Primeiro, acordar claro. Ou adormecer, dependendo de quando nos assalta, em vagas, em assombros, ondas de uma aflição inexplicável que nos corta o ar (e corta ao meio), punho firme que nos agarra e segura violentamente pela cavidade torácica.
Uma explosão, um disparo, paredes a esburacar e a poeira, a poeira, a poeira, a misturar-se com o nosso suor e uma lágrima confusa (doeu), a guerra, a guerra, a guerra (tantas guerras).
Alguém fez a pergunta: porquê tantos homens em idade e corpo de soldados, ali a arrochar nas costas do Mediterrâneo? Exauridos (os homens fugindo da guerra, a guerra fugindo dos homens), e as mulheres que carregam filhos nos braços e rasgam os joelhos na fuga?
Ver é um exercício. Tomamos como certo que nos é dado, pronto, sem necessidade de aperfeiçoamento ou silêncio.
Ver.
Primeiro, tudo.
Conhecer o corpo ao nosso lado, deixar que um coração ouça o outro a bater. Cheiros, gestos, respirações e a alma dos intestinos a regurgitar medos. Conhecer a casa da alma, desenhar os contornos de memória e saber onde vive cada espaço. Que cor tem cada sala.
E ouvir. Saber que tonalidade de acorde segura as notas atrás das paredes (edifica-me, eu sou música e tu não sabes ler pautas) que tormenta, tormenta, tormenta… (e o punho firme a trepar a pescoço).
Voltamos aos ângulos mortos, mais uma urgência.
A diferença entre torres (colmeias) de casinhas empilhadas e as almas ali, todas encaixotadas como no cemitério, confusas de tantos corações a bater, tantos corações a gritar, tanto ar a quitar-se (urgência) e as casas deitadas a repousar ossos cansados na terra, a descarregar na fornalha nuclear do mundo, os mundos todos que nos habitam, povoam, infernizam (dorme, vai a casa e dorme, não passes só por lá, toca alguém no caminho, não vivas sozinho).
Não tenho opiniões. Talvez tenha lamentos. Desculpem, não tenho, já chega de opiniões. Passaram a ser tantas, tantas, tantas (e a guerra, a guerra, a guerra).
Que vorazes as máquinas estão, a devorar as nossas palavras, a sugarem-nas até já nascerem sem significado, aguadas, finas, ruído de estática em fundo. A sobranceria da era dos andróides que fingem ser meninos de verdade.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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