Estudos utilizados por políticos para impor o uso de máscara por crianças durante a pandemia, por supostamente impedir a transmissão do vírus, sofrem de enviesamento que implicou conclusões incorrectas. Na conceituada revista Archives of Disease in Childhood, do Grupo BMJ, uma revisão sistemática de artigos saídos no auge da pandemia (e das restrições políticas) conclui que, afinal, “dados científicos não apoiam o uso de máscara em crianças para proteção contra a covid-19”. Os investigadores destacam sobretudo os prejuízos no desenvolvimento emocional e da linguagem das crianças pela imposição das máscaras em crianças, sentenciando que “na Medicina, novas intervenções com benefícios desconhecidos, mas riscos conhecidos ou potenciais, não podem ser eticamente recomendadas ou aplicadas até que a ausência de danos seja demonstrada”. Recorde-se que em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde impôs a obrigatoriedade do uso de máscara a crianças com mais de 10 anos, nas longas horas de aulas na escola, nos estabelecimentos de saúde e nos transportes. Recomendou ainda “fortemente” o uso de máscara por crianças entre os seis e os nove anos”, no interior e no exterior.
Foram meses infindáveis de imposições de restrições sobre crianças e jovens durante a pandemia, que implicou o encerramento de escolas, a imposição de máscaras faciais e um afastamento social, que incluiu, até a ‘invenção’ de chapéus que impedia a aproximação. As ‘medidas’ foram então, desde 2020 até 2022, justificadas como necessárias para controlar a covid-19 e fundamentadas supostamente na Ciência. Foi erro, assim conclui uma revisão sistemática publicada na revista científica Archives of Disease in Childhood, do grupo editorial BMJ, assinado por seis investigadores dos Estados Unidos, Reino Unido e Dinamarca, incluindo um professor da prestigiada Universidade de Stanford.
Mas a Ciência não é infalível, porque feita por homens e mulheres com virtudes e defeitos, e nem sempre aquilo que inicialmente sai é infalível; pode ter erros (involuntários e intencionais) ou enviesamentos que originam más conclusões, e que serão depois corrigidos, com mais tempo e maior ponderação, pela própria Ciência. Sendo natural tal processo, o pior é quando a Ciência quer dar respostas imediatas e insofismáveis porque há uma ‘narrativa política’ que precisa de sustentação de cientistas. E houve muitos que se predispuserem a fazer ‘má Ciência’, e acabaram agora por ser ‘arrasados’ pelo artigo publicado na semana passada sob o título “Child mask mandates for COVID-19: a systematic review“.
Recordando que ainda existem países e entidades governamentais que continuam a recomendar o uso de máscaras, os investigadores salientam que isso “parece ser inteiramente baseado em dados observacionais que encontram associações com taxas de casos mais baixas em indivíduos mascarados versus não mascarados, mas não leva em conta as potenciais consequências adversas, especialmente em crianças pequenas, incluindo, mas não se limitando, ao impacto na fala, linguagem, aprendizagem, saúde mental e factores fisiológicos”. Os investigadores relembram que “o reconhecimento das expressões faciais é fundamental para a capacidade das crianças de comunicar, compreender e demonstrar emoções”, além de que “o uso da máscara também pode causar dificuldades respiratórias, dores de cabeça, dermatite, desconforto geral e dor”.
Mas se estes efeitos adversos eram já reconhecidos, embora sempre minimizados pelas autoridades, entre as quais a portuguesa Direcção-Geral da Saúde, a grande novidade deste artigo científico publicado na passada semana acaba por ser a descoberta de que os estudos observacionais usados para impor as máscaras em crianças continham erros científicos graves.
A partir de uma análise preliminar de quase 600 artigos científicos sobre máscaras, os investigadores identificaram um total de 22 estudos observacionais, concluindo que “16 estudos não encontraram nenhum efeito do uso de máscara na infecção ou transmissão [por covid-19]”. Quanto aos restantes seis estudos “que relataram uma associação entre o uso de máscara infantil e menor taxa de infeção ou soropositividade para anticorpos”, cinco apresentaram um risco crítico de viés e um sofria de risco grave. “Todos os seis [estudos] foram potencialmente confundidos por diferenças importantes entre os grupos mascarados e não mascarados e dois demonstraram ter resultados não significativos quando reanalisados”, frisam.
Nos 16 estudos científicos que não encontraram uma correlação significativa entre o uso de máscara por crianças e a infecção e transmissão do vírus, um (6,3%) tinha um potencial risco de enviesamento “crítico”, 10 (62,5%) tinham um risco grave e cinco (31,3%) tinham um risco moderado, baixo ou nenhum.
Os investigadores são, por isso, taxativos: “como os benefícios do uso de máscara para covid-19 não foram identificados, deve-se reconhecer que as recomendações de máscara para crianças não são suportadas por evidências científicas”. “Nesta revisão sistemática, não encontramos nenhuma evidência de benefício de mascarar crianças, para se proteger ou aqueles ao seu redor, da covid-19”, afirmam os investigadores.
“A eficácia no mundo real dos mandatos de máscaras infantis contra a transmissão ou infeção por SARS-CoV-2 não foi demonstrada com evidências de alta qualidade. O actual conjunto de dados científicos não apoia o uso de máscara em crianças para proteção contra a covid-19”, concluem ainda.
Segundo o artigo científico, os estudos observacionais que relataram “uma associação negativa entre o uso de máscara e taxas de covid-19 não conseguiram demonstrar um benefício quando factores que provocam confusão foram adequadamente considerados”. Já estudos observacionais maiores, “incluindo uma análise de regressão-descontinuidade e uma reanálise mais robusta de uma publicação anterior bem como outros estudos observacionais, não encontraram benefício do uso de máscara contra a covid-19”.
Estudos observacionais em adultos, adiantam ainda os investigadores, “também falham repetidamente em se ajustar adequadamente para factores que provocam confusão para evitar enviesamento”. Apontam também que um estudo observacional de Boston afirmou que se poderia inferir causalidade entre o levantamento dos mandatos de máscara escolar e o aumento nos casos [de covid-19] de alunos e funcionários usando um método de controlo de ‘antes e depois’. “No entanto, uma reanálise subsequente questionou a metodologia e os resultados deste estudo e não encontrou a mesma associação ao expandir a população para incluir todo o Estado ou usar análises estatísticas diferentes, e também descobriu que os resultados do estudo inicial provavelmente foram confundidos por diferenças nas taxas de infeção prévia”, salientam.
Os investigadores referem, de igual modo, que “estudos observacionais também não conseguiram encontrar uma associação entre o uso voluntário de máscara entre adultos nas escolas e menores hipóteses de haver covid-19 na escola ou entre mandatos de máscara ou uso de máscara e transmissão reduzida”. “Além disso, uma revisão sistemática mostrou uma taxa de infecção secundária 10 vezes menor nas escolas em comparação com ambientes comunitários/domésticos”.
Em Portugal, na pandemia de covid-19, a Direcção-Geral da Saúde, então liderada por Graça Freitas, impôs a obrigatoriedade do uso de máscara a crianças com mais de 10 anos, nomeadamente nas longas horas de aulas na escola, nos estabelecimentos de saúde e nos transportes. “Nas crianças com idade entre seis e nove anos, e para todas as que frequentam o 1.º ciclo do ensino básico independentemente da idade, a utilização de máscara comunitária certificada ou máscara cirúrgica é fortemente recomendada, como medida adicional de proteção, em espaços interiores ou exteriores”, indicaram as normas da DGS durante a pandemia.
Além de não existirem benefícios associados, os autores do artigo de revisão sistemática, salientam que o uso de máscara por crianças pode ter afectado “o desenvolvimento emocional, do discurso e da linguagem”, podendo incluir ainda “desconforto físico, contribuindo para a redução do tempo e da intensidade do exercício e das atividades de aprendizagem”, sendo “os efeitos a longo prazo demasiado precoces para serem medidos”.
Os investigadores salientam ainda, nos efeitos adversos, que se “descobriu também que o uso de máscara leva a um rápido aumento no teor de CO2 [dióxido de carbono] no ar inalado – maior em crianças do que em adultos – e a níveis acima dos padrões de segurança aceitáveis para trabalhadores adultos saudáveis, que podem aumentar ainda mais com o esforço físico”.
“Em resumo”, continuam, “a obrigatoriedade de uso de máscara em crianças falha numa análise básica de risco-benefício”, concluindo que “recomendar o uso de máscara infantil para evitar a propagação da covid-19 não é suportado pelos dados científicos actuais e é inconsistente com as normas éticas aceites que visam fornecer proteção adicional contra danos para populações vulneráveis” numa pespectiva social, ademais sabendo-se que a covid-19 tinha uma taxa de letalidade virtualmente de zero em crianças saudáveis.
Os investigadores recomendam assim que “os adultos que trabalhem com crianças devem ser educados sobre a falta de benefícios claros e os potenciais danos de colocar máscaras em crianças, e não há evidências científicas que apoiem uma recomendação para o uso de máscara nessas profissões”.
Também recomendam que médicos e enfermeiros sejam “educados sobre a ausência de dados de alta qualidade que apoiem o uso de máscara para reduzir os riscos de infeção e transmissão por SARS-CoV-2”.
Para realizar este artigo científico, os investigadores pesquisaram e analisaram bases de dados até fevereiro de 2023. Os estudos seleccionados foram alvo de uma análise de risco de enviesamento realizada por dois revisores independentes e julgada por um terceiro avaliador.
No total, foram selecionados 597 estudos e incluídos 22 na análise final. Os investigadores relataram que não houve estudos clínicos randomizados e controlados em crianças para avaliar os benefícios do uso de máscara para reduzir a infeção ou transmissão por SARS-CoV-2.
No caso dos adultos, o artigo científico recorda que “há apenas um número limitado de estudos randomizados publicados de uso de máscara e prevenção da covid-19”. O estudo “DANMASK-19 não conseguiu encontrar uma redução de 50% nas infeções por covid-19 em utilizadores de máscaras cirúrgicas na comunidade”.
Um outro estudo randomizado no Bangladesh “não encontrou nenhum efeito do uso comunitário de máscara de pano em infeções por covid-19, nenhuma redução do uso de máscara cirúrgica para qualquer pessoa com menos de 50 anos e apenas uma redução marginal entre pessoas de mais de 50 anos e no contexto do distanciamento físico imposto por observadores, uma associação que foi considerada insignificante após a reanálise”.
Num outro estudo, “predominantemente de adultos, de quase 40.000 participantes a partir dos 10 anos (mas não relatado por faixa etária e, portanto, não incluído em nossa revisão sistemática), não houve diferença na doença ou mortalidade semelhante à covid-19 entre grupos mascarados e sem máscara”.
Os investigadores lembram ainda que uma revisão sistemática feita pela prestigiada Cochrane, publicada em 2011, ou seja muito antes do surgimento do SARS-CoV-2, já constatara de forma semelhante que o uso de máscaras cirúrgicas e respiradores em adultos tem “pouco efeito na transmissão de vírus respiratórios, enquanto os efeitos colaterais incluíram desconforto”. Na versão atualizada de 2023 dessa revisão, que incluiu covid-19, essas conclusões permaneceram inalteradas.
O artigo científico sentencia, por fim, que “na Medicina, novas intervenções com benefícios desconhecidos, mas riscos conhecidos ou potenciais, não podem ser eticamente recomendadas ou aplicadas até que a ausência de danos seja demonstrada. Em vez disso, o padrão aceite é que uma intervenção só deve ser empregada depois de ter sido demonstrado o benefício, idealmente através de um estudo clínico randomizado, juntamente com dados de segurança para garantir que os benefícios comprovados superam os danos”, sendo “o ónus da prova de que uma intervenção é segura e benéfica é da responsabilidade da pessoa, instituição ou organismo que executa e recomenda essa intervenção”.