Visão da Graça - opinião de elisabete tavares

Global Media e a ameaça de extinção dos jornalistas (aka ‘uns tipos de uns sites’)

por Elisabete Tavares // Dezembro 16, 2023


Categoria: Opinião

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Cá em casa, gostamos de ver o ‘velhinho’ filme Jurassic Park e as suas sequelas. Num dos filmes da saga, a fuga acidental de um dinossauro cheio de garras e armado de dentes afiados lança o caos num moderno parque temático, quando este se encontra apinhado, com milhares de visitantes.

Um grupo de vilões com más intenções, que tinha já ‘um pé’ dentro da organização que geria o parque, vê naquela situação de crise uma oportunidade para tirar lucros e assume o poder. Nessa altura, vê-se então que o parque servia não só para entreter multidões de visitantes mas também servia interesses privados obscuros ligados à indústria de armamento. O principal cientista – que criava os dinossauros – estava comprado pelos ‘maus’ e era parceiro dos vilões.

Este enredo faz-me lembrar o que se passa com a Global Media e com o estado dos grupos de comunicação social, em geral. Os ‘vilões’ já lá tinham um pé e apenas agarraram a oportunidade para assumir o controlo. Os interesses comerciais e também políticos, ou ideológicos, comandam.

Imagem de uma cena do filme Jurassic World.

A crise criou a oportunidade. Em geral, hoje não se faz Jornalismo nos media mainstream – ou os grandes órgãos de comunicação social que distribuem notícias para as massas. Eles são híbridos: produzem muitas notícias, reportagens e entrevistas que foram encomendadas, ‘conteúdos’ que são feitos no âmbito de contratos de parceria comercial, sem que os leitores/ telespectadores/ ouvintes percebam bem isso. Tudo nas barbas dos reguladores e do sindicato.

Os interesses comerciais tomaram de assalto as redacções. Os directores de hoje são marketeers a moderar conferências e talks e estão demasiado próximos do poder político, económico e financeiro. Depois, os media mainstream têm uma agenda de cobertura de acontecimentos e temas que é dominada pela agenda política e agenda financeira e de empresas. Ou seja, a maior parte da agenda dos media é feita por … gabinetes de comunicação e spin doctors que trabalham para políticos e para empresas.

Acresce a isso a praga do churnalism (sobre a qual já aqui escrevi aqui, no PÁGINA UM), o ‘corta e cola’ de notícias da Lusa, dos outros meios de comunicação social e de comunicados de imprensa e sobra pouco para fazer Jornalismo. Poucos jornalistas disponíveis, poucas páginas nos jornais, pouco tempo nos espaços informativos das TV’s e das rádios.

sheep, flock of sheep, row

Outro fenómeno é o facto de os grandes meios de comunicação social operarem segundo uma lógica de ‘manada’, ou de ‘matilha’, consoante as circunstâncias.

Em ‘manada’, quando vão uns atrás dos outros na cobertura noticiosa. Onde vai um, vão todos. Se um cobre ‘assim’, o outro cobre ou não cobre ‘assado’ nem ‘cozido’. Todos parecem mais ou menos iguais.

Em ‘matilha’, quando todos atacam um alvo em simultâneo. Estes ataques, na forma de blitz, são executados pelos media, mas muitas vezes não são meros acasos, mas ataques pensados e orquestrados por gabinetes de comunicação que trabalham para governos, organizações ou empresas e visam abater um concorrente, um adversário ou algo ou alguém que consideram ser uma ameaça aos seus lucros e interesses.

Veja-se o que aconteceu quando nasceu o PÁGINA UM e publicou investigações na área da saúde, tendo de imediato sido alvo de uma campanha de difamação, com notícias falsas a serem divulgadas quase em simultâneo por muitos dos media mainstream nacionais.

Hyenas in Savannah

Este ‘hibridismo’ e modus operandi, além de trair o Jornalismo, tem sido extremamente nefasto para os jornalistas e para a Imprensa. E para os consumidores de informação. (Já sobre a actuação em ‘matilha’, obviamente que é condenável e abjecta a todos os níveis.)

Tanto no caso da actuação em ‘manada’, como na actuação em ‘matilha’, falta algo importante: racionalidade; pensamento crítico; ética; e Jornalismo. A bestialidade tem vindo a tomar conta das redacções, engolindo jornalistas e o Jornalismo quase por inteiro. O histórico jornalista Fernando Dacosta falou, num debate recente, sobre o fenómeno do ‘jornalismo’ acéfalo. Esta postura acrítica de se estar nas redacções, longe dos tempos em que intelectuais enchiam os quadros de pessoal dos jornais.

É neste cenário e contexto que chegamos então à grave crise na Global Media, dona de títulos como o histórico Diário de Notícias, o Jornal de Notícias, a TSF, o Jogo e o Dinheiro Vivo. (E aqui deixo uma declaração de interesses, pois fui jornalista neste grupo entre meados de 2017 e o final de 2021, assinando no DN, no JN, no DV e fazendo entrevistas na TSF.)

selective focus photography of people sitting on chairs while writing on notebooks

Podemos falar, claro, na sucessão de accionistas que por lá foram passando, que, além de ligações políticas, também foram deixando um rasto de cortes e decisões ‘estratégicas’ destrutivas – como retirar o DN de banca. Podemos e devemos analisar a forma como a diminuição das redacções tem tido um forte impacto na qualidade do trabalho lá produzido. Não se fazem omoletas sem ovos. Ou na contratação, ao logo dos anos, a peso de ouro, de ‘estrelas’, jornalistas e comentadores ‘amigos’, que são, sobretudo, despesa. Este último ‘mal’, é comum em muitos meios mainstream nacionais.

A explosão das redes sociais e do consumo de informação (e publicidade) no meio digital não explica toda a crise que afecta os grandes grupos de comunicação social. Há falta de dinheiro mas os grandes media nacionais também têm esbanjado dinheiro em ‘projectos’ e em ‘amigos’ e estão demasiado colados aos poderes instalados, tanto políticos como financeiros e empresariais. E isso nota-se.

Para quê comprar uma subscrição num jornal que representa mais os poderosos do que os leitores? Para quê subscrever jornais que escrevem praticamente as mesmas coisas e publicam os mesmos ‘takes‘ da Lusa?

egg, hammer, hit

No meio do caos, os ‘vilões’ aproveitaram a oportunidade: corrompendo o trabalho das redacções; pondo de parte o Jornalismo; colocando na liderança directores que estão alinhados e até podem ganhar prémios por desempenho comercial. O Jornalismo sai derrotado. Os jornalistas que não são despedidos, saem desmoralizados, cansados.

Na maioria dos grupos de comunicação social, os jornalistas não são respeitados. Os leitores não são respeitados. Prevalecem os interesses comerciais.

José Paulo Fafe, presidente-executivo da Global Media, traiu-se a si próprio numa entrevista recente, ao mostrar o que pensa realmente dos jornalistas e dos jornais, ao referir-se a Pedro Almeida Vieira – jornalista, fundador e director do PÁGINA UM –, como ‘um tipo de um site’. O PÁGINA UM é um jornal digital, com notícias online, como também são as edições online do DN e do JN. Pedro Almeida Vieira já trabalhou no Expresso, na Grande Reportagem e no DN.

pile of newspapers

Para este tipo de CEOs de grupos de media, para muitos directores do departamento comercial, para políticos e banqueiros, os jornalistas são hoje uns meros ‘tipos de um site’ que eles usam a seu favor. Só os jornalistas ainda não perceberam isso.

No filme Jurassic World, o ‘vilão’ mais perigoso não era, afinal, o dinossauro cheio de garras e dentes mas a rede de interesses militares e comerciais. Nos media, o ‘vilão’ mais perigoso não é o ‘dinossauro’ gigante que é o Google ou o Facebook – em relação aos quais existem ‘armas’ e soluções.

Nos media, o maior ‘vilão’ é a rede de oportunistas que assaltou as redacções e colocou na liderança de jornais, rádios e TVs funcionários ‘alinhados’ para usar os meios de comunicação social em seu benefício, fazendo cobertura enviesada de temas e implantando assuntos e entrevistas sugeridas. Na pandemia, isso foi mais do que evidente.

white and black typewriter on table

Destruir o Jornalismo interessa a todos os que queiram ter mais poder e mais lucros. E isso tem estado a ser feito de forma sistemática nas redacções.

No filme (alerta de spoiler), morre muita gente, entre trabalhadores do parque e visitantes. Morrem muitos dinossauros ‘bons’. Morrem também ‘vilões’, mas não todos. O cientista escapa num helicóptero topo de gama, junto com muitos ‘activos’ que roubou do laboratório. O parque fica destruído para sempre, sem qualquer réstia de credibilidade.

No sector dos media, directores podem escapar para novos cargos dentro ou fora do sector, levando indemnizações simpáticas, depois de terem conseguido pagar casas novas e piscinas e alcançado a fama nas TVs. Jornalistas e comentadores ‘estrela’ também se ‘safam’ com outros ‘amigos’. Activos que ainda existam, são vendidos. Os jornalistas, esses ficam sem emprego. É o pagamento que recebem por terem fechado os olhos e ficado em silêncio durante anos, perante o subverter do Jornalismo e os assaltos às redacções pelos interesses comerciais e políticos. É o pagamento pelo facto de os jornalistas permitirem que os tratem anos a fio como ‘uns tipos de uns sites’.

Person Holding Canon Dslr Camera Close-up Photo

No sector dos media, o assalto último ainda pode estar a ser preparado, se, aproveitando a profunda crise, uma voz sussurrar que o Estado deve ‘salvar’ grupos de media. Então, o poder político anunciará a criação de uma criativa ‘bondosa’ e ‘generosa’ solução que ‘alguém’ propôs, que passa pelo contribuintes injectarem mais dinheiro em grupos de media, depois das injecções já feitas durante a pandemia, do financiamento via publicidade estatal e ‘parcerias comerciais’ pagas por entidades públicas.

Tudo isto para ‘o bem comum’, para o ‘bem’ do ‘jornalismo’, o qual será feito por ‘uns tipos’ desesperados quaisquer que, no final, acabarão, na mesma, por ser engolidos pelo dinossauro gigante e mau.

Elisabete Tavares é jornalista


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director subscreve até as gralhas.

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