CAPÍTULOS 31-33

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Dezembro 24, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


31 – O repórter sucumbe à doença infantil do antiamericanismo

Um a zero para o americano. O danado tinha me passado a perna. Uma onda de furibundo ardor nacionalista subiu-me do ventre ao pescoço. Eu precisava restabelecer minha condição de cidadão de uma nação de espertinhos. Nós, brasileiros, é que somos especialistas em gozar a cara dos outros.

Passei a torcer para que Dax se interessasse pela Bíblia da falecida. Seria um indicativo de que ele sabia da existência do bilhetinho. Mas o americano não dava bola para o livrão. Girava pelo quarto e fazia anotações – com suas grandes mãos enluvadas – num caderninho.

– Livro muito interessante este, não é, seu Batota? – comentei, tentando atrair a atenção de Dax.

– Que livro, ó pá? – perguntou-me, desatento, o português.

– A Bíblia! – respondi em voz alta.

Dax, que estava analisando a arrumação da cama, mordeu a isca:

– Bíblia? Livro muito chinelão. Até meio mal escrito. Tem personagens demais, pouca ação, linguagem enrolada e enredo confuso. É obra de amador, tchê!

Não demorei em reagir à análise tão depreciativa:

– Mas é o livro mais lido e vendido em todo o mundo!

– Também, com a equipe de propagandistas que ele tem! São milhões de padres e pastores ameaçando bilhões de pessoas todo domingo. Se não lerem a Bíblia, vão virar churrasco no inferno!

Dois a zero para o gringo, reconheci. A continuar assim vai dar cabazada, como os portugas dizem no futebol quando se tomam muitos gols sem resposta. 

Calado, concentrado, Dax vasculhou o gigantesco guarda-roupa, os criados-mudos e o interior do frigobar. Finalmente, voltou para junto do corpo da escritora espanhola.

– Estranhou alguma coisa, senhor Dax? – perguntou Batota.

– Muitas.

– O senhor poderia dizer-me quais.

– Não! De jeito nenhum. Vivo disso. Ganho uns trocos com esse tipo de coisa. Com base nos detalhes estranhos que percebi, escreverei um livro que se chamará Um cadáver lê a Bíblia.

– Não será pecado ganhar dinheiro com uma obra que tenha esse título? – indagou o gerente do hotel.

– Bah, se a gente olha com atenção, todas as formas de ganhar dinheiro são, na verdade, variadas espécies de trapaça – filosofou Dax. – No fundo, todos nós lutamos pra acalmar o estômago. A diferença essencial é que uns poucos matam a fome com filé e a grande maioria se contenta com carne de pescoço.

– Os americanos comem todo o filé produzido no mundo – provoquei. – Deixam só a pelanca para os outros.

– E daí, tchê, qual é o teu problema? – retrucou Dax, irritado. – Por que tu não vais te queixar ao Papa?

Batota puxou-me para perto da porta e sussurrou:

– Que tens tu, pá? Sofres da doença infantil do antiamericanismo? Por que ficas para aí a chatear o senhor Chamber? Que mal te fez ele?

Também em voz baixa, respondi:

– Eu o ataco porque ele é um cara muito suspeito. Usou luvas!

– Não vejo nada de estranho que se use luvas durante uma investigação, pá.

– Raciocine, seu Batota! Digamos que dona Miguela tenha sido assassinada. Se durante a investigação forem encontradas aqui impressões digitais de Dax, ele dirá que elas foram “plantadas” e pedirá nosso testemunho. Seremos obrigados a dizer que ele usava luvas. Compreendeu? Tudo não passou de um álibi para ele se livrar de um crime que pode ter praticado!

– Porra, miúdo! – espantou-se o português. – Estou a ver que ou és um gênio, mais sagaz que Sherlock, ou então és uma besta quadrada!

Depois de fuzilar-me com um olhar inamistoso, o americano deixou às pressas o apartamento 1313.

closeup photo of USA flag

32 – A profunda afeição dos russos pelos frascos

De acordo com a ordem estabelecida no sorteio, Fedorova foi a segunda a investigar o apartamento de dona Miguela.

A russa já entrou nele debulhando-se em lágrimas. Chorava aos berros, lacrimejava aos jarros.

A chuva lacrimal era ruim para a – perdoem o cacófato! – estética dela. O riacho de lágrimas atravessava as cavernas de rímel dos olhos e corria desembestado pela planície carmim das bochechas.

Logo surgiram duas manchas irregulares, puxando para o marrom, nas laterais do rosto da escritora eslava. As manchas nasciam afastadas, uma de cada olho, mas juntavam-se embaixo do queixo largo e, depois, pingavam da papada flácida para o chão.

Segurando na mão direita a garrafa de pinga que recebera do garçom míope, e tendo ainda encalacrado entre os beiços um toco do formidável charuto, a camarada soviética rugia:

– Oh, minha pequenina Mika da muléstia, por que os deuses dos infernos vieram até este país carnavalesco pra te arrebatar de nós, teus pares? Por que os céus determinaram tua morte justo hoje quando nos encontramos reunidos em torno do ardente samovar da literatura?

Eu bebia com interesse o que dizia ela no seu arrastado e fanhoso sotaque cearense, mas me perguntava: para que todo esse show?

Como eu sabia que Fedorova e Miguela não se amavam tanto assim, conclui que aquela performance decorria da excessiva ingestão de sumo de cana.

Depois de ajoelhar-se diante do corpo de Miguela, Fedorova soltou a garrafa no carpete, levou as mãos aos cabelos e se pôs a puxá-los. Arrancou uns bons chumaços.

Além dos gritos, lágrimas e extração capilar, de vez em quando ela dava murros no próprio peito. E, como pessoa possuída por espírito ruim, perorava entre baforadas:

– Embora tenhas nascido no berço de ouro da burguesia exploradora, eu sei que tu, Mikhaila da peste, amavas os mujiques do teu país! Tua morte é uma grande perda para a literatura do crime!

Não demorei a perceber que, apesar da autoflagelação cenográfica, a russa observava atentamente o cenário. Seus rasgados olhos cinzentos corriam pelo rosto da morta, pela sua roupa e arrastavam-se pelo chão ao redor do cadáver.

De repente, me deu um estalo. Fedorova estava reproduzindo diante de nós trechos do célebre monólogo do arrependimento tardio de Raspadecova, a criminosa de Contravenção e penalidade. Sim, porque depois de matar a velha usurária, Raspadecova fala dela com muito carinho. Afinal, a megera está morta. E a morte, na Rússia, como no mundo todo, redime as pessoas. Lá como cá, todo canalha em vida vira gente boa quando veste o paletó de madeira.

Sempre chorando, a novelista eslava levantou-se. Pegou o cinzeiro, mas não bateu nele o charuto para livrá-lo da cinza. Não! O que fez foi aproximar dele o seu monumental narigão para farejar resquícios de tabaco.

A seguir, agachou-se e examinou demoradamente embaixo da cama. Depois passou aos armários, cujas portas escancarou, sempre discursando em voz alta:

– Vejam, amarelos, como Mikhaila mantinha em ordem o danado do seu apartamento! Sua mala está aqui dentro, fechada. E parece que ninguém forçou a fechadura. De que morreu, ó deuses, a doce Mikólia?

– Como sofre essa pobre rapariga! – sussurrou-me Batota, de olhos marejados. – A senhora Fedorova é realmente uma alma sensível, é um ser muito mais humano.

– Todas as pessoas são igualmente humanas – contestei. – Mas não se emocione com a encenação, seu Manoel. Sem drama, a vida não tem graça para os russos. Na verdade, creio que ela já está rabiscando mentalmente o livro que escreverá depois sobre o assunto. Essa choradeira toda certamente será incorporada ao texto.

– Como podes estar a ser tão cínico, meu pelintra? Estamos a presenciar aqui o mais comovente sofrimento, fruto derivado de sincera admiração e companheirismo, e tu vens falar-me de encenação…

a very tall building with a clock on it's side

33 – Livre dos padecimentos e turbações da terra

A nossa discussão, entre mim e o português, ou entre eu e o português – nem sei como escrever, maldita língua! -, foi interrompida por novas e interessantes frases pronunciadas pela escritora de São Petersburgo:

– Para onde terão ido as pequeninas garrafas de uísque que deveriam estar em cima da tua geladeirinha, Mikahilichenka? Teriam sido roubadas pelos cossacos ou pelos tártaros?

– Viu como nada lhe escapa? – sussurrei ao português. – Ela já descobriu que os agentes de Aroeira embolsaram as garrafinhas.

– Que monumental poder de percepção tem esta rapariga! – espantou-se Batota. – Como deu ela pela falta das miniaturas?

– Pelo faro – expliquei. – Russos sentem o cheiro de birita mesmo quando as garrafas estão muito bem arrolhadas.

– Para de falar mal dos russos, primata! – sibilou Batota. – Não te lembras de Tolstói, Tchecov e Gógol?

– Mas eu até gosto muito dos russos – confessei. – Aliás, Brasil e Rússia se parecem muito. São países enormes e igualmente atrasados. Lá como cá vigoram a mais desenfreada corrupção, a violência extrema e a miséria mais hedionda. Mas nós temos uma grande vantagem sobre os russos: a cachaça deixa o sujeito mais alegre enquanto a vodca inclina o seu bebedor mais à melancolia.

– Chega de baixa sociologia, chica!, pá! – impacientou-se o gerente do hotel. – Deixa-me degustar a alta qualidade literária das amargas lágrimas de Fedorova Smerdlova.

Então, como se estivesse esperando que nos calássemos, a robusta senhora eslava salmodiou:

– Oxente, a morte se encontra instalada no coração do regime capitalista. Será que Mikachenka se suicidou por ter entendido que o Ocidente está vertiginosamente descendo a ladeira dos valores humanos como um jegue sobrecarregado com odres de pinga?

Aquela fala foi demais para o emotivo Batota, que resolveu entrar no jogo cênico de Fedorova. Rosto lavado por lágrimas, o conterrâneo de Fernando Pessoa ajoelhou-se diante do cadáver de Miguela de Alcazar e, com a mão espalmada sobre o poderoso torso, recitou, em altos brados:

Alma minha gentil que te partiste,

Tão cedo desta vida, descontente

Repousa lá no céu eternamente 

E viva eu cá na terra sempre triste.

Fedorova voltou-se para Batota:

– Hoteleiro da muléstia, enquanto recitavas o lírico Camões, eu me vi transportada à Rússia milenar, onde florescem os girassóis! Senti que anjos me retiravam deste quarto, entre cujas paredes se aninhou a famélica e sedenta morte, e me conduziam por entre nuvens…

A mais contagiosa das doenças é um mal que não tem cura, mais conhecido como loucura. A desembestada maluquice da russa tinha despertado a dormente demência de Batota.

Tudo o que relato passou-se na minha frente. Era como se eu estivesse escrevendo um livro e, de repente, enlouquecidos, os personagens tivessem assumido o controle da narrativa.

Ou eu entrava no jogo deles, e me fazia de doido, ou dava-lhes um tranco para voltassem à chamada realidade palpável, essa coisa desprezível – odiada pela gente sofisticada e bem pensante – em que vivemos nós, os assalariados.

Optei por fazer-me de pirado:

– Por que choras, generosa Fedorova, se Mikhailuchenka já se encontra no vaporoso céu descansando dos padecimentos e turbações desta desolada terra?

– Não sofro só por Mikahila, muléqui. Choro também pela pobre alma da atormentada criatura que pode ter causado o falecimento da nossa companheira.

– Mas quem poderia ter causado, mesmo que sem querer, a morte da pobre Mikahila? – perguntei, intrigado.

– Arre égua, meu bichinho! Nós! Potencialmente, somos todos assassinos. O mal está encravado em nossas vísceras. Se baixamos a defesa por um segundo, assim o ódio transborda do nosso coração.

gold downlight chandelier

(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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