Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
25 – Vergonha é roubar e não poder carregar
Finda uma muito demorada medição, na lateral, na longitudinal e até na transversal, o “topógrafo” dirigiu-se ao Batota:
– A perícia está concluída, chefe. O povo que recolhe o corpo vem mais tarde.
– Quando? – indagou o português.
– Não posso precisar. É provável que venham ainda hoje…
– Mas é claro que tem de ser hoje! Não tem outra forma.
– Essa questão não é com a gente. É com o pessoal do Instituto Médico Legal.
– E eles costumam demorar assim tanto? – indagou Batota.
– Não quero assustar o senhor, mas eles sempre demoram – respondeu o agente. – Eles têm dois rabecões, que nunca funcionam ao mesmo tempo. Sempre um está avariado. Quebra uma peça, eles substituem com a do outro carro. Um dia, por milagre, os dois rabecões estavam funcionando. Aí, faltou dinheiro pra gasolina.
– Mas isso é uma vergonha!
– Vergonha é roubar e não poder carregar – retrucou o fotógrafo, belicoso.
O português ia replicar, mas eu lhe fiz um sinal para que ficasse calado. E murmurei, pelo canto da boca:
– A demora vai ser boa pra nós, seu Manoel. Poderemos investigar o local com calma.
Depois que os peritos embarcaram no elevador, o lusitano interrogou-me:
– As perícias nesta cidade são sempre assim, tão malparidas?
Respondi:
– Eu, se fosse o senhor, mudaria a pergunta. Indagaria: as perícias aqui em Brasília são sempre assim, tão minuciosas?
– Mas esses sujeitos não constatariam o assassinato de Mikahilucha mesmo que ela tivesse sido morta por um tiro de canhão – comentou Fedorova. E tomou um gole imenso para repor a saliva gasta naquela frase.
– Concordo com o jornalista – disse Águeda Christine. – Esses peritos só se esmeraram muito porque a morta é famosa demais da conta.
– Bah, vou então ser o primeirão a investigar – disse Dax Chamber. – Fui eu que tive a ideia.
– Sem essa, meu irmão – estrilou Sim Et Non. – Que tal fazer um sorteio?
– Sorteio? – perguntou Bugres. – Por que não um azareio? A vida dos homens é regida pelo azar e não pela sorte.
– Que o destino escolha nossos nomes em pedaços de papel! – disse Foo Lee Shi Man e rasgou uma folha. – Vou escrever nossos nomes aqui. Um sorteio decidirá a ordem de entrada no quarto… Bem, somos seis…
– Sete! – berrei. – Sou o único brasileiro aqui. Exijo que o Brasil seja representado nessa investigação. Basta de colonialismo!
– E os peritos, uai? – perguntou Águeda Christine. – Por acaso, eram suecos?
– Eram funcionários públicos – contra-argumentei. – Funcionários públicos não contam para nada, em nenhum país do mundo. E acho que o Brasil ainda faz parte do mundo. Ou não?
Para minha surpresa, um longo e generalizado silêncio, recheado de cabeças que assentiam, patenteou a aceitação da minha tese.
– Vamos logo, tchê – disse Dax a Foo. – Estou mais nervoso que galinha agarrada pelo rabo. Hoje mesmo começo a trabalhar duro num livro sobre a morte de Miguela de Alcazar.
– Deixe de ser bobo, sô – ralhou Águeda Christine. – No Brasil, o único trabalho duro que essa gente faz com gosto é comer rapadura.
Por incrível que pareça, fui o primeiro a ser sorteado. Pela ordem, vieram depois os papéis com os nomes de Dax, Fedorova, Águeda Christine, Sim et Non, Foo e Bugres. Parecia cena de um roteiro de filme. Ou de um guião, como dizem os torcedores do Benfica.
26 – Recordando a aula sobre a beleza do crime
Depois da surpresa, o pânico. De repente, tremi na base.
Representar dignamente meu país naquela investigação, diante de tão destacados concorrentes, mais do que um desafio, seria um dever patriótico indeclinável.
Bem, confesso que não sou dos mais patriotas. Cheguei a torcer pela seleção argentina de futebol num jogo contra a nossa. Sei que muita gente morreu por menos que isso. Mas o jogo foi no auge da nossa ditadura militar e eu acreditava que o regime cairia se a seleção brasileira fosse massacrada. E tem mais: o nosso treinador era antipático.
Tendo então resolvido pedir ajuda ao gerente, peguei-o pelo braço:
– Seu Manoel, nós dois, que falamos a língua do divino bardo que escreveu Os Lusíadas, precisamos juntar forças. Que tal unirmos a esperteza portuguesa à inteligência brasileira!
– Não seria melhor unirmos a esperteza brasileira à inteligência portuguesa? – reagiu ele.
– Seja como for! – respondi entusiasmado. – Imagine se conseguimos desvendar a morte de Miguela de Alcazar antes desses gênios da criminalística! Seria a glória para a comunidade das nações lusófonas.
– Não sei se é isso uma boa ideia, pá – o português vacilou.
– Mas o senhor me deu aquela magnífica aula sobre a beleza do crime perfeito!
– Era aula teórica. Na prática, a coisa muda de figura. Não percebo nada de crimes. Desconfio até dos mortos.
– O senhor é muito modesto! – empurrei-o para dentro do 1313. – Entre!
Entramos, ou entrámos, como falam do outro lado do Atlântico. Como já disse, a cena proporcionaria um belo quadro a Velázquez. A velhota estava recostada na poltrona a mirar com olhos vagos um exemplar da Bíblia que sustentava, aberto, nas mãos. Lembrei de Medalhão lendo o Eclesiastes.
Aproximei-me da morta e lancei um olhar ao livro, que estava aberto na última página, de número 1313. O fim do Apocalipse.
– Isto é coincidência demais pra ser apenas coincidência – murmurei.
– Qual coincidência? – quis saber Batota.
– A Bíblia está aberta na página 1313, que é o mesmo número deste apartamento.
– Minha Nossa Senhora de Fátima! – o português persignou-se. – Já não estou a gostar da brincadeira. Isto é sobrenatural, com certeza. Até fico com os cabelinhos do sovaco em pé.
Inclinando-me sobre a defunta, percebi que havia uma pequena tira de papel solta na página 1313. Discretamente, peguei-a.
– É um bilhete! – excitado pela descoberta, passei-o a Batota. – Vamos ler! Leia!
27 – Há lugar para todos na lista de suspeitos
O tal bilhete estava escrito em português, em letras de forma, tremidas como se rabiscadas por alguém muito velho ou nervoso.
Batota o leu em voz baixa para que ninguém – além de mim, é óbvio – o escutasse:
Durante o Congresso, eu te desmascararei, Miguela. Apontarei os trechos dos vários livros que plagiaste ao escrever O touro maltês.
A assinatura era uma só letra: S.
– Raios! Não há dúvida! Este bilhetinho é a prova que dona Miguela foi assassinada! – concluiu logo o português.
– Não prova nada – retruquei. – Mostra apenas que ela corria o risco de ser desmascarada por alguém. Ou que alguém a queria chantagear.
– E quem será esse misterioso S? – perguntou ele.
– Poderia ser o S de Shi, ou de Sim et Non.
– Sem dúvida!
– Mas poderia ser também o S de Strandford – acrescentei. – É o sobrenome de solteira de Águeda Christine.
– Que loucura! – exclamou Batota. – Assim, só ficam de fora o argentino e o americano.
– O americano, não! – estrilei. – Ele é conhecido no seu país como Dax “Speedy” Chamber. Em português, seria: Dax “Ligeirinho” Chamber.
– Então, só fica de fora o argentino – concluiu o portuga.
– Esse não! – gritei. – Ele estará em qualquer lista de suspeitos que eu fizer porque tem dois esses perdidos no meio do seu nome.
– Mas também valem agora os esses espalhados pelo nome? – indagou Batota, olhando-me pelo canto de olho. – Nesse caso, Campestre de Campos, tu entras também para a relação dos suspeitos. Só eu, Manoel Joaquim Batota, estou livre dessa letra fatídica.
– Justamente por isso, por ser o único aqui que não tem a tal letra no nome, o senhor é suspeitíssimo.
– Era o que faltava! Disponho de várias testemunhas a meu favor! Tenho um bom álibi. Desde o início desta manhã, não estive um só momento sozinho.
– Também tenho um álibi – retruquei. – Desde que entrei neste hotel, estou ao seu lado. Ou seja, estamos juntos desde quando o senhor ameaçou me matar…
– Esquece aquilo. Foi uma brincadeirinha. Porém, vi que, quando chegaste ao hotel, antes de entrares no prédio, foste ao jardim. Durante esse tempo, poderias ter escalado a parede, entrado no apartamento de dona…
Aquela afirmação me indignou. Eu tinha ficado um só minutinho no pátio. E exercendo uma tarefa romântica: curtir o aroma da terra molhada pela chuva!
– E o que fazia o senhor antes de chegar à portaria do hotel, onde tentou arrancar-me o braço?
– Ora essa! Eu estava no meu escritório, mais precisamente no quarto de banho do meu escritório.
– Num local onde nunca há testemunhas, não é?
– Tu és paranoico, pá! Do gênero dos que veem pentelhos até em bolas de bilhar.
– Se ocorre uma morte num congresso de escritores policiais – retruquei –, até mesmo um pacato português tem de virar suspeito.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).