecerá inabitável nos próximos anos. Mas na altura da nossa visita – ainda com ferro, betão e pertences das vítimas espalhados por todo o lado –, o mais devastado dos bairros de Nurdağı já ostentava um par de negócios grotescamente iluminados. Um era um salão de beleza; o outro uma concessionária de ouro.
Um grande número de residentes foi deslocado para a enorme cidade de contentores situada no topo de um planalto próximo. Chegámos à povoação quando o ano lectivo estava a entrar na sua última semana. Com uma série de workshops psicossociais para crianças em idade escolar a decorrer, o planalto fervilhava de risos.
O primeiro grupo de crianças tinha acabado de enviar para o céu alguns aviões de papel, depois de ter escrito os seus maiores medos na parte que formava as asas laterais dos aviões.
“Queremos que elas saibam que o medo não é para sempre”, explicou Gizem Özgün, oficial protector das crianças da UNICEF. “E também que a sua dor não é para sempre. A maioria destas crianças está profundamente traumatizada. Recusam-se a entrar em edifícios. Na verdade, é muito difícil fazê-las ir a qualquer lado! Temos visto muitos casos de depressão, ansiedade, xixi na cama, insónias, distúrbios alimentares e agressividade. É ainda pior com os adolescentes, que não puderam voltar à escola, uma vez que todas as escolas secundárias foram destruídas.”
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“Qual é o teu maior medo?” perguntei a um rapazinho com uma camisola de futebol do Karim Benzema.
“Terramoto!”, sorriu o rapaz. “Mas os professores disseram-me que hoje todos os meus medos voaram para cima e para longe!”
Enquanto me contava isto, conseguiu finalmente o que andava a tentar fazer há muito tempo: lançar um papagaio de plástico para o céu. Nele, tinha recebido instruções para escrever todos os seus desejos mais queridos.
Disse-me que só tinha escrito um: “Acabaram-se os terramotos!”
Fotografias: Diego Cupolo/EU Humanitarian Aid