Não desflorados, décadas de amarelecimento das páginas, e mesmo assim chegam-me as páginas ainda unidas, a clamar pelo canivete (liberta-me, liberta-me), a mão a folhear poemas envelopados, a voz do autor embargada em cada sussurro expirado pela margem aberta.
Da caixa aos teus pés a aguardar em Lisboa, e eu aqui, atolada, quem se mova muito em areias movediças fina-se (sossega, sossega!)
Deixa ver, deixa dar tempo. Dar tempo é importante no mundo e nas coisas e nas assaduras, em geral.
Ao passar de barco, sob a ponte, vejo uma mulher romântica que polvilhou sementes por cima do pilar da ponte, no embasamento de pedra, para ali nascer vida. E nasceu desde então, ali floresceu uma tenaz planta, enraizando-se na medula de argamassas, a beber do rio em suspenso, viçosa, de amplas folhas estendidas, a querer, a desejar, um regresso à mãe que estende a mão desde a guarda de ferro. E os navegadores mirando, no embasbacamento, cuidando ser mais seguro assassinar a planta, não vá uma fina raiz minar a estrutura.
Ao passar de barco, sob a memória, flutuando, vejo que uma mãe lava a louça de almoço cantarolando a Elis, como passarinho na gaiola. Passarinhos na gaiola, saberão de certo vocês, têm momentos assim. Desatam num canto contínuo, enorme, um clamor por ajuda ou que a voz se solte (liberta-me, liberta-me). Notas entrançadas no eco do azulejo e a água a correr na torneira (o movimento possível), mãos mergulhadas em espuma de um tacho sujo (o movimento do barulho da rua, do outro lado da janela) e a sublimação da solidão como precioso espaço onde se abre as asas (mulher romântica que estende a mão desde a guarda de ferro). Nascem plantas em pilares de pedra sobre as águas.
E depois do nada, silêncio.
Talvez durma. Talvez rumine os anos (e ali atolada, quem se mova muito em areias movediças fina-se).
Quem prende passarinhos em gaiolas, quem colhe flores no jardim, ou quem decepa plantas em pedras, não se apieda da vida que tira. Nem lhes ocorrerá que tiram vidas, simplesmente tratam de vida. É tratar, é andar, e arrumar. Cuidam que é cuidar (não é, não é), e por isso as linhas que lhes desenham as rugas, que estalam a pele, não se aparentam vilânicas; mostram-se, aliás, frágeis (porque os gatos têm inveja dos pássaros, já vos tinha dito).
Quem vê os passarinhos em gaiolas, desconcerta-se. Não sabem interpretar nem o silêncio nem o canto. Cuidam que abrir a porta é condenação (fascinação), e que tormenta se mostra o risco de deixar de ouvir o canto, quando o temos ali tão perto, tão seguro, tão garantido.
E afinal, dos livros não lidos, o poeta embarga-se no sussurro de cada página por desflorar. E o canivete vermelho, que jaz apreendido no balcão da autoridade, estremece para o virem libertar. Romper é preciso. Sem medo.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.