CAPÍTULOS 28-30

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Dezembro 17, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


28 – Especulação sobre a existência de um mundo ainda pior

Enquanto Batota, parecendo magoado com o que eu dissera, fazia beicinho de choro, eu me concentrei na observação do rosto de Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon.

A velha tinha os olhos abertos, como se realmente estivesse lendo. Pareceu-me serena, embora fosse difícil detectar qualquer expressão num rosto com tantas rugas.

Uma mantilha preta, rendada, cobria-lhe metade da cabeleira incrivelmente negra. Milagre das tinturas modernas.

Ao observar melhor o pescoço dela meu sangue gelou. Aquilo que me parecera uma minúscula sarda isolada não era uma sarda. Olhando bem de perto, percebi que era vermelha demais para ser sarda. Então me caiu a ficha. Aquilo era uma gotinha de sangue, bem em cima de uma grossa veia azulada. Percebi a seguir que, no meio da gota, havia um furinho quase invisível. Como a polícia não tinha visto aquilo?

Mil e uma hipóteses explodiram no meu bestunto. Pensei inicialmente em mordida de cobra venenosa. Mas só se fosse cobra desdentada porque as mordidas delas sempre deixam dois furos.

Pensei depois em uma seringa. Uma injeção de veneno? Mas por que no pescoço e não num braço?

Mas aquilo poderia ser também uma mordida de mosquito coçada até sangrar…

Devorei livros policiais em demasia. Como conheço todos os truques, meu cérebro fervilhava. As hipóteses se sucediam na minha mente com a rapidez de bombeiros embarcando em um caminhão de sirena ligada.

– Que fazemos com o raio deste bilhetinho? – o português cortou-me as reflexões. – Entregamos ao delegado?

Não quis dar a Batota a minha descoberta.

– Vamos guardá-lo conosco – eu disse. – Ele funcionará como chamariz para atrair o assassino, se é que houve assassinato. Quando souber que o bilhete está conosco, o matador da espanhola virá para cima de nós, e, aí, nós o pegaremos…

– Ou ele mata-nos antes – completou Batota, assustado. – Ao descobrir que o bilhete está conosco, poderá mandar-nos desta para melhor.

– Ou pior – ponderei. – Reconheço que nosso mundo não é dos melhores. Tem guerras, miséria e muita fome. Mas eu, como pessimista fanático, penso que, se existir outro mundo, ele só pode ser bem pior.

– Deixa-te de filosofices! – atalhou-me o gerente do hotel. – Vou agora deixar que os escritores examinem a cena do crime. Mas ficarei atento. Aquele que olhar a Bíblia com maior interesse passa a ser o suspeito número um, porque, de certeza, estará a procurar o bilhetinho.

– Cuidado com essas lógicas simples, para não acusar inocentes! – eu o adverti. – O mais provável é que todos se interessem por esta Bíblia, que parece muito antiga e certamente é de uma edição rara…

Não pude concluir a frase. Tive que correr atrás do português, que, em largas passadas, voltava ao salão.

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29 – Gaúcho macho limpa lágrima com tapa

Três dos escritores – Sim et Non, Dax e Foo – estavam à mesa rabiscando. Certamente já esboçavam romances baseados na misteriosa morte de Miguela de Alcazar.

De cabeças baixas, Águeda Christine e Fedorova caminhavam ambas com as mãos às costas. Ou atrás das costas, como dizem os lusitanos de gema e de clara.

Com o nariz quase roçando a parede, aparentemente interessado em descobrir falhas na pintura, Bugres recitou:

– Todos os corredores nos conduzem a um labirinto, onde nos perderemos. Nós e o nosso outro eu. Às vezes morremos nós; às vezes, o outro. Sempre alguém acaba definhando na solidão dos labirintos.

– Bah, tchê, não se trata só de uísque ruim – gritou Dax Chamber. – O castelhano se faz de louco pra passar bem.

Dax era grande conhecedor de uísque. Seus olhos permanentemente raiados, sua papada vermelha e seu bafo de tigre eram sinais de sua intimidade com o licor escocês. Segundo notícia que li num tabloide inglês, não se passava um só dia sem que ele secasse duas garrafas. De litro.

Parado na porta do salão, Batota ergueu a voz:

– Venha, senhor Dax! Chegou a sua vez de investigar o quarto de dona Miguela.

O americano levantou-se com esforço. Era gordo do tipo gelatinoso, recoberto por uma larga camada de banha trêmula, mais concentrada na cintura, tinha braços muito finos e compridos, que nasciam de ombros estreitos. Visto de costas, lembrava um losango.

Apesar de ter escrito mais de cem obras, Dax era famoso especialmente por três livros: Atire antes e pergunte depois, Não abra a porta nem para o carteiro e Chumbo não derrete como gelo.

– Como é que o senhor aprendeu a falar tão bem o gauchês, seu Dax? – perguntei, quando chegávamos ao apartamento 1313.

– Foi em Nova Iorque, tchê. Conheci um gaudério de Camaquã que vendia churrasquinho pelas esquinas. Me enturmei com ele. Aprendi a falar até com o jeito de maconheiro de Porto Alegre, mas me amarro mesmo é no sotaque do pessoal de Uruguaiana.

O americano limpou a garganta com três pigarros e recitou com o carregado sotaque do povo do Pampa:

Virabosta é preguiçoso,

Mas velhaco passarinho;

Pra não fazer seu ninho,

Se apossa do ninho alheio;

Este há de, segundo creio,

Seguir o mesmo caminho.

– Que diabo é isso? – perguntou o Batota. – Também estará a enlouquecer o senhor Chamber?

– Ele recitou “Antonio Chimango” expliquei, comovido. – É o mais belo poema da minha terra.

Uma furtiva lágrima escapou-me do canto do olho para a bochecha. Limpei-a com um gesto viril, um tabefe. Depois, com voz trêmula, dirigi-me ao americano:

– Sua pronúncia, seu Dax, é louca de especial.

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30 – Procurando alguém que sinta vertigens

Largas passadas levaram o americano rapidamente para junto do corpo da espanhola.

De saída de bola, ele enfiou um par de luvas de borracha, que retirou do bolso da calça. E, sem que perguntássemos, explicou:

– Uso luvas por questão de segurança. Vocês, cucarachas, não gostam de nós, gringos. Se eu deixasse impressões digitais aqui, vocês se serviriam delas, depois, pra me incriminar. Seria a glória para vocês, se eu fosse preso nesta cidade. Só assim um país de quinta categoria como o Brasil poderia ser citado no New York Times.

– Temos tradição em incompetência e corrupção, mas não em canalhice! – reagi em voz alta. De vez em quando, como todo imbecil, sofro uns ataques de nacionalismo. – Dizer-me isso na cara não é só paranoico como revela megalomania. Nós, brasileiros, somos chegados a um jeitinho, é verdade. Preferimos a praia ao escritório, sim. Mas não somos, de modo algum, cretinos.

Indiferente à minha indignação patrioteira, Dax afastou-se do cadáver e foi explorar a vasta janela envidraçada, da qual se avistava o jardim do hotel. Só então notei que havia alguns galhos roçando a vidraça. O americano tentou abrir a janela, mas não conseguiu.

– A janela está perra por causa da ferrugem – explicou Batota.

– Entonces o animal não passou por aqui – comentou o escritor, e tomou notas numa cadernetinha.

– Animal? – perguntou Batota, espantado. – O senhor acredita que um bicho possa ter matado a dona Miguela?

 – Nada disso, tchê – Dax voltou-se para o gerente do hotel. – Animal, na elegante linguagem dos gaúchos, é o mesmo que ser humano, gente. Na verdade, eu me referia ao sujeito que fez a limpeza do apartamento. Se ele tivesse passado por aqui, a janela não estaria emperrada.

– O que o senhor quer dizer com “sujeito que fez a limpeza”? – perguntei. – O senhor se refere aos empregados do hotel que fazem a faxina do apartamento ou a um possível ladrão que, além matar dona Miguela, teria roubado alguma coisa?

Intrigado, o americano me olhou de alto a baixo. Ou não entendera a minha pergunta ou a entendera bem demais e ficara impressionado com a minha argúcia.  Não me respondeu. Anotei este detalhe na minha caderneta.

Indiferente ao que se passava entre Dax e eu, Batota comentou:

– É preferível mesmo que a janela fique permanentemente trancada, pois o quarto tem ar-condicionado.

– Buenas, se a janela pudesse ser aberta, a gente teria que encontrar logo uma pessoa que sente vertigens – comentou Dax.

– Por quê? – indaguei. – Ora, se uma pessoa sente vertigens, é óbvio que ela não se aproximaria da janela.

– Mas é exatamente por isso, bagual! – explicou-me o americano. – Precisaríamos encontrar essa pessoa para tirar o nome dela da lista dos suspeitos.

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(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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