Ontem, o PÁGINA UM foi obrigado, pela segunda vez no espaço de uma semana, por deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a publicar um direito de resposta do director do Público, David Pontes. Em causa estiveram duas notícias factuais do PÁGINA UM que revelavam as promiscuidades comerciais entre este órgão de comunicação social e, no primeiro caso, entidades públicas (Biopolis e Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) com vista à prestação de serviços de ‘feitura’ de notícias de ambiente; e, no segundo caso, uma farmacêutica (Sanofi), com vista à ‘promoção’ de uma doença (infecções pelo vírus sincicial respiratório) para a posterior ‘promoção’ e venda de um fármaco.
David Pontes justificou, em ambos os casos, que as notícias – factuais e evidentes – do PÁGINA UM afectavam o “bom nome” daquele jornal. Sou de opinião de que o “bom nome” de alguém, ou de um jornal, é afectado sobretudo pelas suas próprias acções, e mal seria se um mensageiro ou um denunciante, dizendo a verdade, fosse agora culpado pela perda desse suposto “bom nome”. O jornalismo é, sobretudo, não assumir que o “bom nome” é algo perene, que não pode ser colocado em causa.
Bem sei que o instituto do direito de resposta é sagrado – e o PÁGINA UM só não o aceita de imediato, como sucedeu aos pedidos de David Pontes, quando, através dessa resposta, se transmitem falsidades sobre o meu trabalho e sobretudo se notar ali posturas de hipocrisia. Nesses casos, somente publicarei direitos de resposta sempre sob protesto, em consequência de deliberações da ERC.
Sobre esta matéria, e porque é vedada a possibilidade de contra-argumentar no próprio dia da publicação do direito de resposta, atente-se agora na parte final do texto de ontem de David Pontes: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais. A redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.”
Nem de propósito, enquanto escrevia este texto, decorre no auditório do Museu do Oriente uma conferência subordinada ao hidrogénio verde, a ser transmitida online, “promovida pelo jornal Público em parceria com as Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, com o apoio institucional da Associação Portuguesa de Energias Renováveis e da Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio e ainda tendo a Deloitte como parceira de conhecimento”. Assim é apresentada. E consta na secção Estúdio P, com a devida referência a “Conteúdo comercial”.
E é “Conteúdo Comercial” porque, na verdade, mesmo que se ouça ou leia “parceria”, há sim um pagamento pelos ditos “parceiros”, que, na verdade, recebem uma factura pela prestação de serviços, neste caso, a conferência com direito ao uso da chancela Público, como jornal.
Mas é aqui que a ‘porca torce o rabo’. e é aqui que muitos directores editoriais permitem a promiscuidade que somente uma torpe hipocrisia pode sustentar.
Pode defender-se que um jornal, ainda mais nestes tempos de multimédia, se comporte como uma estação de televisão ou uma rádio, fazendo conviver programas de entretenimento ou de formação – onde é mais do que aceitável e bastante justificável o patrocínio ou publicidade, devidamente identificados – com programas de informação. Porém, nos programas de informação ou com conteúdos informativos jamais é aceitável que surja directa ou indirectamente qualquer relação comercial externa com a actividade jornalística, mesmo se implicitamente mencionada sob a forma de “parceria”, porque isto é um eufemismo comercial para prestação de serviços a troco de dinheiro.
E, no meio disto, os jornalistas só podem fazer como o diabo fez à cruz: fugir dali a sete pés. O mundo dos jornalistas é fazer notícias; não é ser um funcionário comercial.
Ora, no jornalismo, tem de se ser como a ‘mulher de César’. E por isso quem diz: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais“, tem de ter noção do valor das palavras.
Assim sendo, quem acham que foi o mestre-de-cerimónias da dita conferência comercial sobre hidrogénio verde paga por um leque de empresas e associações?
Nem mais: David Pontes, director do Público – esse mesmo que, vamos lá repetir, escreveu que “no PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais”, e que garante que “a redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.”
Talvez não faça escolhas editoriais em função destes pagamentos – e talvez o facto de o Público ter publicado, ao longo dos últimos tempos, dezenas de artigos noticiosos sobre hidrogénio verde seja apenas por interesse editorial, e que, por exemplo, empresas como a Galp surjam agora sempre como paladinos do ambiente seja porque, enfim, são mesmo paladinos do ambiente.
Mas se David Pontes quer manter a aparência de jornalista impoluto – batendo no peito a sua independência e mostrando-se ofendido por acusarem o seu jornal de promiscuidades –, não convém então que vista a pele de lobo, querendo com isso parecer cordeiro.
Não convém nada que, por exemplo, apareça assim numa sessão de boas-vindas de um evento comercial – um dos tais que ele diz não sabe nada nem ter de saber –, a declarar logo no início: “Queria agradecer a todos os presentes e a todos os que fizeram esta conferência possível; obviamente aos nossos parceiros: a Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, a Deloitte, como nossa parceira de conhecimento, e ainda obviamente a Associação Portuguesa de Energias Renováveis e a Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio”.
Isto foi o que ficou gravado. E imagine-se aquilo que não ficou, entre salamaleques, enquanto a Público Comunicação Social S.A. facturava aos “parceiros” a credibilidade de um jornal com a presença do seu próprio director como mestre-de-cerimónias. Não é essa a função de um jornalista, muito menos de um director que quer ser credível, e que acha que o jornalismo se credibiliza com essa promiscuidades.
Enfim, o problema disto tudo não é só a hipocrisia; é estar a matar-se, assim, o jornalismo. E achar-se que o ‘mau da fita’ é o mensageiro e não o hipócrita que só torna a degradação ainda mais lastimável.