Papel avulso

Isolamento, exclusão, nacionalismos

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por Fernando Pinto do Amaral // Março 7, 2022


Categoria: Cultura

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Passaram 10 dias sobre o início da invasão da Ucrânia, desencadeada pela Rússia como reacção àquilo que alguns vêem como uma humilhação histórica acumulada desde o fim da Guerra Fria.

No entanto, por mais que a Alemanha tivesse sido humilhada em Versailles (1919), isso não a legitimou para o que fez em 1939, e à Rússia o mesmo se aplica: por mais razões de queixa que os russos tenham desde o final da Guerra Fria – e têm certamente algumas –, isso não os legitima nem os desculpa para o que estão a fazer na Ucrânia, e a resistência dos ucranianos é uma lição que tão cedo não esqueceremos: tudo isto está a mudar-nos como europeus, fazendo-nos cair de súbito numa realidade que o nosso snobismo cosmopolita remetera para os nacionalismos do século XIX, fechados num baú de que tínhamos perdido a chave.

religious sculpture

Em boa verdade, esse baú já fora aberto na ex-Jugoslávia, nos anos 1990, ao longo de um conflito sangrento aliás parecido com este, com uma Sérvia humilhada a desempenhar o papel da Rússia e a reagir de maneira também violenta, sofrendo uma derrota que veio alterar as fronteiras da Europa com a criação do Kosovo em 2008.

Mas nos Balcãs não houve um envolvimento russo directo, como houve, por exemplo, na Tchetchénia, cuja capital, Grozni, ficou reduzida a escombros, com dezenas de milhares de mortos e atrocidades sem fim – a que a Europa fechou os olhos. Só que a Ucrânia não é a Tchetchénia, perdida nas montanhas do Cáucaso e habitada por muçulmanos: a Ucrânia fica mais perto, é mais sentida como Europa, suscita a comoção de toda a Europa, incluindo da Rússia: muitos russos não desejam a guerra, manifestam-se contra a guerra, não querem continuar a guerra.

Ainda assim, continua a assistir-se a uma escalada de parte a parte, com duras sanções de um lado e ameaças nucleares do outro, numa espiral de confronto cujo mecanismo psicológico me assusta, como se em certos momentos uma estranha vertigem de ódio assaltasse a cabeça de algumas pessoas, obedecendo a hormonas específicas ou a neurotransmissores que excitam nos humanos um obsessivo ódio ao outro, ao “inimigo”.

Dessa vertigem faz parte um desejo de castigar a Rússia com toda a estirpe de sanções. Ora, quanto a esse ponto, sendo a favor de sanções económicas, parecem-me todavia eticamente questionáveis as medidas de isolamento da Rússia em campos como a Cultura, o Desporto ou os meios de comunicação em geral.

Um triste exemplo dessa cancel culture foi o bloqueio imposto pela Europa a partir de 1 de Março às emissões do canal RT / Russia Today em inglês. Como retaliação, deixará de ser possível ver na Rússia, via satélite, canais como a BBC, a CNN ou outros meios ocidentais emitidos em russo.

Toda esta lógica de exclusão me entristece, encarando-a como mais um resultado do pensamento binário e maniqueísta a que também assisto nas redes sociais, num processo de simplificação em que tudo passa a resumir-se a um conflito entre “nós”, que somos sempre os bons, e “eles”, que são sempre os maus e que, por definição, estão sempre contra “nós”.

Bem-vindos ao novo mundo, todo pintado a preto-e-branco e regido pela Censura digital. Bem-vindos à nova Inquisição, que a partir de agora controlará cada imagem que virmos ou cada palavra que dissermos, eliminando as que não se enquadrarem no modelo considerado mais correcto pelos inquisidores que espreitam, invisíveis, atrás de cada écran.

group on people inside building

Olho para o mundo em 2022 e sinto cada vez mais que esta polarização maniqueísta em grupos, em tribos, em clãs, só tende a radicalizar uns e outros, numa lógica de mútua exclusão que qualquer estratégia de isolamento só vem acentuar e que, em última análise, conduz à perpetuação da guerra, como forma extrema de exclusão do outro – assim funcionam os nacionalismos.

No pouco tempo que me restar, gostaria de viver num mundo em que os russos pudessem ver canais ocidentais e em que aqui, no Ocidente, pudéssemos ver canais russos, chineses e de todo o planeta – e o mesmo para os livros, a música, as artes. Só conhecendo melhor o outro poderemos tentar compreendê-lo – ou então desistimos de qualquer esforço de compreensão e prosseguimos por este caminho sem saída: fechamo-nos em nós, olhamo-nos ao espelho e repetimos todos os dias que os outros não existem. Mesmo sabendo que não é verdade, talvez o nosso narcisismo precise dessa ilusão.

Escritor e professor universitário

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