Durante a pandemia, a generalidade dos jornalistas da RTP, na linha da imprensa mainstream, teve uma atitude deplorável de seguidismo, em violação dos princípios deontológicos, em apoio a uma narrativa oficial, contribuindo para menosprezar, ostracizar e perseguir todos aqueles que, mesmo de uma forma científica, pretendiam introduzir racionalidade a uma crise sanitária. Já muito escrevi sobre esta matéria – e desconfio que venha a escrever mais.
Mas ontem lembrei-me de um lastimável “debate” da RTP, em 2 de Fevereiro de 2021, num programa intitulado “É ou não é?”,
E lembrei-me porque foi moderado pelo jornalista Carlos Daniel – e que ontem esteve presente na apresentação do mais recente livro de Gustavo Carona intitulado Olhem para o Mundo com o coração. Jornalismo oblige: respirei fundo e fui ouvir a louvaminha de Carlos Daniel à obra. Temi tudo, mas esperando pelo menos coerência. Mas não: descobri hipocrisia.
Mas enquadremos a coisa. Recuemos a 2 de Fevereiro de 2021 e ao suposto debate que deveria confrontar as diferentes visões da comunicação e da desinformação em pandemia. Quem esperasse um verdadeiro debate, perdeu logo a esperança pelo naipe de “escolhidos”: o antigo ministro socialista Correia de Campos, o consultor de comunicação Rui Calafate, o assessor de imprensa Rui Neves Moreira, os médicos Ricardo Mexia, Gustavo Carona e João Júlio Cerqueira, a psicóloga Marta Moreira Marques e o jornalista Paulo Pena, que está para a desinformação como o Milhazes para a Rússia.
Nesse programa, que deveria estar exposto nos anais do Jornalismo, no sentido de ser o paradigma daquilo que se deve evitar, não houve um – um único – entre os oito convidados que destoasse uma vírgula da narrativa, que mostrasse uma visão diferente, que clamasse por uma maior transparência na informação oficial (já repararam que o PÁGINA UM foi o único jornal que, por exemplo, quis saber dos registos da mortalidade nos lares, estando o caso em Tribunal Administrativo?), que defendesse a necessidade de se esclarecerem os conflitos de interesse dos intervenientes, que enquadrasse a pandemia num contexto de crise sanitária onde coexistiam outras variáveis valências (incluindo de saúde pública a curto, médio e longo prazo).
Nada disso. Ali, sob a batuta de Carlos Daniel, naquilo que falsamente se chamou debate, não apenas chutaram para fora quaisquer visões diferentes, como se meteu tudo e todos no mesmo saco. Tudo foi, se fugisse da linha oficial, e sem direito a opinar, catalogado como desinformação e teoria da conspiração.
Ao minuto 58:03, Carlos Daniel resumiu que tudo aquilo que não seguisse a estratégia oficial – que, por exemplo, em Portugal resultou em quatro anos consecutivos de excesso de mortalidade, sobre a qual já nem o desplante oficial culpa a covid-19 – era “ignorância colectiva que se alimenta com estas notícias” [leia-se, redes sociais], e mostrava então o seu receio de que o “negacionismo” pudesse “fazer caminho”.
As intervenções dos médicos Gustavo Carona e José Júlio Cerqueira são, se ouvidas hoje, autênticos compêndios de mentiras, intolerância e absurdos embandeirando abusivamente a Ciência. E tudo sem qualquer contraditório. E com um jornalista como responsável por este “banquete”. Quem quiser pode ainda assistir a este falso debate promovido, enfim, por um jornalista.
Dois anos e meio depois, não me surpreenderia assim que o jornalista Carlos Daniel, se fosse coerente, corresse a louvar um indivíduo como Gustavo Carona, e acabar até por, hélas, lhe elogiar a escrita literária. Mas já foi longe demais ao tecer estas considerações finais (a partir do minuto 12:20):
“Em boa parte, a intolerância radica na ignorância. E a ignorância é arrogante, como nós sabemos. E a ignorância não respeita o especialista, duvida da Ciência, transforma hoje… o influenciador é mais importante que o comunicador, não é? Esta coisa… Eu acho que é muito importante, e se calhar tento terminar com esta ideia, que os jornalistas que cuidam dessa coisa da objectividade e acreditam numa verdade; pelo menos numa verdade provisória, numa verdade quotidiana, não na verdade filosófica… Mas também nos artistas, que têm que ser capazes, como o Pedro [Abrunhosa, que estava ao seu lado] faz tantas vezes, de marcar e dizer o que pensam e dizer como é que acreditam que isto podia ser melhor; mas as pessoas que se expõem com opiniões, com sentimentos, como o Gustavo [Carona] faz tantas vezes; se calhar nós somos três exemplos de pessoas que não têm que ter medo do UNLIKE, não é? Não devemos procurar o LIKE. Nós temos que acreditar que a nossa missão também é, de vez em quando, desagradar a alguns, para que eles entendam que o Mundo não é apenas – como agora parece às vezes ser – daqueles que pensam como nós e nos põem os LIKES. Convém que haja alguém que discorde de nós, porque da discordância nasce o debate – e só do debate pode nascer o tal compromisso que eu falava há pouco. E isto é o mais essencial à Democracia, e, se quisermos, também nesta altura, à paz. E eu acho que, dito isto, apetece-me sublinhar que talvez, mais do que nunca, precisemos mesmo de olhar o mundo com o coração.”
A mim, depois de ouvir as palavras do jornalista Carlos Daniel ditas ontem no lançamento do novo livro de Gustavo Carona – um dos médicos mais alarmistas e intolerantes ao debate durante a pandemia –, e conhecendo a sua postura profissional nos últimos anos, só me apetece sublinhar uma palavra que nem está neste seu discurso, mas que está no seu âmago: HIPOCRISIA.