CAPÍTULOS 19-21

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Novembro 26, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


19 – O risco que se corre ao beber uísque do país errado

Os escritores, Batota, o garçom e eu formávamos um bolo compacto de gente ansiosa. Nossos olhos comiam cada centímetro de abertura, corriam para cima e para baixo, varriam o carpete e as paredes do quarto de Miguela de Alcazar.

– O que os olhos não vêem o coração não sente – disse Bugres, com forte entonação de desprezo.

Então, por fim, vimos Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon a cinco metros de nós, sentada numa confortável poltrona, junto à janela, lendo.

Respirei mais aliviado.

Naquela hora, pensei que, se quisesse retratar a paz, um artista bem que poderia pintar aquela cena: a empertigada mulherinha lendo, tranquila e concentrada.

O português sussurrou:

– Está tão entretida que se esqueceu do compromisso. Olhem que serenidade!

– Está pra lá de serena, meu – disse Foo Lee Shi Man. – Eu diria mais: está assustadoramente tranquila. Não, mano, eu diria: está mortalmente em paz.

As palavras do escritor chinês – autor de livros famosos como Guerra na Praça da Paz Celestial e Arroz envenenado – caíram como uma ducha de água fria sobre nós.

– Valha-me, Deus! – murmurou Batota e avançou pelo quarto.

Deteve-se a um metro da poltrona e, espichando o tronco, observou atentamente o rosto de dona Miguela. Por fim, voltou-se para nós e sussurrou:

– Parece não respirar.

– Caraca, malandro! – chiou Sim Et Non. – Na França, pessoa que não respira quase sempre está morta.

– A morte esteve por aqui – acrescentou Bugres. – Sinto seu cheiro no ar. Exala um odor pestilencial. A traiçoeira morte caminha silenciosamente como os tigres. Conheço-a há muitos anos, mas tenho conseguido enganá-la até hoje. Espero dar de cara com ela só depois que embolsar os dólares do Prêmio Nobel, se é que serei laureado. Com aquele dinheiro talvez consiga corrompê-la. Na América Latina até mesmo a morte é subornável. 

Concluída a frase, o argentino rompeu a gargalhar como um possesso.

– Bah, não tem nem dúvida – disse Dax Chamber. – A espanhola bateu com a alcatra na terra ingrata, deu com o rabo na cerca, defunteou-se, ou seja, passará a comer capim pela raiz.

– Cacete, mermão! – voltou Sim Et Non. – Este congresso não vai ser apenas teórico. Será prático também porque já temos uma morte pra desvendar.

– Bah, me deixem examinar a defunta – disse Dax Chandler, e saiu do meio do bolo em que estávamos imprensados. – Pode ser que essa velhusca esteja se fazendo de morta só pra gozar das nossas fuças.

– Nada disso! – berrou Batota e, metendo a mão no peito do americano, o empurrou para fora do quarto. – Eu bem sei que o Brasil não é um país sério. E por isso sei também que os brasileiros conhecem bem as leis, mas só para as contornar melhor. Porém, lembrem-se: somos estrangeiros e o melhor é chamar a Polícia. Afinal, o país é deles.

– Chamar a Polícia brasileira? – perguntou Foo Lee Shi Man. – Pra matar quem, meu?

– Calai-vos, por favor! Basta de piadas! – urrou o português e, depois de empurrar-nos a todos para o corredor, fechou a porta do 1313. – Ninguém entra neste quarto, e ponto final! Vossas senhorias deixariam marcas por todos os lados, só atrapalhariam a investigação dos peritos…

– Aprecio demais da conta o seu humor finíssimo – disse Águeda Christine, sorrindo pelo canto da boca, dirigindo-se ao luso. – Muito bem, ocê vai chamar peritos em quê? Em samba? Maracutaias? Ziriguiduns?

– Os espelhos não conseguem refletir o escaveirado rosto da morte – disse o poeta argentino e bateu a bengala no chão. – A eternidade foi aprisionada nos livros. O tempo não passa de uma execrável metáfora escrita nas listras de uma zebra. Não acredito na dupla imortalidade: ou morrerei eu ou morrerá o Outro, o Impostor.

– Nénada disso, sô – disse a escritora inglesa, encarando Bugres. – O seu uísque, meu véio, é que foi produzido no país errado. É por isso que ele lhe fez tanto mal. É por modo desse uísque qu’ocê está tendo essas visões.

– Caluda! – berrou Batota. – É extraordinária a vossa falta de humanidade! A mais famosa escritora espanhola morreu no meu hotel, e os senhores e as senhoras não param de dizer disparates. Silêncio, por favor! Vou ligar já para a Polícia!

clear drinking glass on brown wooden table

20 – Quando a matéria-prima é a tragédia

Mesmo durante o discurso do Batota os escritores não se calaram, é claro. Continuaram a entrecruzar diálogos nervosos enquanto Batota no telefone do corredor disparava ligações em busca de uma autoridade policial que se dispusesse a dar uma olhada na falecida.

Encostado na parede, fazendo cara de sonso, eu observava atentamente o que ocorria diante de mim: os olhares, gestos, tiques e cacoetes de todos os escritores. E, com o uso do gravador, registrava todas as frases pronunciadas ali. Frases que, se bem analisadas, teriam outro significado além daquele que o mero alinhamento das palavras parecia indicar. Frases que eu deveria escutar novamente, com atenção ainda maior, mais tarde.

Naquele momento eu me senti realmente um verdadeiro profissional do jornalismo em ação. Subitamente, minha reportagem ganhara intensidade, densidade e profundidade. Na minha cabeça já era uma reportagem que simplesmente se iniciava com a morte de uma das mais famosas escritoras de livros policiais do mundo. Era sorte demais! Do ponto de vista jornalístico, claro. O que posso fazer se a mais preciosa matéria-prima da minha profissão é a tragédia?

De repente, uma ideia penetrou na minha cachola com a fulguração e a contundência de um raio. Eu, Campestre de Campos Campelo, jovem e modesto repórter do Correio de Brasília, estava ali e era simplesmente o único jornalista de toda a vasta terra a presenciar um acontecimento histórico: a morte de Miguela de Alcazar na abertura de um congresso de escritores policiais.

Um tremor nervoso me sacudiu dos pés ao cabelo.

Imaginei então, naquele já distante fevereiro de 1978, que, no dia seguinte, as primeiras páginas de todos os jornais de todo o mundo exibiriam a minha assinatura. By Campestre de Campos Campelo, from Brasília. Pour Campestre de Campos Campelo, en direct de Brasília. E em outras línguas mais esdrúxulas e que desprezam as vogais. E abaixo das manchetes garrafais, meu texto. Nervoso, ágil e irônico. Vívido. Envolvente. Uma obra-prima de concisão e ironia, segundo o The New York Times. Só receava que, ao registrarem meu nome, errassem a grafia.  Por exemplo: que esquecem o P do último sobrenome.

Suspirei fundo para me livrar daquele delírio.

Perguntei-me em silêncio: de que terá morrido a maior escritora espanhola de todos os tempos?

Uma banal morte por velhice empobreceria o meu relato, mas um assassinato…

Eu queria travar os pensamentos que me acossavam, para me concentrar no que estava vendo, mas a minha excitação era muito grande. A reportagem que eu escrevesse a respeito daquela morte, morrida ou matada, fosse como fosse, seria vendida para o mundo inteiro e desviaria rios de dinheiro para o meu bolso. Em dois ou três dias, eu seria famoso mundialmente. E rico. Logo, minha reportagem seria editada em livro e adaptada para o cinema. Depois, o Nobel de Literatura e o Oscar. Adeus, miséria!

Suspirei outra vez mais, mais fundo ainda, para me limpar mesmo deste delírio.

– Vou dizer uma coisa pra vocês, macacada – anunciou Sim et Non, entre duas cachimbadas. – Miguela era uma figura muito venenosa. Tão venenosa que, se mordesse a língua, morreria por causa de sua própria peçonha. Portanto, por mim, está decidido.

 – A quenga era mesmo safada! – concordou Fedorova. E, depois de um grande gole bebido diretamente no gargalo da garrafa, acrescentou: – Ela não se contentava só em falar mal duma pessoa, tratava logo de humilhar também.

– Mas não será o esnobismo maledicente uma característica comum a todos os escritores ocidentais? – perguntou Foo Lee Shi Man, fingindo-se de tolo.

 – Bah, estamos mais parados que água de poço – lamentou-se Dax Chamber. – Ou a gente começa logo esse congresso ou investiga a morte de Miguela. Se ficarmos neste lero-lero, vou pro meu quarto escrever porque americanos estão sempre ocupados…

– Verdade! – comentou Águeda Christine. – Ocês estão sempre muito ocupados com batata frita e Coca Cola.

– Muié, tu qué insinuar que os americanos são todos barrigudos? – perguntou Fedorova.

– Nada disso, uai – reagiu a inglesa. – Americano é gordo por inteiro, da canela ao pescoço. Tudinho obeso. Pançudo a gente acha mais nos países pobres. É verme, minha fia.

– Quem trabalha duro, mano, são os chineses – comentou Foo Lee Shi Man. – Eu escrevo quinze horas por dia, seis dias e meio por semana. Aproveito as tardes de domingo pra ler jornais, pingar colírio nos olhos e aparar as unhas.

– O que é um jornal? – perguntou Jorge Luís Bugres, assim de repente. E ele mesmo respondeu: – Um museu de minúcias efêmeras.

a knife sitting on top of a piece of paper

21 – Morta mesmo antes de falecer

Aproveitei a deixa do argentino

– Por falar em jornalistas, senhor Bugres, eu lhe pergunto: o que pensa sobre a morte de dona Miguela?

– Respondo com outra pergunta: terá ela se defrontado com sua própria morte, pessoal e intransferível; ou terá sido alcançada por morte que lhe foi imposta por outrem?

Era uma frase forte demais para que eu não insistisse:

– O senhor acredita que dona Miguela possa ter sido assassinada?

Todos os escritores voltaram-se para o poeta argentino.

– Jornalistas! – exclamou Bugres. – Não posso vê-los, mas posso senti-los. Sempre afoitos, preocupados com insignificâncias… Mesmo assim, respondo com um poema esloveno, do século VII antes de Cristo.

Bugres limpou a garganta e recitou:

Apagou-se a mulher como uma vela

Seu coração era uma ardente chama

Azeitada de ódio, brilhante de rancor,

Que o Diabo para si reclama

Estávamos a deglutir as misteriosas palavras do poeta quando saltaram do elevador os policiais chamados por Batota.

Eram quatro. À frente, vinha a figura inconfundível do delegado Jerônimo Aroeira, titular da Primeira Delegacia, meu velho conhecido. Vestia-se de preto, com exceção da gravata borboleta, multicolorida. Por trás dele, estavam três policiais típicos: barrigudos, pescoçudos e mal-encarados.

– Quem é o responsável pelo hotel? – perguntou o delegado.

– Manoel Joaquim Batota, aqui estou às vossas ordens e para os vossos pedidos – o português estendeu a mão ao policial.

– Onde está a presumida vítima? – Aroeira fingiu não ter visto a mão do português.

Naquele dia, o delegado trazia duas cartucheiras cruzadas no peito, um fuzil no ombro e três granadas no cinto.

– O senhor parece estar preparado pra guerra, delegado – comentei.

– Eu estava numa guerra, gaúcho. Foi numa agência bancária no Setor Comercial Sul. Evitamos um assalto. De cara, matamos quatro, mas os bandidos sobreviventes fizeram alguns reféns. Lançamos granadas de gás lacrimogêneo e três outros criminosos se renderam logo. Dois deles resistiram e nós fomos obrigados a picotá-los a tiro. Mas, como sabe, só recorremos à violência em última instância.

– A polícia brasileira é competente demais da conta – comentou Águeda Christine em voz baixa. – Proteja-nos Nossa Senhora!

– Mal botei o ponto final na operação, recebi ordem do secretário de Segurança pra vir imediatamente até aqui – continuou Aroeira. – Parece que temos aqui um óbito de qualidade internacional…

– Era uma famosíssima escritora espanhola – explicou Batota. – Das maiores do mundo.

– Onde está o corpo?

– Aqui dentro – o português abriu a porta do apartamento 1313.

– Esse bagulho aí? – o policial avançou na direção do cadáver. – Aposto meu pescoço que já estava morta antes mesmo de falecer. Com que idade estava?

– Noventa e seis anos, que eu saiba – respondeu Batota.

– Morreu em boa hora, que Deus a tenha – Aroeira benzeu-se e, apontando para os escritores, indagou de Batota: – Você desconfia de algum dos integrantes desse clube da terceira idade?

– Fale baixo – sibilou o português. – São estrangeiros, mas falam todos a nossa língua. E também são famosíssimos escritores de livros policiais.

Black Cat Walking on Road

(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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