O PÁGINA UM pegou numa calculadora e no “cabaz de compras” de um ajuste directo celebrado entre a autarquia de Carlos Carreiras e o Modelo Continente, e foi saber se era mesmo preciso gastar-se os cerca de 180 mil euros previstos num contrato assinado em Julho passado. E não era: contas feitas a cerca de uma centena de itens, um a um, de mercearia, frescos, congelados e produtos de higiene e drogaria, o total dava pouco mais de 14 mil euros, e já com IVA incluído. A autarquia não quis reagir e o Modelo Continente remete as perguntas do PÁGINA UM para o município. Recorde-se que a edilidade de Cascais já terá gastado mais de 925 mil euros só em alimentação para refugiados ucranianos, incluindo três ajustes directos à mesma empresa (ICA), com periodicidade aleatória, mas recusa mostrar elementos sobre esta actividade.
Em Julho passado, mesmo tendo contratos de ajuste directo para fornecimento de refeições aos refugiados ucranianos, em número que não quer divulgar, o município de Cascais decidiu estabelecer um estranho contrato com a Modelo Continente no valor previsto de 166.124,88 euros, sem IVA incluído, para a entrega em períodos mensais, durante um ano, de cerca de uma centena de produtos. Com IVA, o contrato deverá aproximar-se dos 180 mil euros.
No contrato exposto no Portal Base inclui-se, neste caso, o caderno de encargos com as especificações para a aquisição de bens essenciais para o Centro de Refugiados de Cascais, onde consta uma extensa lista de produtos alimentares e de higiene que a autarquia liderada por Carlos Carreiras devia receber do Modelo Continente.
Nos produtos de mercearia surgem 35 itens, que vão desde 300 embalagens de leite UHT até 100 embalagens de chá de cidreira e camomila, passando por quantidades distintas de açúcar, massas e cereais diversos, feijão e o incontornável atum, cogumelos em lata, azeite e óleo, café diverso e 30 quilogramas de sal, entre grosso e fino.
Na parte de produtos frescos – que, de acordo com as peças do contrato, deveriam ser entregues, tal como os outros produtos, com uma frequência semanal ao longo de 12 meses – encontram-se 25 itens, começando a lista por 500 embalagens de 600 gramas de jardineira de bovino para guisar e terminando em 60 quilogramas de beterraba sem rama. Pelo meio desta lista consta ainda carne picada, bifanas, salsichas frescas e costeletas de porco e outros produtos de frango e peru, tudo em doses de 50 quilogramas. No caso dos peixes – em quantidade de 10 quilogramas – estão listadas diversas espécies: carapau, cavala, pargo, dourada, robalo, salmão, truta, pota e choco. E depois ainda verduras, como batatas, cenoura, couve e cebola, além de ovos e manteiga.
Acresciam ainda 13 produtos congelados em embalagens de pesos distintos, abrangendo quer peixes quer legumes. Nestes destacavam-se as 100 embalagens de 200 gramas de corvina e ainda as 48 embalagens de 210 gramas de garoupa.
Por fim, no sector dos produtos de higiene, o caderno de encargos listava 25 itens – desde champôs e gel de banho até desodorizantes, sabonetes, tampões e lâminas –, e no sector da drogaria ficaram previstos nove itens, entre detergentes, esfregonas, baldes e vassouras.
Enfim, a lista é extensa, mas mais do que as quatro páginas – e mais umas linhas de uma outra – com a listagem de produtos e quantidades, aquilo que verdadeiramente surpreende é que, mesmo assim, parece pouco para aquilo que foi combinado na parte financeira entre a Câmara Municipal de Cascais e o Modelo Continente.
Com efeito, como contrapartida das quantidades listadas no caderno de encargos, a autarquia de Cascais comprometeu-se a pagar a pagar 166.980 euros, sem incluir IVA. Pareceu ao PÁGINA UM ‘fruta a mais’ – embora, curiosamente, só tenha ficado previsto a entrega de 150 embalagens de pêssego em calda com peso escorrido de 480 gramas e ainda 30 latas de polpa de maracujá de 565 gramas. E por isso “fomos às compras” – ou, melhor dizendo, conferimos os preços praticados na loja online do Continente para saber quanto se pagaria por aquele cabaz de compras.
A pesquisa do PÁGINA UM realizou-se nos primeiros dias deste mês de Outubro. Apesar de nem todos os produtos constantes no caderno de encargos para o centro de refugiados da Ucrânia não se encontrarem à venda na loja online do Continente, procurou-se produtos similares ou os preços em outros hipermercados semelhantes.
E assim, “conseguimos” o cabaz de compras de produtos de mercearia, já com IVA incluído, por 4.078,70 euros. Os produtos frescos ficaram por 5.052,60 euros. Os produtos congelados por 1.256,45 euros, os produtos de higiene por 3.201,86 euros e, por fim, os produtos de drogaria por 770,70 euros.
Contas feitas, para uma lista de produtos para a qual a Câmara de Cascais assinou um contrato de 166.980 euros, sem incluir IVA (com IVA aproximar-se-á dos 180 mil euros), o PÁGINA UM – e qualquer outra pessoa, incluindo funcionários dos serviços da autarquia liderada por Carlos Carreiras – “faria a festa” por 14.360,37 euros. Ou, noutra perspectiva, compraria um cabaz mais de 10 vezes aquele que foi adquirido pelo município.
O PÁGINA UM tentou obter comentários da autarquia de Cascais e do Modelo Continente sobre esta contrato pouco ortodoxo de solidariedade com os refugiados ucranianos com evidentes sinais de desperdício de dinheiros públicos. Não conseguiu sequer entrar em contacto com o gestor do contrato, obrigatório por lei, porque no documento constante no Portal o seu nome e função foi apagado. Este procedimento de rasurar nomes de funcionários públicos em exercício de funções públicas é profundamente ilegal, constituindo uma forma de obscurantismo.
No caso da Câmara Municipal de Cascais solicitou-se mesmo a entrega de facturas das remessas de dois meses para conferir as quantidades entregadas e os preços unitários praticados.
Por sua vez, o Modelo Continente reagiu através de uma agência de comunicação, indicando que as respostas deveriam ser dadas pelo município. Mas mesmo com insistência, a empresa do universo da Sonae não respondeu se foi ponderada a venda daqueles produtos, atendíveis os fins, sem a aplicação de margem de lucro ou uma doação de bens.