VISTO DE FORA

O (alegado) gamanço de Armando e a justiça poética sobre Drahi

person holding camera lens

por Tiago Franco // Julho 24, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Quanto mais leio sobre Armando Pereira, o co-fundador da Altice, mais aprecio este magnífico enredo. Começo pelo fim, pelo extraordinário Bugatti Centodieci. Um carro de luxo, raríssimo, avaliado em oito milhões de euros e com apenas 10 exemplares produzidos. Três deles pertencentes a portugueses. Um pertence ao Cristiano Ronaldo, um rapaz que ganha anualmente o suficiente para comprar a produção inteira; e os outros dois estão à guarda de Armando Pereira e do seu braço direito, Hernâni Vaz Antunes. Estão não – estavam. Agora foram fazer a rodagem para a garagem da Polícia Judiciária.

Qual é a probabilidade de num dos países mais pobres da Europa se encontrarem 30% dos proprietários de um dos carros mais exclusivos do Mundo? Pequena, obviamente. A não ser que esse país seja Portugal, claro.

Se o país for Portugal, nesse caso chamaremos de “herói nacional” a alguém que compra uma empresa pública, reduz salários dos trabalhadores e aumenta a própria fortuna. Armando Pereira e o sócio fundador da Altice francesa, o franco-israelita Patrick Drahi, ficaram conhecidos por comprar empresas e de imediato reduzirem custos. Numa conferência de imprensa em 2015, disse Drahi: “Eu não gosto de pagar salários. Pago o mínimo que puder“.

Drahi é, portanto, um empresário que tem, pelo menos, a virtude de assumir ao que vem: maximizar o lucro explorando os trabalhadores. Ou, como lhe chamariam os liberais, um visionário. Já Armando Pereira era conhecido como cost killer (mata-custos) e entrou na antiga PT a ceifar tudo o que conseguiu.

Em 2015, António Pires de Lima, então ministro da Economia, apelidou Armando Pereira de “herói de Vieira do Minho e até nacional” durante o discurso de inauguração de um call center da Altice naquela vila nortenha. Um herói naqueles sítios onde pagaria pouco mais do que o salário mínimo nacional a cada um dos desgraçados que ali passaria, horas, a responder às queixas dos clientes.

Armando Pereira garantia então, também em 2015, que não iria mexer nos salários, mas que renegociaria os contratos com os fornecedores. Sabe-se hoje que parte do esquema que resultou no desvio de mais de 250 milhões da Altice passava exactamente pelos fornecedores que, alegadamente, alinhavam em pagar luvas ao empresário e à rede de comparsas, ou então saltavam fora do negócio. Sabe-se hoje que também aos funcionários foram cortadas regalias deixando-os apenas com o salário-base.

Armando Pereira, co-fundador da Altice.

Eis mais uma história de um self-made man lusitano, que foi trilhando o caminho do sucesso à custa da exploração alheia e do crime financeiro. Segundo suspeita o Ministério Público, o plano de desvio de dinheiro tinha duas áreas de actuação: a primeira seria comprar imóveis da antiga Portugal Telecom (PT) em Lisboa, nas zonas nobres, e revender com lucros fabulosos, deixando a especulação fazer a maior parte do trabalho; a segunda, seria a chantagem sobre fornecedores para continuarem a fazer parte do negócio.

Um esquema simples, dir-se-ia, tendo uma rede de pessoas certas nos locais certos, como era o caso.

Há uma parte comum em todas as novelas dos self-made man à qual Armando Pereira também não foge. A circulação de dinheiro sem deixar rasto pelas famosas offshores. Era aqui que entrava o empresário e amigo de Braga, Hernâni Vaz Antunes, que criava empresas fictícias na Zona Franca da Madeira e no Dubai, que depois faziam as transferências do dinheiro desviado.

O crime financeiro existe porque os governos permitem – é bom que nos vamos lembrando disto. As Zonas Francas, as offshores, o que lhes quiserem chamar, não aparecem por auto-determinacão de meia-dúzia de malucos como o Reino do Pineal (também é uma história boa para outro dia). Aparecem de forma legal e autorizada por praticamente todos os países do planeta.

A Suíça, por exemplo, faz vida a guardar dinheiro sujo desde que existe, e ninguém se parece preocupar com isso. Os Panama Papers mostraram esquemas gigantescos com lavagens de dinheiro nas Caraíbas e, no essencial, nada mudou. Vivemos num mundo onde os mais ricos criam leis que os protegem. É factual.

Patrick Drahi, co-fundador e presidente do Grupo Altice.

O duo Armando e Hernâni formaram assim uma dupla de respeito na arte de roubar. O primeiro criava as condições e o segundo executava, Um exemplo disso foi a empresa de mobiliário criada por Hernâni Antunes, em Braga, que viria a ser a fornecedora escolhida para a remodelação das lojas MEO. O dinheiro depois, como já adivinhou o caro leitor, ia dar aquela voltinha pelo Dubai até ser transformado num Bugatti, num heliporto ou num campo de ténis de uma moradia qualquer em Vieira do Minho. Certo, certo, é que jamais apareceu no recibo de vencimento dos trabalhadores da MEO.

Desconfia-se que os amigos de Braga tenham ficado com uma comissão do que a Altice pagou a Cristiano Ronaldo pelos contratos de publicidade e que outros 20 milhões de euros tenham sido desviados do pagamento de direitos televisivos ao Futebol Clube do Porto, e a verba posteriormente dividida por homens da confiança de Hernâni Vaz Antunes e de Pinto da Costa.

Por esta altura do enredo imagino o que andará pela cabeça de Patrick Drahi. O CEO do Grupo Altice, que detesta pagar salários, mas que é roubado dentro de portas por altos quadros. Justiça poética meus amigos, daquela que nos faz sorrir.

Pergunto-me o que moverá alguém, que já é milionário, a optar por crimes desta magnitude correndo o risco de perder tudo? Alguém que se desloca de avião privado ou de helicóptero, que abre a garagem e vê 50 carros, que tem casas em Nova Iorque, Paris e Ilhas Caimão e… não consegue segurar a ganância? Sente que precisa de mais e que tem de meter todos em risco? Sim, todos. Trabalhadores incluídos.

As aquisições da Altice são, por norma, feitas a crédito, e portanto, escândalos destes podem criar incumprimento e instabilidade na banca. Como todos sabemos, a cada derrocada empresarial são os trabalhadores que ficam sem sustento. Os Armandos Pereiras têm as fortunas escondidas algures, num sítio onde o Fisco não chega, e por isso, entre fugas, advogados de elite e recursos em tribunal, vão sempre seguir a sua vida.

É aliás curioso que o Estado português, sempre aflito por receitas, ande atrás de simples emigrantes para lhes taxar o salário, quando já pagam impostos no país de acolhimento, mas veja sinais evidentes de extrema riqueza em pessoas com fortunas escondidas e nada faça. Hernâni Antunes é, na verdade, um fantasma para o Fisco lusitano, uma vez que há muitos anos é residente oficial no Dubai e Armando Pereira, com boa parte da fortuna gerida por uma offshore no mesmo sítio (pela mão do pai do genro), nem permite que se saiba a totalidade do seu património.

Ninguém se muda de armas e bagagens para uma offshore se não tiver algo para esconder. Essa é uma lição que todos já aprendemos e é exactamente para isso que esses instrumentos financeiros existem. Legais e consentidos pelo poder, relembremos.

Finalmente, e antes que se chegue a qualquer lado na investigação (se é que alguma vez chegaremos), pergunto: o que ganhou o país com a venda da PT pública para uma entidade privada? Nada. Absolutamente nada. Reduzimos a massa salarial dos trabalhadores, colocámos em risco os seus postos de trabalho, aumentámos a fortuna de vários milionários e ainda corremos o risco de ter nova corrida aos fundos de desemprego. Já nem falo no detalhe de o Estado Português deixar de controlar uma área vital como as telecomunicações…

Este escândalo, mais um, serve também para acabar com um dos dogmas liberais a propósito da gestão pública (em teoria despesista e má) e a gestão privada (em teoria mais rigorosa e eficaz). Não é o ser público ou privado que decide se a gestão de uma empresa é boa. Espero que pelo menos essa parte do assunto fique hoje fechada. No fim, tudo se resume a competência e honestidade, e aqui, como em tantos outros casos portugueses, estamos perante mais um self-made man que veio de baixo e “subiu a pulso”: só que foi a roubar, estão a ver?

Foi, de novo, a roubar. Colocando em risco os trabalhadores e usando bens (imóveis) que tinham sido adquiridos ao património público português. Foi uma coisa à oligarca russo nos tempos de Yeltsin. Armando Pereira não é um herói nacional. Nem de Vieira do Minho. Nem sequer da sua aldeia natal onde levou o Tony Carreira para alegrar uma festa, oferecida por ele, aos habitantes. Armando Pereira é apenas mais um milionário que roubou, e muito, para ali chegar. E que piorou a vida de quem para ele trabalhou para que o seu lucro fosse maior. Num país decente não voltaria a sair da prisão; em Portugal, provavelmente, vai “repor a honra” nos tribunais.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.