O PÁGINA UM publicou ontem, por imposição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), um direito de resposta do director do Público, David Pontes, sobre um tema que, aliás, o próprio regulador, desde Junho, não quer comentar: a celebração de contratos entre empresas detentoras de órgãos de comunicação social e entidades públicas, onde se mercadeja o serviço de jornalistas. A resposta do director do Público surgiu em reacção a um artigo que abordava, em concreto, contratos comerciais a executar por jornalistas na secção Azul, dedicada ao Ambiente.
Não há outro termo nem aspas a usar: são mesmo contratos de prestação de serviços a serem executados por jornalistas, a maioria das vezes, por responsáveis editoriais que são os primeiros a aprestar-se a essa tarefa e a ludibriar os leitores, porquanto, na generalidade dos casos, nem sequer se identifica claramente que há um pagamento de uma entidade externa pela actividade desenvolvida por jornalistas. São tantos que o PÁGINA UM criou uma secção autónoma.
Convém referir que a publicação de um direito de resposta – ainda mais neste caso (e haverá ainda outro, que teremos de publicar ainda hoje ou o mais tardar amanhã) – não significa, antes pelo contrário, que o órgão de comunicação social tenha errado na sua notícia, que tenha escrito uma mentira ou que não tenha cumprido regras deontológicas e de rigor.
Nesse aspecto, a ERC tem tido uma leitura muito abrangente, concedendo o direito de resposta se o visado simplesmente invocar que prejudica a sua fama (mesmo que seja má pelos actos que pratica), uma vez que defende que “o instituto do direito de resposta não é animado do propósito de busca da verdade material – cujo controlo não cabe aos órgãos de comunicação social, nem, tão-pouco, em princípio, ao próprio regulador, por não ser essa a sua vocação”.
No entanto, convém referir que na sua análise que implicou a obrigatoriedade de publicação do direito de resposta do director do Público (com um dia de destaque), em consequência de um artigo da minha autoria em 5 de Junho passado, os três membros ainda restantes de um Conselho Regulador já fora do prazo de validade – se é que alguma vez teve –, tecem algumas considerações que merecem comentário.
De forma mais ou menos explícita, embora prometendo analisar o caso em concreto (já lá vão quase cinco meses), a ERC tende a manifestar já que os dois contratos de prestação de serviços do Público – um com a Biopolis (uma associação de direito público que integra universidades) e outro da Comissão de Coordenação da Região Norte (CCDR-N), com uma forte componente política – são banais, aceitáveis e, quiçá, passíveis de serem multiplicados no futuro. Chegam mesmo, os ditos três membros do Conselho Regulador da ERC, a sustentar que a interpretação do PÁGINA UM sobre as cláusulas dos contratos em causa – e em particular do da Biopolis – “é manifestamente desprovida de sustentação e, inclusive, abusiva”.
Portanto, a ERC – que recentemente já tinha sido pífia na não-responsabilização de directores editoriais pela existência de ‘jornalistas comerciais’ – obriga-me a retomar o assunto. E com assertividade, até porque há actualizações. E daquelas que ainda pioram mais a postura do Público.
Não será surpresa nenhuma – porque tenho vincado isso, aqui, por diversas vezes – que eu diga que o estado pantanoso, mais ao estilo de uma cloaca do que de um ecossistema lacustre, da imprensa portuguesa se deve, primeiro, a directores editoriais que se transformaram em directores comerciais, mercadejando notícias; e, segundo, a uma regulação frouxa, comprometida e interessada em não beliscar um negócio (media) em profunda crise financeira, grave por ser uma crise sustentada em falta de credibilidade. O caso da Global Media é disso um exemplo. Como já não consegue vender notícias ao leitores; já vende jornalistas para vender promoção de clientes. Morrerá no dia em que os clientes que lhe pagam a promoção verificarem que essa promoção é vista pelo boneco.
Mas regressemos ao foco. Independentemente das interpretações – que basicamente constituem a aplicação literal das cláusulas contratuais dos acordos comerciais entre a empresa do Público e a CCDR-N e a Biopolis para financiar uma secção jornalística denominada Azul – há um facto incontornável, indesmentível, indelével: há um elefante na sala. E esse elefante chama-se contrato de prestação de serviços para a execução de tarefas jornalísticas por jornalistas.
Só a simples previsão, teórica, de contratos de prestação de serviços de jornalismo (que deveria ser sinónimo de isenção e independência) envolvendo entidades públicas (e privadas) deveria causar engulho, vergonha, generalizada desaprovação – e opróbrio para quem, sendo jornalista, se permite assinar e executar este tipo de tarefas. Venha a direcção do Público, ou outra qualquer, justificar-se com muitos murros no peito ufando a palavra independência. Venham os reguladores fora do prazo que vierem, digam eles o que quiserem, mesmo que sentenciem ser “abusivo” alguém interpretar que contratos de prestação de serviços envolvendo jornalistas é mercadejar o jornalismo. E até se pode dizer mais, e que se diz porque estamos perante uma opinião: é prostituir o jornalismo.
Se isto serve em teoria, recordemos em concreto os contratos do Público, e as suas cláusulas. No caso da Biopolis, a troco de 90.000 euros, o Público comprometeu-se publicar “26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não está no Portal Base nem a ERC quis saber dele], que resultem de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis, entre os projectos científicos disponibilizados por esta, a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para contratos em causa. A publicação dos artigos daqui decorrentes far-se-á acompanhar da referência ‘Promovido por Biopolis”. E acrescenta-se depois que “o Público obriga-se ainda [é extraordinário um jornal obrigar-se a cláusulas a quem lhe dá dinheiros para escrever 26 artigos editoriais] ao cumprimento das seguintes obrigações:
- Sujeitar-se à verificação da Biopolis, no que diz respeito, em exclusivo, ao cumprimento dos prazos definidos;
- Prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que assim o requeira;
- Garantir os recursos humanos e materiais por forma a prestar o serviço contratado;
- Executar um serviço de qualidade;
- Executar o serviço, que lhe for adjudicado, com absoluta subordinação aos princípios da ética profissional, isenção, independência, zelo e competência;
- Garantir sigilo quanto aos dados pessoais de que tomem conhecimento com a prestação de serviço”
Quem – a não ser, claro, a administração, a direcção comercial e a direcção editoral do Público, e também os três membros do Conselho Regulador fora do prazo – pode achar normal este tipo de cláusulas ao melhor estilo de ‘vendilhão de templo’?
Alguém defender que quem assume um contrato desta natureza pode fazer jornalismo isento e independente, não está só a mercadejar o jornalismo; está a prostituir o jornalismo, porque isto é pornográfico. E, sobretudo, está a gozar com a cara de quem é jornalista e que não quer ver a credibilidade da classe assim conspurcada. Para manter empregos não vale tudo, sobretudo se se quer ser jornalista.
Aliás, perante contratos desta natureza, nem eu já sei, por exemplo, no caso concreto da secção Azul do Público, se os dois artigos da jornalista Patrícia Carvalho sobre projectos da Biopolis envolvendo o sisão – publicados em 29 de Junho e em 15 de Julho deste ano – se enquadram no contrato de prestação de serviços ou se foi uma ‘borla’, até porque nunca surgiu até agora, em qualquer artigo, a tal prometida referência a “Promovido por Biopolis”. O mesmo se aplica a uma notícia a promover um dos responsáveis pela Biopolis, o biólogo Nuno Ferrand de Almeida, escrita em 30 de Junho deste ano pela jornalista Teresa Firmino.
Aliás, o problema deste tipo de contratos no jornalismo é esse mesmo: havendo um contrato de prestação de serviços com uma entidade, a partir desse momento, como proceder? Se for feita uma notícia no âmbito do contrato sobre essa entidade passa a escrever-se “Promovido por Fulano de Tal”, e se for publicada de forma autónoma passa a aditar-se “Não promovido por Fulano de Tal”? Já viram a caixa de Pandora que se abre?
Quanto ao contrato entre o Público e a CCDR-N – uma entidade, repita-se, fortemente politizada –, a situação ainda se reveste de maior gravidade: a troco de 31.000 euros pagos no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.
Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.
No seu direito de resposta, hoje publicado no PÁGINA UM, e que foi escrito originalmente em 29 de Junho passado, o actual director do Público, David Pontes, teve a desfaçatez de escrever que aquele contrato de prestação de serviços “corresponde ao início de um processo e não ao seu resultado”, acrescentando que “na proposta apresentada pelo PÚBLICO e aceite pela CCDR-N, é salvaguardada a total independência do Azul e, ao contrário do que foi escrito, não há lugar a qualquer análise prévia dos conteúdos que os jornalistas irão fazer sobre os trabalhos de cooperação e investigação científica do espaço Atlântico”.
Dizer que um contrato público, depois de assinado, é para cumprir de outra forma, revestir-se-ia de enorme gravidade num país decente, mas a indecência prevalece sob o silêncio do próprio presidente da CCDR-N, que nunca respondeu às questões do PÁGINA UM. Sabe-se agora que o presidente da CCDR-N, António Cunha, assina contratos em que o ajdudicatário diz que o contrato não é para ser levado escrupulosamente a sério. Ou seja, o contrato é fake.
Mas, afinal, como evoluiu afinal este contrato de prestação de serviços entre o Público e a CCDR-N?
Pois bem, evoluiu para a mentira – ou, vá lá, para a omissão, que é a ‘siamesa’ da mentira. Além disso, foi um ‘brinde’.
Com efeito, entretanto, habemos podcast. No âmbito deste contrato, a secção Azul do Público criou um projecto denominado “Mudar o Atlântico em quatro vagas”, apresentado como sendo “uma série editorial sobre as potencialidades das regiões atlânticas europeias e os desafios que enfrentam a nível ecológico e de crescimento económico, social e territorial”. E acrescenta-se que “esta série editorial tem o apoio do Programa Espaço Atlântico 2014-2020”, surgindo depois o logotipo Interreg Atlantic Area.
E onde aparece a referência à CCDR-N?
Não aparece. Omite-se. Mente-se.
Se o objectivo não fosse mesmo esconder (com a conivência da própria CCDR-N) o contrato de 31.000 euros, dir-se-ia que o Público era ingrato, porque os podcasts não foram nada mal pagos, pois serão apenas quatro. O primeiro episódio, intitulado “Conhecer o oceano”, saiu no passado dia 5 de Outubro e basicamente foi uma conversa com dois oceanógrafos de 15:20 minutos. O segundo episódio, no dia 19, teve também duração de 15:20 minutos, e foi um quase monólogo de Pedro Sepúlveda, director de serviços de Acção Climática e Sustentabilidade da Direcção Regional do Ambiente e Alterações Climáticas da Madeira, sobre lixo marinho.
Presume-se que os dois episódios seguintes tenham também 15 minutos, o que significa que o contrato com a CCDR-N rendeu ao Público 31.000 euros por hora de emissão, sendo a existência de uma relação comercial com uma entidade da Administração Pública omitida aos ouvintes. Para o ‘frete’, o Público não encontrou nenhum jornalista da casa; e está a usar sim uma recém-jornalista freelancer, Inês Loureiro Pinto (CP 8264), que está assim a ser uma tarefeira para cumprir um contrato de prestação de serviços escindido dos ouvintes.
E, pronto, é nisto que se tem tornado o jornalismo nacional.
E sabem quais serão as consequências?
Com esta ERC, nenhumas. Com esta ética no interior da classe jornalística, nenhumas.
A única coisa que se pode aguardar, na verdade, depois deste meu texto, será um novo pedido de direito de resposta de David Pontes… se for mesmo um cara de pau sem vergonha.
P.S. No seu texto de direito de resposta, escrito em 29 de Junho, David Pontes escreve: “O Azul e o PÚBLICO pautam-se pela total transparência na relação com os seus parceiros, não tendo qualquer problema em revelar os contratos que firmam com eles, o que irão fazer muito em breve em local próprio“. Quase quatro meses depois, estou, estamos, a aguardar a revelação de tais contratos.