Título
A Tília - Aniversário
Autor
CÉSAR AIRA (tradução: Miguel Filipe Mochila)
Editora (Edição)
Cavalo de Ferro (Setembro de 2023)
Cotação
18/20
Recensão
Pode escrever-se uma autobiografia em dois contos? César Aira pode. E fê-lo com mestria, neste livro que nos conta a sua infância, no primeiro conto, e a idade depois dos cinquenta anos, no segundo.
A infância, em Pringles, foi marcada por uma árvore, a "Tília Monstra", porque era enorme: "(...) vinte tílias das outras fundidas numa não teriam feito esta. Eu dera-lhe o nome de "Tília Monstra”, diz-nos o autor, logo na primeira página.
Era à Praça da Tília que ia com o pai colher as flores para fazer chá: “O meu pai, consuetudinária vítima de insónia, ia à Praça com um saco, no começo do Verão, colher florzinhas de tília que depois secava e usava para fazer um chá que tomava à noite após o jantar. (…) E era bastante evidente que precisava daquilo, pois não houve homem mais nervoso do que ele. (…) além de nervoso, era irascível em último grau, sempre à beira de explodir, sempre em polvorosa. Bastava-lhe uma palavra, um gesto, e desatava logo aos berros como um louco furibundo. Precisava de muito menos para perder o controlo; subtilizava as causas até à magia; o adejar de uma borboleta no Japão provocava-lhe um ataque em Pringles.” A criança não saberia, mas o nervosismo do pai advinha do facto destes acontecimentos se passarem durante a presidência de Juan Perón.
O pai de Aira (“um peronista convicto”) desenvolve uma profunda ambivalência em relação à vida após a queda do governo de Perón. A sua mãe, por outro lado, torna-se uma antiperonista convicta e dada a discursos “difamatórios e verdadeiramente delirantes”. Aira oferece pistas sobre as causas subjacentes do suposto desacordo político entre os pais, mas, surpreendentemente, não explora esses factos e leva-nos, antes, a apreciar outros episódios que lhe aconteceram a ele enquanto miúdo, filho único, num bairro operário, e fá-lo de uma forma encantadora.
“A minha memória mais antiga do meu pai é vê-lo montado na bicicleta que usava para se deslocar para todo o lado na vila, até aos mais remotos confins, com uma longuíssima escada encaixada no ombro. A escada era o mais notável, e não creio que a cena me tivesse ficado gravada na memória se não estivesse presente. Era uma escada de madeira com pelo menos quatro metros de comprimento (não quero exagerar), e levar equilibrado semelhante trambolho na bicicleta devia requerer certa arte, ou pelo menos um hábito assíduo”. Ou então: “Em frente à casa havia um escritório de contabilidade onde passava os meus tempos livres. Fazia recados ao contabilista e ao empregado, que era seu sobrinho. Como o empregado faltava muito, o contabilista costumava deixar-me a tomar conta do escritório quando saía. A minha única função era estar ali e, se alguém viesse, dizer-lhe que ele saíra e que voltava já.”
Deu-se o caso dele e da família terem vivido num palácio abandonado, disputado numa questão de heranças que se prolongou durante anos, e que atiçou, também a imaginação do miúdo: “Todos os meus amigos viviam em casinhas mesquinhas e apertadas. A nós, sobrava-nos espaço, mas, num gesto de soberba dignidade de pobres, desprezávamo-lo e vivíamos num quarto. Até da galeria só usávamos o espaço correspondente ao nosso quarto. A mim, tinham-me proibido de entrar nos outros, embora a maioria não tivesse portas e fosse percorrida apenas pelos ratos.”
“Uma vez a minha mãe contou, a meio do incessante tagarelar que empregava para acalmar o meu pai, que quando foram viver para ali, logo após o casamento, usava a lareira para cozinhar, com fogo de lenha, como na Idade Média. Entusiasmei-me, com o histórico snobismo das crianças. Teria gostado de vê-lo. Pedi que preparasse uma refeição, nem que fosse apenas uma, ao velho estilo, mas ela não me deu tal prazer. Prometi a mim mesmo que, quando fosse grande, voltaria à Idade Média as vezes que quisesse, a despeito do progresso.”
No conto seguinte, o registo é completamente diferente. Uma conversa aleatória que teve com a mulher, enquanto passeavam e o leva a fazer esta declaração: “Tenho cá para mim que nos enganaram quando nos disseram que a sombra da Terra é que produzia as formas da Lua quando se interpunha entre a Lua e o Sol. Precisamente agora o Sol e a Lua estão ambos no céu, a Terra não se interpõe minimamente entre eles, e ainda assim não se vê completa. Mentiram-nos!”
A mulher esclarece que ele é que está enganado e isso leva-o a uma reflexão sombria sobre a juventude desperdiçada, por causa de toda a informação que reteve e que pode, eventualmente, estar errada, o que o leva a uma desconsideração artística do seu próprio trabalho que, por sua vez o leva ao seu futuro potencialmente sombrio.
Relembra que aos 40 anos iniciou um grande projeto, que implicaria um afastamento consciente dos seus “pequenos romances”, que ele considera marginais. Chama a esse projeto, Enciclopédia, imaginando-a como um livro abrangente de inúmeros conhecimentos. Mas aos 50 anos (é nos dias após esse aniversário que ele começa a narrativa), tudo o que ele tem é uma coleção de esboços e planos, sem uma única página manuscrita, e é improvável que este ambicioso projeto seja concluído. O conto passa a ser assim, também, uma profunda reflexão sobre a vida e o envelhecimento.