O PÁGINA UM consultou em detalhe as contas dos grupos parlamentares dos últimos cinco anos e detectou que a maioria não regista quaisquer gastos com pessoal, incluindo o do Partido Socialista. No total, as subvenções públicas exclusivas para o regular funcionamento dos trabalhos parlamentares, distintas da subvenção por votos nas eleições, ultrapassaram os 4,5 milhões de euros entre 2018 e 2022, mas quase tudo acabou gasto num enigmático “fornecimentos e serviços externos”. Curiosamente, o grupo parlamentar do PSD até foi aquele que assume ter gasto dinheiro com assessoria própria (cinco mil euros, em média anual). Paulo Morais, uma das mais reconhecidas vozes no combate à corrupção em Portugal, diz que o alegado desvio de verbas dos grupos parlamentares para os respectivos partidos é apenas a “ponta do iceberg”. Já o economista João Duque, presidente do ISEG, condena que a imprensa tenha sido avisada para presenciar as rusgas a Rui Rio.
Zero euros. É esta a verba registada por quase todos os grupos parlamentares dos diversos partidos na rubrica “Gastos com o pessoal” nos últimos cinco anos, incluindo o do Partido Socialista (PS). De acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM às contas dos grupos parlamentares depositadas na Entidade das Contas e Financiamentos Públicos – um órgão independente que funciona junto do Tribunal Constitucional –, apenas o Partido Social Democrata (PSD), com um total de 25.690 euros, e o Bloco de Esquerda, com 3.500 euros, contabilizaram pagamentos a seus funcionários parlamentares. Os restantes partidos não atribuem gastos com pessoal nas suas contas parlamentares, que têm um regime contabilístico autónomo ao dos próprios partidos.
A lei do financiamento dos partidos políticos estipula que “a cada grupo parlamentar, ao deputado único representante de um partido e ao deputado não inscrito em grupo parlamentar da Assembleia da República é atribuída, anualmente, uma subvenção para encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento“, que corresponde a quatro vezes o indexante dos apoios sociais (IAS). Ou seja, este ano por cada deputado, o grupo parlamentar recebe cerca de 1.922 euros.
No caso dos partidos com maior representatividade parlamentar, estas subvenções podem ser significativas. No último quinquénio, onde se apanharam três legislaturas, o PS recebeu quase 1,8 milhões de euros para encargos de assessoria aos deputados, enquanto o PSD arrecadou um pouco mais de 1,5 milhões de euros. Ou seja, as médias anuais estiveram sempre acima dos 300 mil euros, o que possibilitaria o pagamento de salários de assessores parlamentares fixos.
No caso dos outros partidos, os montantes destas subvenções parlamentares são muito mais reduzidas. Por exemplo, o Bloco de Esquerda recebeu cerca de 422 mil euros no último quinquénio – mas viu a subvenção cair para apenas 58 mil euros em 2022 com a perda de deputados nas eleições do ano passado, enquanto o PCP – rondou os 317 mil euros, estando a receber no último triénio menos de 60 mil euros por ano.
Os restantes grupos parlamentares têm valores ainda mais baixos, mesmo o Chega, que reforçou a sua presença parlamentar em 2022, mas que mesmo assim só recebeu no ano passado 61.250 euros de subvenção para assessoria na Assembleia da República.
Mas se formalmente os grupos parlamentares dos distintos partidos não têm assessores a ser pagos com estas subvenções, o dinheiro acaba por “voar” para outras paragens, uma vez que os partidos não podem fazer transferências de “lucros” no final de cada ano, como sucede nas empresas. E o expediente mais utilizado tem sido, invariavelmente, o “fornecimento e serviços externos”, uma rubrica contabilística onde cai todo o tipo de despesas.
De acordo com a consulta do PÁGINA UM, no último quinquénio, 86% do total subvenções públicas aos grupos parlamentares serviram afinal para pagar a fornecedores e serviços externos, que podem, nestes casos, incluir os próprios partidos e respectivos funcionários, uma vez que são entidades contabilisticamente independentes. Aparentemente, parece ser esse o caso que levou às 20 buscas da Polícia Judiciária desta semana ao PSD, incluindo à residência do seu ex-presidente, Rui Rio.
No caso do PSD, os fornecedores e serviços externos “desviaram” 1,34 milhões de euros no último quinquénio, ou seja, 89% da subvenção parlamentar. Por esse motivo, o grupo parlamentar do PSD até apresenta um prejuízo acumulado de 31 mil euros nos últimos cinco anos.
Embora relativamente mais baixo, o uso do expediente dos fornecedores e serviços externos é também bastante usado pelo PS. Entre 2018 e 2022, 80% das verbas da subvenção parlamentar serviram aquele propósito, não havendo assim qualquer gasto com pessoal parlamentar, mesmo se há assessores do partido a trabalharem no Parlamento.
Nos pequenos partidos, até há casos curiosos, como os do Bloco de Esquerda e do Chega. No último quinquénio, os bloquistas têm estado a suportar, através da subvenção ao grupo parlamentar (421.755 euros), montantes superiores para pagamento a fornecedores e serviços externos (460.680 euros, no total). Daí apresentarem um prejuízo acumulado de 44.803 euros.
No caso do Chega – que com André Ventura como candidato único até chegou ao fim de 2021 com um lucro de cerca de 48 mil euros –, no ano passado o desvio para alegados pagamentos a fornecedores e serviços externos disparou para os 104 mil euros (tinha sido de apenas 11 mil euros no ano anterior), o que poderá indiciar uma “descapitalização” do fundo destinado à assessoria parlamentar.
Apesar da contabilidade ser independente – e da existência de inúmeros casos polémicos no Brasil com assessoria-fantasma, envolvendo mesmo Jair Bolsonaro e também um dos seus filhos –, o Presidente da República veio, entretanto, tentar menorizar o assunto, defendendo que os grupos parlamentares também são “órgãos dos partidos”, considerando ser uma prática legal o desvio das subvenções parlamentares para uso partidário. Mas subsistem dúvidas quanto à legalidade do desvio de verbas.
“Marcelo Rebelo de Sousa fez essas declarações, não para colocar água na fervura, mas para se acautelar, porque sabe como era quando foi presidente do PSD”, diz Paulo Morais, presidente da Frente Cívica e um dos principais rostos do combate à corrupção em Portugal.
Para Paulo Morais, este alegado uso de verbas dos grupos parlamentares pelos partidos “é apenas a ponta do iceberg” em termos de irregularidades que existem em torno do financiamento dos partidos.
Em todo o caso, para o economista João Duque “será difícil provar de onde as verbas foram gastas” porque “o dinheiro não tem cara”. O também presidente do ISEG condena, sobretudo, o facto de ter sido avisada a imprensa para presenciar e noticiar as buscas a Rui Rio. “É algo de inaceitável, seja com Rui Rio ou com quem for”, lamentou.
Ao que o PÁGINA UM observou, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos nunca fez nenhum alerta ou recomendação aos partidos no sentido de não utilizarem verbas dos seus grupos parlamentares para gastos com pessoal nos próprios partidos, nem nunca estranhou o peso demasiado elevado da rubrica dos fornecedores e serviços externos. Contactada, esta entidade presidida pela juíza conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros não respondeu ainda às questões do PÁGINA UM até à hora da publicação desta notícia.