ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Primeiro, tudo

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Outubro 14, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Primeiro, acordar claro. Ou adormecer, dependendo de quando nos assalta, em vagas, em assombros, ondas de uma aflição inexplicável que nos corta o ar (e corta ao meio), punho firme que nos agarra e segura violentamente pela cavidade torácica.

Uma explosão, um disparo, paredes a esburacar e a poeira, a poeira, a poeira, a misturar-se com o nosso suor e uma lágrima confusa (doeu), a guerra, a guerra, a guerra (tantas guerras).

Alguém fez a pergunta: porquê tantos homens em idade e corpo de soldados, ali a arrochar nas costas do Mediterrâneo? Exauridos (os homens fugindo da guerra, a guerra fugindo dos homens), e as mulheres que carregam filhos nos braços e rasgam os joelhos na fuga?

Exploded House in Borodyanka

Ver é um exercício. Tomamos como certo que nos é dado, pronto, sem necessidade de aperfeiçoamento ou silêncio.

Ver.

Primeiro, tudo.

Conhecer o corpo ao nosso lado, deixar que um coração ouça o outro a bater. Cheiros, gestos, respirações e a alma dos intestinos a regurgitar medos. Conhecer a casa da alma, desenhar os contornos de memória e saber onde vive cada espaço. Que cor tem cada sala.

E ouvir. Saber que tonalidade de acorde segura as notas atrás das paredes (edifica-me, eu sou música e tu não sabes ler pautas) que tormenta, tormenta, tormenta… (e o punho firme a trepar a pescoço).

Voltamos aos ângulos mortos, mais uma urgência.

A diferença entre torres (colmeias) de casinhas empilhadas e as almas ali, todas encaixotadas como no cemitério, confusas de tantos corações a bater, tantos corações a gritar, tanto ar a quitar-se (urgência) e as casas deitadas a repousar ossos cansados na terra, a descarregar na fornalha nuclear do mundo, os mundos todos que nos habitam, povoam, infernizam (dorme, vai a casa e dorme, não passes só por lá, toca alguém no caminho, não vivas sozinho).

Grayscale Photography of Chainmails and Helmets on Ground

Não tenho opiniões. Talvez tenha lamentos. Desculpem, não tenho, já chega de opiniões. Passaram a ser tantas, tantas, tantas (e a guerra, a guerra, a guerra).

Que vorazes as máquinas estão, a devorar as nossas palavras, a sugarem-nas até já nascerem sem significado, aguadas, finas, ruído de estática em fundo. A sobranceria da era dos andróides que fingem ser meninos de verdade.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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