Quem foi assistindo, ao longo desta semana, às movimentações em torno da demissão do primeiro-ministro, após as diligências do Ministério Público na denominada Operação Influencer, está a ser ‘bombardeado’ com a ideia de que António Costa é a ‘camisa’ do Partido Socialista. Ou seja, por uma qualquer razão, que convém menorizar, desgastou-se, troca-se e continua-se com a mesma pele, o mesmo corpo, os mesmos procedimentos.
Não. António Costa não é um mero actor secundário de um partido que, desde o início da democracia – já lá vão quase 50 anos – compartilha a cena política, e a governação, de um país que ‘custa’ a desenvolver-se de forma ética e democraticamente saudável. António Costa é o pulso, ou melhor, o coração do actual Partido Socialista, até em termos históricos. Está na política que mexe desde 1995. São 28 anos, dos quais os últimos oito anos ele se serviu para ‘secar’ a ideologia de um Estado Social, substituindo-o por Estado Negocial.
Na verdade, nos últimos anos, em parte fruto da infalível ceifeira do tempo, o Partido Socialista moldado por António Costa perdeu todas as suas referências: hoje, não há ideólogos para ‘cantar os amanhãs’; hoje não há ‘senadores’; hoje não há referências, hoje, não há auto-crítica. Estou a falar de gente credível. Hoje, apenas temos negócios e negociatas.
Aproveitando uma comunicação social branda – fruto da crónica crise financeira dos media agarrados a um modelo de negócios de ‘prestação de serviços’ –, a máquina do Estado confundiu-se com a máquina do Governo. A Administração Pública, que serve os cidadãos, passou a servir o Partido Socialista.
Aquilo que vem sendo revelado pelas diligências do Ministério Público – corrupção financeira e moral, tráfico de influências, pressão sobre funcionários públicos, alterações legislativas a pedido, benefícios ilegítimos de interesses empresariais em claro prejuízo do interesse das comunidades – não é um caso isolado. É o quotidiano. Como jornalista desde os anos 90, foi um ‘choque’ confrontar-me com uma máquina administrativa tolhida por um Governo, onde tudo se esconde, onde as negociatas se ‘cheiram’ na forma como os contratos públicos – o ‘sangue’ dos nossos impostos – são elaborados.
No PÁGINA UM temos levantado o véu de alguns destes negócios, através da análise de contratos públicos ou mesmo na procura de informação, onde escritórios de advogados bem pagos pelo Estado se esforçam caninamente para manter o obscurantismo, para esconder o icebergue de corrupção que grassa o país.
Perante tudo isto, não consigo compreender, portanto, como possa ser possível – e até admissível numa democracia adulta – que o Partido Socialista possa passar incólume pela Operação Influencer, e sobretudo por aquilo que representa e exemplifica. Não pode o Partido Socialista sair incólume com elogios ao estadista António Costa que, independentemente da sua culpa pessoal, tem desde já enormes responsabilidades políticas, nem que seja pelo ‘legado cáustico” do Governo Sócrates, onde ele chegou a ser o número dois.
Não se pode assistir agora a um frenético passear de putativos candidatos a secretário-geral do Partido Socialista, onde até já despontam dois dos ‘coadjuvantes’ de António Costa, como são exemplo Pedro Nuno Santos (mas ninguém se lembra dos motivos da sua recente demissão?) e José Luís Carneiro. Não há ‘salvação’ possível, nem deveria haver perdão aceitável, para um partido que, depois do “pântano” de Guterres e da “cloaca” de Sócrates, leva agora, de novo, o país para os braços de mais uma etapa de uma crise crónica, de uma incessante crise moral, social e económica em que o Estado – dividido entre o Partido Socialista e o Partido Social Democrata – se esforça apenas para sacar o máximo possível dos contribuintes para distribuir o máximo possível entre os seus apaniguados e clientes.
Como escrevi no início, não pode ser admissível aceitar-se – mesmo sabendo dos alegados ‘perigos’ de uma viragem à direita, e o risco do crescimento da influência política de uma direita mais ‘radical – que o Partido Socialista saía de António Costa da mesma forma que o Partido de António Costa fez com José Sócrates. Não pode sequer ser aceitável sequer que, perante a gravidade das fortes suspeitas do Ministério Público –, o Governo ainda em funções mantenha pessoas como João Galamba ou Duarte Cordeiro, como se nada sucedesse.
Aliás, na verdade, nem António Costa deveria, moralmente, manter-se em funções de gestão governamental até às eleições legislativas. Politicamente, deveria estar ‘morto’ e enterrar-se, e o Partido Socialista ‘refundar-se’, fazendo uma ‘purga’ ideológica, de pessoas, de procedimentos. Mudar simplesmente Costa, como se fosse uma ‘camisa’ gasta, não assumindo que a ‘doença’ do Partido Socialista é o seu já disforme e irreversível ‘corpo’, pode a curto prazo servir os interesses corporativos que se têm alimentado do Estado nas últimas décadas.
Conseguindo convencer o eleitorado que basta trocar a ‘camisa’ Costa, mantendo-se o status quo, para assim evitar uma ascensão imediata da direita ao Governo – e fazendo até ‘ressuscitar’ a famigerada geringonça – pode até convencer o eleitorado a curto prazo. Mas apenas vai adiar uma solução para o país, que não passa por ideologias, mas sim por pessoas, ou melhor por corporações de políticos, como aqueles que António Costa foi alimentando no Partido Socialista, enquanto todos se banqueteavam com as benesses do Estado.
Tudo isto não nos deve impedir de olhar para uma alternativa a António Costa e ao Partido Socialista com apreensão. Mas mais do que temermos Luís Montenegro como primeiro-ministro (que, concedo, pode vir a ser pior do que Santana Lopes no seu efémero mandato) ou uma ascensão do Chega ao Governo (que a ocorrer será mais uma ‘lição’ para a forma como não se geriu a democracia pós-25 de Abril e não a uma colagem ideológica dos portugueses à extrema-direita), devemos sim temer mais anos de um Partido Socialista pós-Sócrates e pós-Costa com os mesmos vícios.
Talvez seja melhor, como cidadãos, que procuremos antes que o Estado – como entidade própria e ao nosso serviço – se proteja, e nos proteja, com instrumentos de controlo e fiscalização dos políticos, com o reforço da transparência, da estrutura do Ministério Público e do Tribunal de Contas, e com um aumento da celeridade e melhoria nas decisões por parte dos tribunais.
Numa democracia sólida, eu não temo nenhum partido. Numa democracia débil, eu temo qualquer partido, mas ainda mais aqueles que transformaram a democracia portuguesa numa coisa débil – como o fez António Costa e o ‘seu’ Partido Socialista nos últimos anos. E quem assim escreve ainda acredita no Estado Social, apesar de tudo.