A democracia é o pior dos regimes políticos
À excepção de todos os outros.
Winston Churchill
Ora muito bem, eu conto-vos só esta e depois baixo os braços. Se por esta altura os “comentadores” e “analistas” de Portugal ainda disserem que a América está em crise por causa da guerra na Ucrânia, o que é que eu posso dizer mais? Posso sugerir-vos que não acreditem nas pessoas que supostamente estão ali para vos explicarem todos os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo, e sei que é uma sugestão muito chata. O pior é que é verdadeira. A nuvem negra que paira hoje sobre a América não é uma invenção de Zelenski. Como se até o movimento de translacção da América em torno do Sol estivesse em risco, o que paira verdadeiramente sobre the home of the free and the land of the brave[1] é o fantasma eterno de Donald Trump. O seu, e o de todos os seus imitadores.
Lembram-se do Jair Bolsonaro?
Jair Bolsonaro, evangélico, indiferente ao COVID, e ex-presidente brasileiro, nem sequer fala inglês. Por isso, não sabemos se alguma vez alguém o acordou das suas fantasias de criança, e lhe revelou a triste realidade. Acontece que, excluindo os analistas políticos especializados em América do Sul, não existe nenhum americano, mesmo entre aqueles que sabem quem é o Neymar[2], que entenda seriamente quem foi o Jair Bolsonaro. E Donald Trump, que é um imbecil autocentrado, também não sabe. Durante quatro anos teve um wanna-be[3] na presidência do maior e mais populoso país da América do Sul, e nunca soube.
Se calhar os seus homens de mão fizeram de propósito para que ele não soubesse, e o facto de Bolsonaro nunca invocar o seu nome em público contribuiu para este jogo de sombras. Imaginem o que Trump poderia fazer se soubesse que tinha um aliado em Brasília. Um homem que, tal como ele, se estava bem a cagar para o ambiente porque o longo prazo não podia ser-lhe mais indiferente.
Como já vos disse, importante mesmo, para Bolsonaro, era o dinheiro vivo[4]. “Querem que eu proteja a Amazónia, porque é o pulmão de todo o planeta? Então porreiro, paguem-me para que eu a proteja!”
Agora imaginem que Donald Trump sabia disto.
Imaginem a aliança entre os dois ditadores, provavelmente negociada em grande secretismo porque o povo continuava estupidamente convencido de que o seu regime ainda era uma democracia.
Vamos lá, Jair, há prioridades.
Importante, mesmo, é envenenar já o tal de rio que corre pelo meio da Amazónia, e a que vocês chamam Amazonas porque não têm qualquer espécie de imaginação. Toda a gente me diz que aquela porcaria está cheia de piranhas. Há vídeos no YouTube em que aparecem uns porcos muito grandes da selva[5] que não passam de uma margem para a outra porque as piranhas os devoram pelo meio. Já vi uns filmes de uma série chamada PIRANHA! São piores do que os tubarões. Assim ninguém ia querer fixar-se ali.
Provavelmente, e com a benção de Bolsonaro, depois de afogadas todas piranhas[6] Trump teria mandado uns quantos batalhões de Forças Armadas para a Amazónia, com instruções para pilharem todas as riquezas da floresta e assassinarem todos os seus índios. A seguir, prontos para a jogada mais difícil de todas, juntavam-se aos colonos e boieiros brasileiros na tarefa árdua de deitarem fogo a todas aquelas malditas árvores com sete andares. “They’ll be met with fire and fury, the likes of which the world has never seen,” lembram-se[7]? Donald Trump adora dizer estas coisas. Agora poderia transformá-las numa realidade fantástica. Tanto fogo. Tanto fumo. Fogo e fúria nunca antes vistos, subitamente acesos como um sinal de alarme por uma floresta equatorial inteira que começou, por fim, a arder.
Os habitantes do mundo inteiro haviam de passar meses a ver auroras boreais nunca antes vistas, o Sol a e Lua a nascerem verdes ou azuis contra um céu completamente branco, seguido de riscas vermelhas, laranja, e amarelas, como aconteceu depois dos dois dias da erupção na Indonésia do vulcão Krakatoa em 1883, com um estrondo que se ouviu até à distância impensável de Alice Springs, mesmo no centro do outback australiano, e com uma violência que ainda perdura enquanto das maiores desde que existem registos. O abalo que esta erupção causou no mundo, todas aquelas cores impensáveis no céu, acabou por chegar à Noruega e levar Edvard Munch a pintar o famoso quadro O GRITO. Todas aquelas cores por trás do homem que grita, misturadas de lampejos de azul que por vezes tentavam repor a normalidade, eram as verdadeiras cores do céu sobre os fiordes.
“Foi como se uma espada de fogo em chamas arrombasse as portas do Céu,” recordou o pintor; “a atmosfera transformou-se em sangue – com línguas de fogo brilhantes – as montanhas ficaram de um azul profundo – entre as cores amarelas e vermelhas – as caras dos meus companheiros tornaram-se amarelas e brancas – senti qualquer coisa que era como um grito enorme – e ouvi, verdadeiramente, um grande grito.”
Pessoal, o Krakatoa era só um vulcão, e a sua erupção foi só de grau seis. Agora imaginem todas as árvores da Amazónia a arder, todas ao mesmo tempo: o Sol e a Lua estariam verdes e azuis durante meses e meses sem fim. O céu havia de tingir-se de laranja, vermelho, amarelo, e algumas brechas de azul, que chegariam até à Islândia, como chegaram as auroras boreais do vulcão. Num deserto qualquer, no alto de qualquer rocha, havia de reaparecer a imagem da Tina Turner rodeada de crianças. E haviam todos de cantar o WE DON’T NEED ANOTHER HERO, porque o planeta inteiro era agora a casa do Mad Max, Deus sabia, e encarregou-a de nos deixar um aviso sem margem para dúvidas.
Todos nós saberíamos que estávamos condenados à morte.
Entretanto, tranches enormes daquela terra incrivelmente fértil haviam de transformar-se em monoculturas intensivas, porque seriam distribuídas por agricultores e criadores de gado americanos. Talvez até fossem duplamente beneficiados nos impostos, em troca de ferramentas e de know-how com os seus pares brasileiros. Não estou a inventar grande coisa. A Amazónia só entrou no rol das enormidades proferidas pelo evangélico no seu último ano de mandato. Bastaria que tanto ele como o Trump tivessem sido reeleitos. Depois disso… bom, entre regimes ditatoriais é assim que se processam as trocas de favores. E, à época, nos dois países, a ditadura era para lá de um projecto. Era uma medida urgente a implementar desde logo, ou então ninguém se entendia. A democracia é o convite ao caos, como toda a gente sabe.
Os americanos podem não saber grande coisa sobre o Bolsonaro, mas foram treinados desde pequeninos para serem optimistas. Esse gajo, os brasileiros já correram com ele, não foi? Nós também corremos com o Trump. Então pronto. O caminho é para a frente, não é para trás.
E agora digam-me, com toda a franqueza: os americanos são umas bestas porque não sabem quem foi o Jair Bolsonaro?
Se calhar são. Mas, mas durante o segundo mandato de Barak Obama, quando eu estava a trabalhar na UMass, cantava gospel na Igreja Africana e fui com eles a todas as manifestações do BLACK LIVES MATTER a que consegui ir. Depois ligava o Messenger, ou chegava fisicamente a Lisboa, falava do BLACK LIVES MATTER e ficava toda a gente a olhar para mim.
BLACK LIVES MATTER?
O que é isso?
Acontece que “isso” foi muito mais importante para os desígnios do mundo do que a sanfona que acompanhou os discursos do Bolsonaro no auge da pandemia. Aliás, foi o início de uma crispação tão profunda que permitiu a eleição de Trump, porque, desta vez, os negros não foram votar. Para quê? Terem um presidente negro estava a virar-se contra eles. Houve um linchamento no Mississipi. Três dias depois, houve outro no Alabama. Embora alinhar na festa, pessoal?
Os polícias brancos, profundamente ressabiados por terem um preto na presidência do seu Grande País, não aguentaram a segunda eleição e divertiram-se a matar a tiro os putos negros que lhes aparecessem ao caminho. Em Cleveland, chegaram a matar a tiro um menino negro de doze anos que andava num parque público a brincar com uma bisnaga. Mataram, mataram, e mataram. Sempre polícias brancos. Sempre vítimas negras muito jovens.
Em última análise, este sangradouro acabou por inspirar um rapaz branco que, aos dezoito anos, recebeu como prenda do pai uma Beretta clássica, toda recuperada, toda a cintilar. Disse aos amigos que ia iniciar uma guerra civil, vestiu um blusão do antigo uniforme da Rodésia, entrou pela Igreja Africana adentro porque sabia que, àquela hora, naquele sítio, o pessoal estava reunido com o pastor a estudar a Bíblia – e, quando abriu fogo, matou dezoito pessoas, incluindo o pastor e a mulher.
Acontece que, desta vez, o pastor e a mulher eram mesmo amigos lá de casa da Michelle e do Obama.
Quando o Obama chegou e se ajoelhou ao lado do caixão do seu amigo assassinado, começou por dizer, “meu amigo, meu querido amigo, a quantos funerais ainda terei que ir, para dizer que o direito a porte de arma não pode ser tão indiscriminado, para que os americanos parem de se matar uns aos outros. E que queres tu que eu diga agora aos americanos?”
E logo a seguir, para grande surpresa de toda a gente, começou a cantar o AMAZING GRACE com a sua voz bem timbrada de quem já cantou muito gospel na vida.
Eu estava a ver aquilo com duas amigas da Igreja Africana, a mesma Igreja onde o puto tinha acabado dezoito pessoas que podíamos ser nós. E, como não podíamos fazer mais nada, cantámos também. Soprano, contralto, e tenor.
Foi por causa do BLACK LIVES MATTER que os fundamentalistas elegeram o Trump. Já andam para aí pretos a mais que querem mandar em nós, topam?
Ficámos a saber que a América rebenta pelas costuras de fundamentalistas, e é por isso que agora todos os políticos têm medo da ordem de acção que o Trump pode dar a seguir.
Falei de alguma coisa que tivesse a ver com a Ucrânia?
Separem as águas, pelo amor de Deus.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] “Casa dos livres, terra dos bravos”: último verso do hino nacional americano.
[2] E o Cristiano Ronaldo, e o Lionel Messi, claro. Mas esses não são brasileiros, por isso não constam para esta triste estatística.
[3] O termo “wanna-be” usa-se para uma pessoa que quer ser igual a outra, portanto usa o mesmo corte de cabelo, a mesma roupa, o mesmo verniz para as unhas, e por aí fora. A desgraçada da Jackie Kennedy teve milhares de wanna-bes. Depois do assassínio do marido em Dallas, andavam todas com o mesmo chapéu e o mesmo tailleur cor-de-rosa que ela tinha vestidos na altura do tiro. Isto é tão comum que até a Michelle Pfeiffer fez de wanna-be da Jackie no dia fatídico de Dallas – e o resto do enredo não tinha absolutamente nada a ver com isso.
[4] Claro que não sabemos quanto desse dinheiro ele meteria directamente ao bolso. Mas não devia ser pouco.
[5] Trump está a referir-se às capivaras. As capivaras não são porcos.
[6] Ah-ah-ah! Como se fosse possível extinguir as piranhas no rio com o maior volume de água do mundo. Pura e simplesmente, mudavam de sítio e ficavam à espera. O que há mais na Amazónia é capivaras.
[7] Na altura era um aviso à Coreia do Norte, mas poderia ter sido a qualquer outro que não fosse a Rússia: “Vão encontrar fogo e fúria como o mundo nunca viu antes!”