CAPÍTULOS 22-24

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Dezembro 3, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


22 – Turistas estrangeiros têm o péssimo hábito de morrer no Brasil

Jerônimo Aroeira lançou um olhar de desprezo aos escritores, e depois voltou a encarar a falecida.

– Vi milhares de mortos ao longo da minha carreira – disse o delegado. – Os que se vão naturalmente desta vida têm no rosto um ar de triunfo. Veja esta cara enrugada! Parece estar dizendo: bem-feito pra vocês, que ficaram aí nesse vale de lágrimas.

– É verdade – concordou Batota. – Dona Miguela devia estar muito feliz na hora da morte.

– Já os assassinados têm sempre uma expressão de contrariedade – o delegado se pôs a andar pelo quarto. – Ninguém gosta de ser despachado às pressas deste mundo.

 – Sem dúvida – admitiu Batota. – Ser empurrado para fora da vida é algo muito irritante.

– Bem, mesmo estando certo da morte natural. Enviarei pra cá os homens da Perícia Criminal – acrescentou Jerônimo Aroeira. – Afinal, não é todo dia que eles têm um cadáver de alta categoria pra autopsiar.

– Precisamos provar que dona Miguela teve morte natural – insinuou em voz baixa o gerente. – Se alguém levantar suspeitas de um homicídio, a imagem do hotel fica beliscada.

– Devíamos proibir a entrada de estrangeiros no Brasil – filosofou Aroeira. – Morrem por qualquer coisinha, às tantas até de resfriado. Turistas estrangeiros só nos dão dor de cabeça. Gastam pouco dinheiro aqui, e depois ainda costumam ter o hábito de morrer atropelados por motoristas bêbados ou então fuzilados por assaltantes. Isso quando não se metem na frente de balas perdidas.

– Sim, temos de passar a aceitar apenas turistas imortais – palpitei. – Porque, mesmo quando eles morrem de causas naturais, os jornais do exterior sempre arranjam um jeito de atacar este pobre  nosso país, tão pacífico e seguro.

– Você continua metido a engraçadinho, gaúcho? – indagou o policial.

– Ganho pouco, delegado. Preciso me divertir de vez em quando.

– Não há divertimento melhor do que lambuzar a bunda de mel e sentar-se sobre um formigueiro – recomendou-me Aroeira. E, voltando-se para Batota, indagou: – Quer dizer que toda essa velharia que está aqui no corredor escreve livros policiais?

– Sim. Vieram de todos os cantos do mundo, de propósito para um congresso aqui em Brasília. Desejavam conversar sobre novas tramas para os seus livros policiais, as modernas técnicas de assassinato e como criar personagens marcantes.

– Se visse esse povo na rua, diria que são fugitivos de uma clínica geriátrica ou de um hospício – comentou o delegado enquanto se encaminhava para o corredor, seguido pelos seus auxiliares.

Os agentes de Aroeira ostentavam grossas correntes de ouro nos pulsos e no pescoço. Meganha sem corrente ou pulseira de ouro é como criança pobre sem vermes, dizia meu pai.

Da porta do elevador, o delegado ainda gritou: – Seu gerente, não deixe que ninguém entre no quarto antes dos peritos! Depois, se for constatado que a velha foi assassinada, eu volto!

Table setting with candles and skull

23 – Preferência pelos assassinatos em série

Pouco depois da saída de Jerônimo Aroeira, já reunidos em torno da grande mesa redonda, destinada inicialmente ao debate das mais altas questões literárias, os romancistas decidiram investigar o caso.

Quem começou a conversa foi Águeda Christine:

– Gente, se todos os policiais brasileiros forem do nível desse delegado, o índice de esclarecimento de crimes não deve ser dos mais altos. Ele acha que Miguela morreu de velha. Esse moço parece não ter um espírito científico muito forte.

– Discordo – disse Sim Et Non, sorrindo cinicamente. – Ele está tão preocupado com os aspectos científicos que, inclusive, mandará vir a Perícia. Cada macaco no seu galho.

– Sim, deve pertencer à elite dos investigadores brasileiros – constatou Fedorova ao mesmo tempo em que olhava a garrafa contra a luz para ver o tanto de bebida que ainda havia dentro dela. – Ele até me lembrou bastante o chefe da Polícia de Moscou, Frascóvio Ilitch Botelhowhisky, que inventou uma técnica porreta de investigação. Antes do interrogatório, ele pega o suspeito pelo gogó, dá-lhe uns tapas na cara e diz: “Ô cabra, ou tu bebe uma garrafa de vodca todinha ou te espremo os bagos”. Quase sempre o sujeito prefere preservar os colhões, mas fica totalmente bebum e confessa o crime, mesmo não o tendo praticado.

– A gente podia adaptar essa técnica para o Brasil – palpitei. – É só trocar a vodca por cachaça.

– É, de fato, um método bom e barato – ajuntou Fedorova. – O chefe de polícia anterior ao Frascóvio costumava meter a porrada nos amarelos, mas a posterior internação deles em hospital saía muito cara.

– Bah, que coisa mais ignorante! – meteu-se Dax Chamber. – Nos Estados Unidos dominamos as melhores técnicas de investigação. Ficámos um país rico porque nosso povo tem espírito científico. Somos pragmáticos e eficientes. Se me derem cinco minutos, descubro o que levou Miguela ao outro mundo. Americanos fazem tudo mais rápido e gastando menos dinheiro.

– Em se tratando de morte, ninguém parece ser mais eficiente que os americanos – concordou Bugres. – Bons atiradores, eles matam dezenas de pessoas todos os dias em variadas chacinas nas escolas, estacionamentos ou supermercados. Mas, vejamos, na literatura, a eficiência não é atributo relevante. Embora os serial killers dos Estados Unidos matem mais gente em menos tempo, eu prefiro os assassinatos em série praticados na Inglaterra. Têm mais apelo literário.

– Que conversa furada, mano! – chiou Foo Lee Shi Men, entediado. – Quem sabe apostamos pra ver quem descobre primeiro o motivo que levou dona Miguela à morte?

Dax colocou a mão no ombro de Batota:

– Seu gerente, será que a gente não podia ficar uns minutinhos na cena do crime, depois da Perícia. Só pra fazer uma investigaçãozinha. – Está bem – concordou o português. – Mas tenho de convencer os peritos para vos deixarem entrar no quarto. Não vos dou grandes esperanças, porque eles vão sentir-se ofendidos. Os brasileiros não gostam muito de trabalhar, mas ficam furiosos se alguém lhes propõe fazer de maneira eficiente aquilo que eles costumam fazer de má vontade.

Criminologist

24 – Debate sobre a secreta natureza dos defuntos

Para nossa grande surpresa, até pelas últimas palavras de Batota, os agentes da Perícia Criminal – um fotógrafo e um agente –  não demoraram a chegar.

 E mais rápidos foram no trabalho. O retratista encerrou seu trabalho em um segundo: fez uma foto da morta e cruzou os braços.

– O senhor não gostaria de fazer mais fotografias? – indagou Batota, cordial. – Dona Miguela era muito famosa. Certamente, no futuro, jornalistas e historiadores virão a Brasília para examinar o laudo policial. Seria assim melhor se houvesse…

– É uma foto por defunto, meu chapa – bocejou o fotógrafo. – Ordem da chefia da poupar. Aqui, em Brasília, matam doze figuras por dia. Dá um filme certinho. Quando matam mais de doze, os últimos ficam sem o retratinho póstumo, entendeu?

– Claro, mas no caso…

– Para mim, morto é todo igual – o retratista bocejou de novo. – Olhe essa velha! Nem com maquiagem pesada a cara dela melhora.

Quando o gerente do hotel lançou um olhar desalentado na nossa direção, resolvi apoiá-lo. Gritei então para o fotógrafo:

– Amizade, o negócio é o seguinte: essa morta é famosa pra cacete no mundo inteiro. As agências de notícias pagarão o que tu quiseres pelas fotos. Com essa grana, depois, poderás até trocar de bicicleta.

A minha informação chegou rapidamente ao cérebro do indivíduo. Mesmo dando ares de contrariado, ele sacou a máquina e desembestou a flashar dona Miguela de tudo quanto era ângulo.

Igualmente sacudido pelas minhas palavras, o outro agente, de posse de uma trena, começou a mostrar serviço, medindo furiosamente o apartamento. Verificou a distância da morta à cama, à janela, ao armário, à porta. Depois, anotou a distância entre os diversos móveis. Tudo o que antes não fizera.

– Estou agora comovido com a dedicação do “topógrafo”, meu – murmurou Foo Lee Shi Men. – Será que ele desvenda muitos crimes com aquela trena?

– Ele não é pago pra desvendar nada – meti minha colher torta. – O coitado ganha um salário tão mixuruca que o máximo que exigem dele é que faça relatórios legíveis. No caso, com números legíveis.

silhouette of two birds on top of building during sunset

(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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